Ordenação sacerdotal: muita coisa começou numa grande cozinha

O bispo de Coimbra D. Virgílio Antunes preside amanhã à ordenação sacerdotal do jesuíta Samuel Afonso que tem lugar às 15h30 na Sé Nova daquela cidade. Conheça o testemunho sobre o caminho vocacional do Samuel.

O bispo de Coimbra D. Virgílio Antunes preside amanhã à ordenação sacerdotal do jesuíta Samuel Afonso que tem lugar às 15h30 na Sé Nova daquela cidade. Conheça o testemunho sobre o caminho vocacional do Samuel.

Sou o Samuel Afonso, albicastrense da paróquia de S. Miguel da Sé, sou jesuíta e gostava de partilhar um pouco convosco a história de Deus comigo.

Muita coisa começou na grande cozinha da minha avó materna. Era ali que os sete primos nos reuníamos no regresso da escola. Ali brincávamos, fazíamos os trabalhos de casa, ajudávamos no que era necessário, e ali demos também os primeiros passos na relação com Jesus, levados pela mão da nossa avó.

Fui crescendo e a dada altura sou convidado para o grupo de acólitos da paróquia. Os meus amigos eram acólitos e até era fixe ajudar o P. Vítor Claro que tinha uma maneira muito própria de nos cativar. Rapidamente passou de ser uma “cena fixe” para fazer muito sentido querer conhecer Jesus mais de perto e poder testemunhar isso no dia-a-dia. Os padres da diocese iam passando pela sé e iam mandando umas bocas sobre eu vir a ser padre, confesso que essa conversa me deixava um pouco irritado e eu fui sempre “chutando para canto”. Por duas ou três vezes o Sr. D. Augusto César me interpelou diretamente sobre esse assunto, e ele sim, me deixou a tremer por dentro. Entretanto foi ordenado o P. Carlos Almeida, e desde logo tivemos uma relação muito próxima, e foi crescendo uma grande amizade. As conversas sobre a vocação iam surgindo, sem nunca serem demasiado forçadas.

Faço o secundário no liceu de Castelo Branco, e no final havia que escolher o que fazer. A ajuda aos outros era uma coisa clara na minha cabeça e no meu coração, e então surge a saúde como hipótese. Estava muito em dúvida, porque o ser padre era outra hipótese que se colocava quase secretamente. Fiz então um contrato com Deus: “Se entrar no curso que escolhi, deixas-me sossegado durante os quatro anos, caso contrário, entro no seminário já este ano”. Fui ver o resultado da entrada na faculdade e fiquei aliviado… entrei na primeira opção: Enfermagem da Escola Superior de Saúde Dr. Lopes Dias em Castelo Branco. Uma maravilha, porque podia continuar a viver em casa dos meus pais, e a participar ativamente na minha paróquia. E assim aconteceu.

A meio do curso sou convidado para um Convívio Fraterno (CF) o 994, uma experiência de Deus e de comunidade fortes que me levaram a querer integrar a equipa e a mostrar a outros a alegria de ser cristão.

Os três trabalhávamos, mas decidimos encontrarmo-nos pelo menos uma hora por dia para rezar e partilhar o que o evangelho nos ia suscitando essa semana.

Tudo tranquilo até ao final do curso. Nessa altura, fico meio ano em casa sem trabalhar e a questão da vocação volta a surgir, era o contrato a ser cumprido. Não que a Enfermagem não fosse uma vocação, mas seria aquela a que Deus me chamava? Dava-me muito bem com muitos padres da nossa diocese, e isso para mim tornou-se uma limitação. Explico. Era para mim claro que este processo tinha de ser muito livre, e eu sentia que conhecer as pessoas era um impedimento à liberdade. Procurei ajuda noutra diocese e foi-se tornando claro que Deus me chamava a ser Padre.

Entretanto começo a trabalhar em Lisboa e o local de encontro com outros membros das equipas dos Convívios passou a ser o CUPAV – o centro universitário dos Jesuítas em Lisboa. Uma vez que o meu dia-a-dia se passava agora em Lisboa, fazia sentido ser acompanhado por alguém dali.

Importantes nesta etapa foram a Joana Barbado e a Virgínia Gouveia. Os três aceitámos o desafio do Sr. D. Antonino no final de um CF de rezar pelas vocações. Arrisco-me a dizer que foi uma semana que mudou as nossas vidas. Os três trabalhávamos, mas decidimos encontrarmo-nos pelo menos uma hora por dia para rezar e partilhar o que o evangelho nos ia suscitando essa semana. Na segunda-feira, na primeira partilha, todos desvendámos que estávamos a questionar Deus sobre o que queria para as nossas vidas. Foi muito bonito o caminho que cada um fez dali em diante, acompanhado pela oração dos outros dois.

No acompanhamento com o P. Carlos Azevedo Mendes, sj ficou mesmo claro que o Senhor me chamava a ser padre, e depois de muitas voltas, a ser padre na Companhia de Jesus.

