Papa Francisco em Moçambique

Anna Fontana dirige o Centro de Investigação Santo Agostinho (CISA) da Universidade Católica em Moçambique. Numa análise profunda ajuda-nos a compreender que Moçambique e Igreja vai o papa Francisco encontrar.

Anna Fontana dirige o Centro de Investigação Santo Agostinho (CISA) da Universidade Católica em Moçambique. Numa análise profunda ajuda-nos a compreender que Moçambique e Igreja vai o papa Francisco encontrar.

Preludio

A escolha de Papa Francisco de visitar Moçambique está em sintonia com o seu magistério papal de sair e “alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG, 20). Moçambique é o nono país com menor índice de desenvolvimento humano do mundo e pouco mais da metade da população, que atinge os vinte e oito milhões de habitantes, vive numa situação de pobreza extrema.

O Vigário de Cristo visita um país que guarda a dolorosa memória das cicatrizes deixadas pelas lutas fratricidas, pela escravatura e pela colonização e, infelizmente, “ainda hoje se vê confrontado com rivalidades e luta de poder e tensões que dominam demasiadamente o mundo das relações humanas”.

É, também, um país cuja memória é agradecida por pastores da Igreja, assim como missionários, pessoas consagradas e leigos, que viveram profundamente a vida de fé e manifestaram o rosto de uma igreja profética que levanta a voz para enaltecer o valor primordial da dignidade humana, o direito à soberania, à liberdade humana e religiosa; uma igreja Mãe que ama o seu povo e continua com perseverança, a educá-lo nos valores da fraternidade, do respeito, da partilha e da paz.

Apesar da visita do Santo Padre pisar o solo da amada terra moçambicana só na capital, Maputo, o afeto e a oração do Sumo Pontífice abraçam os vinte e oito milhões de habitantes, em particular aqueles mais atribulados.

Moçambique dá com alegria o seu caloroso “bem-vindo” ao Papa Francisco, “Aquele que vem em nome do Senhor”, peregrino de “Esperança, Paz e Reconciliação”, como expressa o lema que acompanha a sua viagem apostólica. Estas palavras do Santo Padre – diz a mensagem dos bispos moçambicanos divulgada por ocasião da visita – encontram um grande eco nos corações das pessoas. Exortam a “superar com coragem os traumas causados pela trágica devastação dos ciclones tropicais” e “enfrentar com fé e esperança a difícil situação na qual vive a população da Província de Cabo Delgado, pelos repetidos ataques armados perpetrados por grupos ainda não oficialmente identificados”.

Uma mensagem, a do Papa, que convida a levantar-se e a retomar o caminho da paz e reconciliação com paciência e resiliência, para oferecer as actuais e futuras gerações um lugar melhor para se viver.

Moçambique, cuja maioria da população é constituída por jovens com idade media de 18 anos, que procuram perspetivas de vida, pode tornar-se uma terra prometida, “berço da humanidade”, que traz à “aldeia global” uma profecia de espiritualidade e de valores humanos, tais como a partilha, a hospitalidade, a solidariedade e a reciprocidade.

À espera do Papa

Como forma a preparar-se espiritualmente a esta visita para que seja um Kairos, um momento de graça, a Conferencia Episcopal de Moçambique (CEM), através da comissão de preparação da visita difundiu uma oração para que fosse rezada nas comunidades paroquiais e outro material útil para momentos de estudo e reflexão sobre o lema da visita papal: “Esperança, paz e reconciliação”. Foram realizadas conferências para entender melhor a Igreja, o papel do Sumo Pontífice que vem como Vigário de Cristo e a missão do Papa que traz uma mensagem de encorajamento e esperança ao povo Moçambicano.

Dos artigos mais procurados nos lugares oficiais de venda, constam a t-shirt e a capulana oficial – tradicional pano colorido de múltiplos usos – do logo e lema da visita papal. Cada crente, e não só, quer adquiri-las para homenagear o Santo Padre.

