1 . Como mel para a boca
Um coro de vozes femininas e um piano solenizam o Salmo 23, segundo uma composição de Franz Schubert (1797-1828). Gott ist mein Hirte Op. 132 [D. 706], 1820.
2. Texto Bíblico
No Livro dos Salmos encontramos os aspetos essenciais da espiritualidade do povo israelita. Ainda hoje, estes textos constituem um aspeto fundamental da oração dos judeus e dos cristãos de todas as confissões. Vinda diretamente do grego, a palavra «salmo» designa um poema para ser cantado, normalmente com acompanhamento musical.
Salmo de David.
O SENHOR é meu pastor: nada me falta.
Em verdes prados me faz descansar
e conduz-me às águas refrescantes.
Reconforta a minha alma
e guia-me por caminhos rectos, por amor do seu nome.
Ainda que atravesse vales tenebrosos,
de nenhum mal terei medo
porque Tu estás comigo.
A tua vara e o teu cajado dão-me confiança.
Preparas a mesa para mim
à vista dos meus inimigos;
ungiste com óleo a minha cabeça;
a minha taça transbordou.
Na verdade, a tua bondade e o teu amor
hão-de acompanhar-me todos os dias da minha vida,
e habitarei na casa do SENHOR
para todo o sempre.
3. O Esclarecimento
A Bíblia é chamada, na tradição judaica, TaNak. É uma palavra-símbolo, que se refere às três dimensões que a compõem:
- T de Tora (ou «Ensino»), a base fundamental que agrupa os códigos de leis, as narrativas da criação, o ciclo dos Patriarcas com Abraão, Isac, Jacob e o ciclo de Moisés. Corresponde ao que os cristãos chamam Pentateuco. Sobre esta base assentam:
- N de Nebiim (ou «Profetas») e
- K de Ketubim (ou «Escritos»). Este último contém o livro dos Salmos, incluindo o Salmo 23, que hoje apresentamos.
Os Rabinos comentam sem cessar os livros dos Profetas e dos Escritos à luz do primeiro conjunto de textos, a Tora. Estão, por isso, constantemente a olhar para trás.
O Salmo 23 evoca «o vale da sombra da morte». Os rabinos* encontram aqui uma referência clara ao Êxodo do Egito: o vale da sombra da morte é equiparado ao Mar Vermelho que se abriu para que Moisés e o povo eleito o atravessassem.
Este movimento – tão próprio dos rabinos – de olhar para trás para interpretar e reler, à luz da Tora, os outros escritos da Bíblia é um convite para todos os crentes. Os rabinos convidam-nos a deixarmo-nos iluminar, nas nossa próprias vidas, pelo que vem de trás. A história sagrada do povo eleito torna-se então a história sagrada dos crentes de todos os tempos. Na sua vida, o crente deve reconhecer os momentos em que passou, também ele, pelo “vale da sombra da morte” e qual foi o “Mar Vermelho” que foi capaz de atravessar, à imagem de Moisés.
Os rabinos judeus não estão presos ao passado, estão habitados por uma memória ativa dos textos, que lhes permite iluminar qualquer realidade nova.
* Esta interpretação encontra-se no Targum Aramaico, uma tradução aramaica da Bíblia judaica rodeada de comentários que atualizam o texto.
4. Uma palavra final
https://www.youtube.com/watch?v=3-oJt_5JvV4
Para finalizar esta reflexão sobre a leitura rabínica, propomos estas magníficas linhas de Marcel Jousse, em L‘anthropologie du geste. La manducation de la Parole (Paris, 1975):
“Não devemos confundir fazer memória com papaguear, o que fazemos com muita frequência. Um papagaio não tem memória, ou tem a memória de um disco. Mas a memória, a verdadeira memória, a única memória que existe consiste num aprofundamento perpétuo. […]
Compreendemos então a razão pela qual, nos círculos étnicos palestinos, as incansáveis declamações do mesmo texto tradicional geraram tantas descobertas surpreendentes. […] É que as declamações destes homens notáveis estavam cheias dos gestos de aprofundamento que eles realizaram ao longo de toda a sua vida.”
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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