Mas porquê a Companhia de Jesus e não o seminário diocesano? A vida em comunidade e o não estar confinado ao espaço de uma diocese foram as principais razões pelas quais Deus se foi manifestando. Como disse, desde novo a partilha do dia-a-dia e da mesa com muitas pessoas foi importantíssimo, tal como foi muito importante a ideia de ser um cidadão do mundo.

Depois de dois anos e trabalhar em hospitais da zona de Lisboa, no dia 5 de outubro de 2010 entrei no noviciado dos Jesuítas em Cernache, perto de Coimbra. Quando tomei esta decisão achei que fazia sentido ter uma conversa com o bispo da minha diocese para lhe contar aquilo que Deus andava a fazer em mim e que resposta estava pronto a dar-Lhe. Foi uma conversa franca e bonita sobre os caminhos de Deus que não somos nós a escolher.

O noviciado são dois anos em que conhecemos melhor quem somos e a Companhia nos mostra como é por dentro. Gosto de dizer que uma coisa é passar numa montra e ver um casaco de que gosto muito e que penso que me vai ficar bem (processo de discernimento antes de entrar), outra coisa é entrar e experimentar o casaco, ver se efetivamente devo ou não ficar com ele. No fundo o noviciado é o tempo em que juntamente com algumas pessoas vemos se a Companhia é ou não a casa onde Deus quer fazer morada em nós.

No dia 12 de outubro de 2012, e depois de perceber que efetivamente Deus me chama a servir a Igreja na Companhia de Jesus, fiz votos de pobreza, castidade e obediência perpétuas. Estes votos, mais que um peso, são uma manifestação de total liberdade. Pelo voto de pobreza, sou chamado a não ter mais que o essencial, e a partilhar com os outros aquilo que tenho e o que sou. Ao fazer voto de castidade quero manifestar o desejo de me dar a todas as pessoas independentemente de afinidades pessoais que todos temos. Com o voto de obediência coloco a minha vida nas mãos dos meus superiores que, conhecendo-me, podem decidir sobre os destinos a dar-me consoante as necessidades da Companhia.

Mas porquê a Companhia de Jesus e não o seminário diocesano? A vida em comunidade e o não estar confinado ao espaço de uma diocese foram as principais razões pelas quais Deus se foi manifestando.

Seguiram-se três anos em Braga a estudar filosofia na Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da UCP. Como devem imaginar nem sempre foi fácil para alguém que vem das ciências estudar um curso de humanidades. Foi um tempo de crescer na humildade. Durante este tempo deseja-se que um jesuíta conheça bem o pensamento humano. Para além disso, durante este tempo, estive a dar apoio aos Gambozinos, uma associação juvenil que tem por missão fomentar a coesão social entre crianças de meios socioeconómicos e culturais diferentes.

Entre 2015 e 2018 estive no Colégio das Caldinhas a fazer o magistério. Depois de perceber como pensa o Homem, foi tempo de ver como age. A minha principal missão a pastoral do Colégio que foi partilhada com outros jesuítas e uma equipa de leigos. A nossa missão era que os alunos pudessem fazer a experiência de Deus nas suas vidas a ponto de a quererem testemunhar com as suas vidas.

Depois do magistério estive até 2021 em Roma a estudar teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana. Depois de ver como o Homem pensa e age, foi tempo de ver como apresentar Deus a este Homem. Durante estes anos fui aprofundando a vocação sacerdotal na Companhia. Viver na casa onde Santo Inácio viveu nos últimos anos foi uma bênção. Foi também tempo de aprofundar o conhecimento dos Exercícios Espirituais e de começar a orientar pessoas neste percurso, na vida corrente. Esta experiência de ajudar as pessoas a identificar os movimentos do Espírito Santo foi-se mostrando de uma riqueza enorme também para a minha relação pessoal com Deus.

Na terça-feira de Páscoa, dia 6 de abril de 2021 fui ordenado diácono na igreja mãe da Companhia de Jesus em Roma, a igreja do Gesù. Num tempo ainda dominado pela covid-19, tocou-me o estar a ser ordenado para um mundo novo, um mundo que está a começar de novo. Presidiu à ordenação o Cardeal Tolentino Mendonça, perante uma igreja com pessoas dos quatro cantos do mundo. Esta foi, de facto, uma das melhores experiências de Roma: poder viver de perto a universalidade da Igreja.

No último ano tenho estado em Boston, nos Estados Unidos, onde estudo teologia sistemática. Mais uma vez, uma experiência internacional, com desafios culturais importantes. A dificuldade inicial com a língua foi uma alavanca para progressos a nível espiritual. Este desafio da língua não corresponde a desafios de linguagem. Fui aprendendo ao longo destes quase doze anos que há um modo de ser que os jesuítas temos que está para lá das línguas e culturas. Estar atento aos pequenos movimentos interiores passou a fazer parte do meu dia-a-dia. A cada momento tentar perceber o que faria Jesus é uma ajuda incrível para entrar aos poucos na gramática de Deus.

Lembram-se da Joana e da Virgínia? Pois é, a Joana é Escrava do Sagrado Coração de Jesus e a Virgínia entrou no Carmelo de Fátima. Quem disse que Deus não tem sentido de Humor?

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.