Vindo de Roma, centro do catolicismo, o Papa Francisco se aproxima com afeto e ternura ao querido povo Moçambicano, que já tinha sido abençoado pelo Papa João Paulo II, em Setembro de 1988. A vista papal a Moçambique decorreu em plena guerra civil e fratricida. Teve como lema “Construamos a paz na justiça e no amor”: uma paz extremamente necessária no país tão gravemente ferido e dessangrado que vivia um intenso sofrimento. Uma paz necessária também hoje onde impera uma “cultura da violência” que mantém a sociedade refém de medo, banaliza a vida humana e reflecte uma mentalidade de exclusão e descarto.

Como bom samaritano, o Papa faz-se próximo de um povo que aguarda o balsamo da esperança e o óleo da Paz e Reconciliação, para ajudar a sociedade moçambicana a curar-se das feridas da divisão e do ódio e convidar a Igreja a lembrar-se de que traz dentro de si as mesmas feridas e amarguras, como sublinhava o II Sínodo da África, de modo que possa levantar-se e caminhar rumo a uma sociedade mais fraterna e justa, participativa e democrática que cuida do meio ambiente e luta pela justiça e a distribuição équa dos bens.

O rosto da Igreja de Moçambique é um rosto poliédrico que reflecte a confluência de pessoas crentes que pertencem a diferentes tradições culturais e resplandecem no território moçambicano como um arco-íris no céu, se conseguir harmonizar as diferenças

O Rosto da Igreja

O rosto da Igreja de Moçambique é um rosto poliédrico que reflete a confluência de pessoas crentes que pertencem a diferentes tradições culturais e resplandecem no território moçambicano como um arco-íris no céu, se conseguir harmonizar as diferenças; falam línguas diferentes que são mantidas vivas seja nas celebrações eucarísticas, seja na catequese e nas reuniões comunitárias, cultivando, assim, a originalidade na sinfonia das vozes.

De acordo com os resultados definitivos do Censo de 2017, os que frequentam as igrejas católicas são 7.313.576. A maioria dos moçambicanos, 59,8 por cento, continua a ser cristão. Todavia, a igreja católica é uma das igrejas com menor aumento de fiéis, em comparação com as igrejas protestantes que tiveram um aumento maior.

A Igreja peregrina em Moçambique é composta de 12 dioceses. Reagrupadas entre elas, formam 3 províncias eclesiásticas, nomeadamente: de Nampula (norte), da Beira (centro) e de Maputo (sul), onde reside a Nunciatura Apostólica. As dioceses são compostas de paróquias – urbanas e rurais – que é «a própria Igreja que vive no meio das casas dos seus filhos e das suas filhas» (João Paulo II). Por sua vez, a paróquia é composta de pequenas comunidades cristãs, Nelas, os fiéis baptizados exercem vários ministérios, tais como: da palavra, catequese, esperança, caridade, entre outros, além de animação de comunidades, com intuito de evangelizar e assim suscitar, incrementar e animar a sua vida.

O clero diocesano aumenta cada ano nas várias dioceses. Portanto, há uma presença pastoral mais constante nas paróquias. Todavia, a tendência clerical é fortemente radicada a detrimento de uma autoridade do serviço e de solicitude pastoral. Um sinal profético de uma igreja que deseja colocar-se a serviço é a ordenação (neste ano) do primeiro diácono permanente. O evento inédito quer manter viva a dimensão de serviço e abrir o caminho para os outros. A presença de padres Fidei Donum enriquece a Igreja e fortifica as relações entre igrejas. O clero missionário e as pessoas consagradas dão um forte impulso pastoral e manifestam o próprio carisma nos diversos sectores da vida eclesial e social, nas escolas, bem como nos variados centros de acolhimento, orfanatos, casas-família onde vivem e crescem tantas crianças e jovens abandonados. Um leque de movimentos e associações, formado principalmente por mulheres, se constitui como uma presença dinamizadora de oração e caridade.

