Óscar Romero: O grão de trigo morreu e foi julgado pelo amor

Óscar Romero será canonizado pelo Papa no dia 14 de outubro, durante o Sínodo sobre os Jovens. O jornalista António Marujo ajuda-nos a conhecer uma figura marcante da história da Igreja que lutou de um modo determinado contra a injustiça.

Óscar Romero será canonizado pelo Papa no dia 14 de outubro, durante o Sínodo sobre os Jovens. O jornalista António Marujo ajuda-nos a conhecer uma figura marcante da história da Igreja que lutou de um modo determinado contra a injustiça.

Antes da eucaristia, o seu último passo tinha sido ir até ao mar, com um grupo de amigos, para estudar um recente texto do Papa João Paulo II sobre formação do clero. Pouco antes do início da celebração, na capela do Seminário Maior, em San Salvador, decide mudar o texto do Evangelho. Escolhe a passagem de São João, capítulo 12, quando Jesus diz: “Se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, continuará ele só. Mas, se morrer, dará muito fruto.”

Antes de ser morto, o arcebispo Óscar Romero – cuja canonização, dia 14 de Outubro, em Roma, foi anunciada no sábado passado – ainda tivera tempo de explicar, na homilia, que, apesar das ameaças de morte recebidas, estava disposto a continuar a lutar contra a violência e a favor dos mais desprotegidos de El Salvador. “Outros continuarão, com mais sabedoria e santidade, os trabalhos da Igreja e do meu país”, dizia.

“Nunca ensinamos a violência. Apenas a violência do amor, a violência que pregou Cristo numa cruz, a violência que faz cada um a si mesmo para vencer os seus egoísmos para que não haja desigualdades tão cruéis entre nós. Essa não é a violência da espada ou do ódio. É a violência do amor e da fraternidade; a violência que se propõe transformar as armas em foices de trabalho.”

Óscar Romero

Nesse dia 24 de Março de 1980, o arcebispo de San Salvador (capital de El Salvador) seria morto, durante a celebração da eucaristia, por esquadrões paramilitares. Foi há 38 anos, o tempo que a estrutura eclesiástica demorou a reconhecer o seu martírio em nome da fé.

A história das últimas horas de vida do arcebispo de San Salvador foi contada, em Lisboa, por Gregorio Rosa Chávez (na época bispo auxiliar de San Salvador, com Óscar Romero, e cardeal desde Junho do ano passado). O bispo esteve em Portugal em 2013 para apresentar o livro A Doce Violência do Amor (Consolata Editora), que recolhe textos e homilias de D. Óscar.

Num dos textos, dizia Romero: “Nunca ensinamos a violência. Apenas a violência do amor, a violência que pregou Cristo numa cruz, a violência que faz cada um a si mesmo para vencer os seus egoísmos para que não haja desigualdades tão cruéis entre nós. Essa não é a violência da espada ou do ódio. É a violência do amor e da fraternidade; a violência que se propõe transformar as armas em foices de trabalho.”

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Na altura da beatificação, em 2015, o arcebispo italiano Vincenzo Paglia, postulador da causa, dizia que houvera muitos obstáculos a vencer dentro do próprio Vaticano. No livro Óscar Romero – O amor deve triunfar (ed. Paulinas), Kevin Clark descreve outros obstáculos: vários bispos salvadorenhos criticavam o empenhamento do arcebispo junto dos mais pobres e desprotegidos; o núncio Emanuele Gerada (1920-2011) terá começado por apoiá-lo, confiando na sua “moderação”, afastando-se depois; e vários cardeais no Vaticano [como Alfonso Lopez Trujillo (1935-2008) ou Darío Castrillón Hoyos (1929-17.Maio.2018)] usavam o seu poder para influenciar o Papa João Paulo II – que, no início, não entendeu o arcebispo e cederia às acusações medíocres, retardando o processo de beatificação.

Romero nasceu num continente e num país de grandes contrastes, como bem descreve o livro de Clarke: “Sessenta por cento da melhor terra de El Salvador era controlada por menos de dois por cento da sua população”, exemplifica. Rapidamente, os grandes produtores de café, principal fonte de riqueza do país, converteram o poder económico em poder político. De tal modo que, entre 1898 e 1931, a presidência do país esteve sempre nas mãos de produtores de café, recorda ainda Clarke.