A consciência de ser, como pessoas baptizadas, “uma missão”, sujeito activo de evangelização é um processo que requer harmonização – reconciliação entre a acção litúrgica, muito bem animada com cânticos e danças e a vida de compromisso evangélico que pauta pela coerência de vida e uma presença social e cívica iluminada pelos princípios geradores de vida. Os Bispos de Moçambique (2018) afirmam que é “necessidade inadiável de formar os nossos cristãos para o testemunho coerente através do cultivo e prática da santidade de vida”.

O Papa Francisco (2015), no seu discurso aos Bispos Moçambicanos em visita ad limina apostolorum afirmou: “os Pastores e os fiéis de Moçambique precisam desenvolver mais a cultura do encontro” entre as forcas vivas da Igreja e os variados órgãos colegiais, a fim de se tornar verdadeiros evangelizadores que testemunham com alegria o amor de Deus e o amor aos outros.

Na óptica do encontro e diálogo, em particular com as autoridades políticas, foi celebrado em 7 de Dezembro de 2011 o Acordo sobre Princípios e Disposições para o relacionamento entre a República de Moçambique e a Santa Sé. No encontro com os Bispos em visita ad Limina, em 2015, Papa Francisco encorajou “uma decidida implementação de boas relações com o Governo, não de dependência, mas de sã colaboração”. Paulatinamente, no final de 2018, foram alcançados alguns resultados, entre os quais o reconhecimento jurídico da Igreja Católica e das suas instituições, os vistos de residência/trabalho missionário e as isenções. Ainda tem um longo caminho a percorrer antes de conseguir alcançar o que ainda falta decidir a fim de completar a execução.

A voz profética

A Igreja vive as esperanças e preocupações do povo moçambicano e, próxima do seu sofrimento e fiel à sua missão, anuncia o evangelho, denuncia o que não é conforme e propõe possíveis soluções. O Episcopado de Moçambique reunido em Conferencia (CEM) tem assumido uma das suas funções mais importante, a de magistério, encorajando o povo com a fé e iluminado os acontecimentos do país à luz da Doutrina Social da Igreja, sob a forma de cartas e notas pastorais.

O caminho do diálogo

Aproximando-se o 20º aniversário da assinatura do Acordo de Paz, os Bispos evidenciam o caminho positivo feito e convidam a “construir a democracia para preservar a paz”, que se fundamenta num “espírito de respeito, diálogo e tolerância pelo diferente” (2012). Em 2013, preocupados com a situação “de dor, angustia e desespero do povo moçambicano causado pelo regresso à guerra no país” exigem que “pare imediatamente toda forma de hostilidade, confrontos armados e que se reabra o caminho do diálogo”. Mais ainda, apelam “a todos os cidadãos para que não se deixem arrastar pelo clima de intolerância e violência que está a crescer no país”. Em 2015 apelam ao Governo e à Renamo para “o abandono absoluto das armas” e “a retomada imediata do diálogo eficaz”. Renovam o apelo na mensagem pascal de 2016, e convidam a envolver no diálogo “outras forças vivas da sociedade”.

Os bispos alertam que a usurpação do património nacional ameaçam a paz e a justa convivência democrática. Apontam Moçambique que “está a tornar-se num grande supermercado onde tudo se vende e tudo se compra”.

A usurpação do património nacional

Os bispos alertam que a usurpação do património nacional ameaçam a paz e a justa convivência democrática. Apontam Moçambique que “está a tornar-se num grande supermercado onde tudo se vende e tudo se compra”. Consideram que os grandes projectos trazem muitas oportunidades, mas também “megaproblemas” políticos, económicos, sociais, culturais e ecológicos. Evidenciam que a ganância e o vício da acumulação dos bens materiais estão ocupando um lugar primordial, em detrimento dos “valores da vida, da fraternidade, da solidariedade, da hospitalidade, típicas da cultura moçambicana. Entra-se inexoravelmente na lógica da instrumentalização, da coisificação e da comercialização de tudo (a vida humana, a água, a terra, as eleições, etc)”. Perante as empresas que “se preocupam unicamente em produzir e ganhar lucros”, o convite é de “preocupar-se com qualidade de vida e as condições sócio-ambientais”, evitando “saque, esbanjamento e a degradação dos recursos naturais”. Há um forte apelo a “proceder com justiça e transparência na gestão do bem comum” e a cooperar para “eliminar a crescente desigualdade social que existe entre os irmãos da mesma família moçambicana”.

A crescente deterioração dos valores éticos e sociais

Uma das preocupações dos Bispos é “a crescente deterioração dos valores éticos e sociais, visíveis nas dívidas ocultas que incompreensivelmente continuam sem solução e responsabilização, nos frequentes raptos que semeiam medo e insegurança, na violência generalizada, nas manifestações de intolerância, na degradação da qualidade da vida, no aumento do fosso entre os poucos que detém a riqueza e o poder e o Povo cada vez mais empobrecido, no paradoxo da população que cresce, por um lado e, por outro, na baixa produção e degradação das condições sanitárias, enfim, na falta de coerência entre o que se diz e o que se faz. Infelizmente, está a tornar-se num modo de ser em Moçambique prometer uma coisa e fazer outra ou omitir e privatizar informações às quais todos têm direito de acesso” (2018).

Instabilidade em Mocimboa da Praia

Os Bispos manifestam enorme preocupação “com as notícias que nos chegam de Mocimboa da Praia – Capo Delgado – sobre ataques e violência nos últimos meses. Lamentavelmente, reinam informações desencontradas sobre os verdadeiros actores e suas motivações. Este estado de coisas deixa nas populações um sentimento de instabilidade, medo e perplexidade que, no fim de contas, compromete o curso normal da vida” (2018).

A questão da terra

Na carta pastoral “À tua descendência darei esta terra” (Gn 12,7) os Bispos afrontam a questão da terra. Declaram que “a terra em Moçambique está a tornar-se uma fonte de problemas, principalmente para as comunidades locais dependentes da terra para a sua sobrevivência”. Notam que “em todas as províncias do País estão a surgir conflitos por causa da terra, seja com a chegada dos mega-projectos ou outras empresas e investimentos ligados a eles”. Reiteram que “o modelo económico que vigora no País é cada vez mais capitalista–consumista”. Portanto, “a economia neoliberal e a globalização impulsionam-nos a consumir cada vez mais produtos”. Alertam que “o que está em causa no nosso país neste momento é a ausência de uma ecologia integral e de um modelo de desenvolvimento que respeite a integração de todos, particularmente dos mais frágeis”. Resumindo, “o problema da terra não é um problema isolado ou restrito ao aspecto económico. É um assunto social, cultural e religioso”. Trabalhar pela paz implica “cuidar da natureza e da justiça social”. Uma citação de Papa Francisco conclui o documento: “é preciso colocarmos algumas tarefas imprescindíveis para uma alternativa humana frente à globalização da indiferença: 1º) pôr a economia ao serviço dos povos; 2º) construir a paz e a justiça; 3º) defender a Mãe Terra”.

A situação da maioria das crianças que vive em situação de vulnerabilidade é somente a ponta do iceberg de uma situação generalizada de pobreza e condições precárias de vida da povoação.

Os olhos das crianças

Um continente jovem, assim como una nação jovem, tem muitas crianças. Elas “são um dom de Deus à humanidade, pelo que devem ser objecto de um cuidado particular… elas são fonte de esperança e de renovamento na vida” (Sínodo África, 65). Todavia, a situação da maioria das crianças que vive em situação de vulnerabilidade é somente a ponta do iceberg de uma situação generalizada de pobreza e condições precárias de vida da povoação.

A criança foi o tema central da II Semana nacional de fé e compromisso realizada este ano, com o intuito de “reflectir, rezar e buscar pistas de ação para um melhor trabalho em favor de nossa criança”.