No livro Oscar Romero – A biografia (ed. AO) o autor, Roberto Morozzo della Rocca, escreve: “Para Romero, o drama de El Salvador tinha origem essencialmente na injustiça social e exprimia-se pela violência desumana e inaceitável.” E, como dizia o próprio bispo, citado no livro: “Se é verdade que não se pode perdoar o terrorismo nem a violência em nome do desacordo, também não se pode justificar a violência oficialmente instituída.”

Miséria institucionalizada e violência extrema eram o quadro: só entre 1979 e 1981, terão morrido mais de 30 mil pessoas – o próprio Romero dizia que a sua vocação parecia ser a de “recolher cadáveres”. E foi a condenação dos mais pobres a uma vida de sujeição, indigência e quase escravatura que levou Romero a tocar nas feridas da sociedade em que vivia, procurando as suas causa e a cura das mesmas: “As minhas pregações não são políticas. São pregações que, naturalmente, tocam a política, tocam a realidade do povo, mas para a iluminar e dizer-lhe o que é que Deus quer e o que não quer”, dizia, num dos textos de A Doce Violência do Amor.

“Muitos bispos, padres e fiéis também se deram conta de que, neste mundo, ser humano, ser cristão, ser membro da Igreja significava buscar a justiça e viver a pobreza.”

P. Jon Sobrino, sj

Durante anos, mesmo depois de morto, Romero foi acusado por políticos e militares de extrema-direita de ser “desequilibrado”, “marxista” e um “títere manipulado por padres da Teologia da Libertação que escreviam para ele os inflamados sermões” contra a oligarquia, as injustiças sociais e a repressão em seu país.

A proximidade do arcebispo com o teólogo jesuíta Jon Sobrino, que escapara ao massacre de Ignacio Ellacuria e dos outros mártires jesuítas da Universidade Centro-Americana, em 1989 (e que continuam também à espera do reconhecimento do seu martírio) era outro dos factores que levavam os detractores de Romero a acusá-lo.

Em Março de 2015, no La Croix, Jon Sobrino dizia: “Muitos bispos, padres e fiéis também se deram conta de que, neste mundo, ser humano, ser cristão, ser membro da Igreja significava buscar a justiça e viver a pobreza.” E, lembrava o jesuíta, as décadas de 1980-90 foram tempos de mártires na América Latina: Juan Gerardi, na Guatemala, Enrique Angelelli, na Argentina, os professores jesuítas e funcionários da UCA e Óscar Romero, em Salvador. Depois de 1977, em Salvador, acrescentava Sobrino, foram mortos 17 padres e cinco religiosas, assim como centenas de cristãos e de cristãs. Eles doaram as suas vidas para defender os pobres e os oprimidos. Nas suas vidas e nas suas mortes, esses cristãos e cristãs assemelharam-se a Jesus. Chamamo-los de ‘mártires jesuficados’. Muitos outros, dezenas de milhares, foram mortos, vítimas inocentes e indefesas. Chamamo-los de ‘povo crucificado’.”

A 21 de Janeiro de 1979, Romero presidiu ao funeral do padre Octávio Ortiz e de mais quatro jovens assassinados pelas forças de segurança numa casa de retiros. No livro A Doce Violência do Amor, pode ler-se um excerto da homilia: “Este mundo passa; somente permanece a alegria de se ter vivido para implantar, nele, o reino de Deus. Passarão pela boca do mundo todos os boatos, todos os triunfos, os capitalismos egoístas, os falsos êxitos da vida. Tudo isso passa. O que não passa é o amor, a coragem de reverter o dinheiro, os bens, a profissão ao serviço dos outros, a dita de compartilhar e de sentir todos os homens como irmãos. Ao entardecer da vida, julgar-te-ão pelo amor.”

Óscar Romero foi um grão de trigo que já foi julgado pelo amor.

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Foto de António Marújo - abadia de Westminster (Romero aparece ladeado por Martin Luther King e o Dietrich Bonhoeffer.)

(Este texto sintetiza e reproduz excertos de três artigos publicados no blogue Religionline, que podem ser lidos nos seguintes endereços):

https://religionline.blogspot.pt/2018/03/oscar-romero-assassinado-ha-38-anos-nao.html

https://religionline.blogspot.pt/2015/05/sao-romero-de-america-igreja-nao-pode.html#more

https://religionline.blogspot.pt/2015/03/oscar-romero-35-anos-depois-da-morte-se.html

Foto de destaque: Conferência Episcopal de El Salvador – https://www.iglesia.org.sv

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.