A desnutrição contínua alta em Moçambique. De acordo com a UNICEF, em 2019, uma em cada duas crianças com menos de cinco anos sofre de perturbações mentais devido a uma nutrição deficiente. Apesar de que uma alimentação necessária e suficiente é um direito humano inalienável, muitas crianças tem esta doença, prejudicando o seu futuro desenvolvimento.

O trabalho infantil é uma realidade alarmante e grave. Cerca de 22.2% das crianças entre os 14-15 anos, encontram-se no mercado do trabalho, antes da idade mínima de admissão para o emprego. Cerca de um milhão de crianças estão envolvidos em formas que são tão desumanas, ofendem a sua dignidade, e prejudicam a saúde, a segurança e sua moral. Entre elas, a mineração do tipo garimpeiro, prostituição, tráfico de droga, transporte de carga pesada e mendicância. Há um número cada vez mais crescente de crianças que são traficadas.

As mãos das mulheres

Os casamentos prematuros antes de 18 anos, idade legal para casar sem consentimento parental, tem uma prevalência muito elevada. Os dados recentes indicam que Moçambique se encontra no décimo lugar, com 14% das mulheres entre 20-24 anos que se casaram antes dos 15 anos e 48% antes dos 18. Numa cultura predominantemente patriarcal, a mulher fica subalterna ao homem. O seu papel preestabelecido é cuidar da casa, do marido e dos filhos. Portanto a educação da rapariga não é percebida como um benefício pessoal e social. Todavia, a educação é a força transformadora da sociedade, cuja finalidade é o desenvolvimento humano integral. É um imperativo categórico.

Muitas mulheres são chefe de família e são as principais provedoras do sustento económico. Às vezes, as famílias são incrementadas de novos filhos, devido à morte de um familiar.

Apesar do progresso na construção de escolas, o acesso à educação, um dos factores-chave da redução da pobreza, é ainda um grande desafio. A taxa de alfabetização para os homens é de 73,3% mas, para as mulheres, desce a 45,4%.

Cerca de 70% da população vive e trabalha em zonas rurais. As mulheres camponesas são reconhecidas como a chave do desenvolvimento e lutam com grande tenacidade contra a pobreza. São maioritariamente as mulheres que fazem quilómetros para ir buscar a água que serve para cuidar de toda a família. De facto, 65% da povoação das áreas campestre não tem acesso a água potável. Nas outras zonas a percentagem diminui até 51%.

Muitas mulheres são chefes de família e são as principais provedoras do sustento económico. Às vezes, as famílias são incrementadas de novos filhos, devido à morte de um familiar.

A malária e o vírus do HIV são as principais causas dos óbitos. Apesar de programa de combate e prevenção, é um importante problema de saúde pública. As infraestruturas hospitalares são insuficientes para cobrir as necessidades sanitárias. Também o pessoal médico e paramédico é precário. Além do profissionalismo, há falta de humanidade para com os pacientes e perpetuam-se práticas de suborno.

O tesouro da educação

A educação percebida como chave mestra do futuro, está no coração da Igreja local que, desde a criação das antigas missões constituídas por 3 pilares fundamentais: Igreja, centro de saúde e escola, continua a percebê-la como uma transformação para o melhor. Dom Sebastião Soares de Rezende, primeiro bispo da Beira, define a educação como um aperfeiçoamento para alcançar “aquela maneira de ser e de agir própria de sua natureza – humana – e em consonância com o seu destino”.

Na carta pastoral “Repensar a educação” (2011), os Bispos de Moçambique reiteram a visão antropológica cristã que considera a pessoa humana um ser multidimensional, aberto à transcendência. Portanto, deve-se considerar imprescindível o amor à verdade, justiça e liberdade, que implica a responsabilidade de cada um e o respeito do outro, assim como do bem comum.

O clima generalizado de desconfiança, tensão e conflitos abriu feridas que precisam de serem saradas. Urge, portanto uma educação aos valores espirituais de reconciliação, paz, amor, fraternidade, solidariedade, e honestidade, entre outros. Todavia, a educação para a paz inicia na família, onde se vivem aos primeiros laços familiares de afeto e se aprende a gramática do amor.

Um serviço específico educativo à comunidade eclesial local e à sociedade moçambicana em geral, é a Universidade Católica de Moçambique (UCM) que nasce no decorrer das Conversações de Paz, entre o Governo da Frelimo e a Renamo, em Junho de 1992, em Roma. A sua vocação consiste “na promoção da Paz e Reconciliação através da oferta de um ensino de qualidade a todos os jovens moçambicanos, sem distinção de raça, etnia, origem social ou confissão religiosa”. Foi profética a escolha de abrir as primeiras duas faculdades, em 1996, no Centro e Norte de Moçambique, as áreas mais pobres e menos desenvolvidas do País, ajustando assim certa assimetria social e económica e manifestando a opção preferencial pelos pobres e as periferias.

O tecido social tem permanecido frágil seja pela violência subida, seja pelo impedimento de fazer referência a qualquer valor religioso ou cultural, devido à ideologia marxista que imperava nos primeiros anos de governação da Frelimo, como Partido único ao poder de uma nação que estava a nascer e fortalecer a sua soberania.

A paz beliscada

O Sumo Pontífice chega a Moçambique numa altura muito delicada, parecido àquele homem do evangelho que foi assaltado e deixado meio morto à beira da rua. Necessita alguém que cure as suas feridas, que ofereça o balsamo da Esperança e o óleo da Reconciliação que abraça a Paz. A doença dos Moçambicanos é a falta de reconciliação. Não estão reconciliados e, portanto não conseguem viver em paz. Um dos grandes desafios é a “reconciliação fraterna” que se funda no reconhecimento mutuo, na cultura do encontro e no diálogo que transforma as armas em instrumentos de sustento da família moçambicana, para um desenvolvimento mais humano e sustentável.

Entre os dois principais partidos, nomeadamente o Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), houve desentendimento a partir de 1975, ano que marca a esperada independência de Portugal. Seguiu mais que dezasseis anos de guerra civil fratricida entre a Frelimo, o partido ao poder desde a independência e a Renamo, o principal partido da oposição, que até então possui armas. Houve muita violência e atrocidade. Miliares de pessoas perderam a vida e o país ficou de joelho devido à destruição das infraestruturas econômicas, sociais e de comunicação.

As negociações nas mesas das conversações se desenvolveram no bom rumo. O partido do Governo, Frelimo e a Remano assinaram o Acordo Geral de Paz, no dia 4 de Outubro de 1992, em Roma. Entre os mediadores se destacou a Igreja local, representada por Dom Jaime Pedro Gonçalves. Todavia, um forte impulso à paz tinha vindo de Papa João Paulo II, que visitou Moçambique em 1988, numa altura em que a guerra civil devastava o país.

O Acordo de Paz trouxe um período relativamente estável de paz que durou quase 20 anos.

O país desenvolveu-se economicamente, tornou-se o “filho predileto” do Fundo Monetário Internacional e recuperou passo a passo as infraestruturas destruídas. Todavia, o tecido social tem permanecido frágil seja pela subida da violência , seja pelo impedimento de fazer referência a qualquer valor religioso ou cultural, devido à ideologia marxista que imperava nos primeiros anos de governação da Frelimo, como Partido único ao poder de uma nação que estava a nascer e fortalecer a sua soberania.

O partido do Governo tentou recuperar o predomínio e o controle total da vida pública, em particular com a presidência de Armando Emílio Guebuza. A gestão administrativa demonstrou-se precária e criou-se um mal-estar generalizado, em particular do partido da Renamo que permanecia fora de qualquer tipo de participação e, portanto, às margens das decisões. E com um corpo militarizado que ainda permanece.

O descontentamento explodiu quando o principal partido de oposição se recusou a aceitar os resultados das eleições gerais de outubro de 2014, que indicavam Jacinto Nyusi como presidente do governo, ameaçando governar em seis províncias onde reivindicou vitória no escrutínio. Face aos acontecimentos que se seguiram à contestação, houve “incidentes político-militares” na zona centro do país e à volta da Serra de Gorongosa, sede dos guerrilheiros da Renamo. O conflito armado entre os guerrilheiros de um lado, e o exército e a polícia do Governo do outro lado, alastrou-se em intensos combates e insegurança generalizada, apesar de o Governo moçambicano e a Renamo terem reatado as negociações. Chegou-se à conclusão que era necessário incluir outros intervenientes à mesa das negociações, entre os quis foi apontada a Igreja Católica.

Em resposta ao pedido do Governo moçambicano ao Vaticano, para integrar a equipa de mediadores das negociações para o fim dos confrontos militares no país, o Papa Francisco nomeou o núncio apostólico em Maputo e o secretário da CEM como mediadores das negociações de paz. Num comunicado de imprensa afirmou: “Faço um apelo ao sentido de responsabilidade de todos os moçambicanos e lembrar a todos que do recurso à violência não brota nenhum bem duradouro”.

O longo e complexo processo das negociações culminou a todo custo a um acordo de paz, mas não se conseguiu criar condições efectivas de paz, porque tudo permanecia igual. Deixou-se de governar dentro da lei e passou-se a uma má governação fora da lei e subjacente à ideia de um partido único. Este tipo de administração, pouco transparente e emprenhada de corrupção e de interesses pessoais a detrimento do bem comum e do bem-estar da polis, foi-se paulatinamente instalando e explodindo no escândalo das dividas ocultas, que posteriormente se tornaram publicas e, portanto, ilegais, mas não assumidas pelos detentores do poder.

Em termos internacionais, o “filho predilecto”, ou seja, com boa reputação, voltou-se a ser percebido com certa antipatia, devido à sua má governação. Num círculo vicioso, uma gestão governamental mal gerida, tornou-se um problema económico, afetando particularmente os sectores da educação e da saúde e criando situações de pobreza cada vez mais marcada pela desigualdade.

Nas vésperas das eleições, assim como da visita do Papa a Moçambique, o Presidente da República, Filipe Nyusi e o líder da Renamo, Ossufo Momade (que sucedeu a Afonso Dhlakama) assinaram o Terceiro Acordo definitivo de paz e reconciliação nacional, no dia 6 de agosto. Acto que marca o fim da instabilidade política e militar que o país viveu entre 2014-2016. Todavia além dos actos oficiais, a paz necessita de um diálogo permanente; pressupõe a comparticipação e inclusão, reconhecendo-se como irmãos que buscam o bem comum do país.

O Papa chega a Moçambique à altura em que está a decorrer a campanha eleitoral que arrancou no dia 31 de Agosto, durará 43 dias e culminará com as Eleições gerais (presidencial, legislativas e provinciais) marcadas para o dia 15 de Outubro

As eleições gerais

O Papa chega a Moçambique à altura em que está a decorrer a campanha eleitoral que arrancou no dia 31 de Agosto, durará 43 dias e culminará com as Eleições gerais (presidencial, legislativas e provinciais) marcadas para o dia 15 de Outubro. A grande novidade será a eleição dos governadores das províncias, que acontecerá pela primeira vez na história do país, em seguimento à Proposta de Lei de uma Governação Descentralizada, aprovada pela Assembleia da República, no dia 27 de Março de 2019. As referidas leis procedem de acordos entre o Governo moçambicano e a Renamo para o alcance de uma paz duradoura no país.

Quatro candidatos concorrem ao cargo de Presidente da República e 26 partidos e coligações de partidos políticos concorrem para as eleições legislativas e provinciais. A campanha vai custar aos cofres do Estado 180 milhões de meticais (moeda local), cujo valor será distribuído a todos os concorrentes.

As eleições que são o momento mais alto e nobre de exercício da cidadania têm-se tornadas focos de insegurança e instabilidade da paz para os Moçambicanos, devido a “processos eleitorais que se realizam à margem dos princípios de integridade”. Compra de votos, fraude, falta de inclusão e transparência, entre outros, geram processos eleitorais problemáticos e só podem resultar ou dar lugar a uma governação problemática. As últimas eleições (Eleições gerais, 2014 e Eleições autárquicas, 2018) foram marcadas por uma grande abstenção eleitoral que manifestou uma generalizada crítica e insatisfação das pessoas mais marginalizadas na sociedade em relação ao Estado e ao sistema político em específico que tem colocado em risco a legitimidade dos eleitos diante do povo.

Com vista a preparar os cidadãos, em particular os cristãos, a CEM (2019) apela-se aos partidos políticos concorrentes às eleições gerais deste ano, que pautem pelo civismo durante o processo da campanha eleitoral, assim que possa ser uma campanha sem violência e troca de acusações.

Os ciclones e as mudanças climáticas

A fustigar ainda mais o país, foram os ciclones tropicais que afetaram milhares e milhares de pessoas, sobretudo da província de Sofala, na zona centro do País e Capo Delgado, no Norte. Centenas de pessoas perderam a vida e inúmeras desapareceram; milhares de famílias ficaram sem abrigo e perderam seus bens e campos de cultivo. As infraestruturas, tais como hospitais, escolas e estruturas eclesiais foram totalmente ou parcialmente destruídas, com consequente prejuízo para a funcionalidade das mesmas.

A ajuda humanitária e financeira em apoio às vítimas do ciclone criou um grande movimento de solidariedade e despertou o sentido de fraternidade e pertença à mesma família humana. Mais ainda, a destruição das igrejas despertou o sentido de pertença à igreja viva, na qual cada cristão se torna pedra viva que constrói uma igreja missionaria, “em saída”, que vai ao encontro de quem sofre e edifica uma sociedade melhor, baseada na justiça e nos valores éticos.

O país é muito exposto a mudanças climáticas e aos seus efeitos, devido à posição geográfica. “Fenómenos meteorológicos extremos, como os dois últimos ciclones em Moçambique, estão também entre as consequências já visíveis do aquecimento global”. Além disso, as problemáticas da florestação, do uso da terra, dos recursos do país entram neste contexto de respeito da terra e salvaguarda da “casa comum”, uma constante no atual pontificado e um forte convite a mudar estilo de vida.

Mas a mudança de mentalidade inicia com a educação de uma cultura de Paz que elege o respeito pela vida, rejeita a não-violência, vive a partilha e a solidariedade e cuida da “casa comum”.

Um caminho aberto

Papa Francisco visita Moçambique, uma nação muitas vezes ferida, mas capaz de construir um presente e futuro de esperança. A esperança olha aos sinais de vida que existem, para fazê-los desabrochar e crescer, tais como os esforços feitos para a resolução dos vários conflitos ou a luta para defender a terra. Optar pela lógica da escuta e o dialogo a detrimento do uso da violência e das armas, são caminho que abrem à colaboração e apontam à paz e reconciliação. Cuidar do meio ambiente e de uma distribuição mais équa das riquezas é apostar na justiça social que abraçará a paz.

Uma fé vivida autenticamente “comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por ela” (EG 183).

Mas a mudança de mentalidade inicia com a educação de uma cultura de Paz que elege o respeito pela vida, rejeita a não-violência, vive a partilha e a solidariedade e cuida da “casa comum”. Apostar na educação dos jovens, em particular dos jovens moçambicanos “sentinela da manhã”, é apostar numa geração que se compromete com o futuro da humanidade e cultiva “a aspiração pela fraternidade, a justiça e a paz”.

O II Sínodo Africano (n. 157) propunha um Ano da Reconciliação “para pedir a Deus um perdão especial para todos os males e feridas” e “para que se reconciliem as pessoas e os grupos”, Talvez, uma proposta a nível nacional, podaria ser um caminho de libertação, um caminho de esperança que leva a alcançar a tão almejada paz, que brota na reconciliação.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.