Traços de imobilismo por parte da Igreja e vertigem de mudança na cultura atual expõem mundos muito distantes que dificilmente se reconhecem entre si. Por defeito ou por excesso, por apego ao passado ou por veleidade de pensar que o futuro pode ser um começo do zero, não é difícil falhar na relação justa a manter com o tempo presente. A Igreja, em concreto, parece viver o dilema de ter de afirmar rigorosamente a doutrina, com a preocupação primeira de recordar que não muda, e de testemunhar profeticamente a força vital do Evangelho num contexto em permanente mudança. Se a história ensina alguma coisa, aprendemos com ela que sempre que a Igreja quis garantir a sua identidade combatendo e protegendo-se das mudanças culturais, perdeu e perdeu-se. A página anti modernista é exemplar. O Vaticano II viria quebrar essa cintura de proteção – e de exclusão – entre fé e cultura que tinha sido fortemente reforçada desde os inícios do século XIX. Reconhecia que “erros modernos” eram, afinal, “sinais dos tempos”.[1]
No discurso de abertura do concílio, a 11 de outubro de 1962, com grande lucidez teológica e sentido pastoral, o Papa João XXIII fez uma distinção necessária. Uma coisa é a «substância» – o próprio Evangelho –, outra coisa são as «formulações» com que é traduzida em cada tempo. De modos diferentes, uma e outras têm a marca de Deus, mas uma coisa é a força evangélica, outra são as formas eclesiais históricas. Se aquela não se diz sem estas, por encarnar sempre em pessoas concretas e realidades culturalmente situadas, nenhuma formulação, pelo facto de ser sempre fruto da leitura do Evangelho em tempos particulares, pode pretender esgotar ou identificar-se totalmente com ele.
Uma coisa é a «substância» – o próprio Evangelho –, outra coisa são as «formulações» com que é traduzida em cada tempo. De modos diferentes, uma e outras têm a marca de Deus, mas uma coisa é a força evangélica, outra são as formas eclesiais históricas.
Cinquenta anos depois, dizendo preferir uma Igreja que se mancha no ato de sair e de se expor à realidade àquela que protege a sua suposta impecabilidade no fechamento sobre si mesma, o Papa Francisco retoma aquela mesma distinção. No n. 41 da sua Exortação Apostólica A alegria do Evangelho, recorda que pode acontecer sermos «fiéis à formulação mas não transmitirmos a substância». É este o «risco mais grave», adverte. Conservar-se-iam as formas – categorias, articulações doutrinais, disposições disciplinares, ordem canónica, configurações institucionais, com as lógicas culturais particulares que sempre as enquadram – mas perder-se-ia a força do Evangelho. As formas que deveriam estar ao serviço da visibilidade e da operatividade desta força, falham o seu fim. Perene é o Evangelho, palavra de Deus revelada em Jesus de Nazaré, enquanto vida para vidas reais e realidades concretas. As formas visíveis nas quais se traduz são culturais, por isso, parciais e contingentes. Não são as mesmas desde sempre, não serão necessariamente as mesmas para sempre. Paradoxalmente, por fidelidade às formulações, corre-se o risco de infidelidade à substância. Pode dar-se, por isso, que por meio de uma «linguagem totalmente ortodoxa», diz ainda Francisco, aquilo que os fiéis e tantos outros que olham a experiência cristã e a forma eclesial de fora recebem «não corresponde ao verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo». «Com santa intenção de lhes comunicar a verdade sobre Deus e o ser humano, em algumas ocasiões, damos-lhe um falso Deus ou um ideal humano que não é verdadeiramente cristão».
A ser assim, afirmar a doutrina não poderá acontecer à margem de um trabalho exigente de tradução que parta da escuta disponível e permanente do Evangelho e da experiência humana – da escuta de ambos. O Evangelho lê e ilumina a realidade, confirmando-a, alargando-a, denunciando corrupções, reparando-a. Em linguagem teológica, salvando-a. A realidade, enquanto interlocutora, não deixa de pôr à prova categorias, formulações e articulações com que o Evangelho é traduzido, permitindo que, pelo trabalho da Igreja sobre elas, respire melhor e diga algo que ainda não tinha podido dizer. Uma vez que as formas que a Igreja herdou poderão refazer-se a traços culturais com os quais as pessoas de hoje já não se compreendem e exprimem, conviria que se apropriasse criticamente daqueles que enformam, hoje, a cultura. Assim fizeram os primeiros cristãos em contacto com a cultura grega. Assim fez São Tomás na Idade Média. Como estes, fizeram tantos outros que mantiveram viva a tradição pelo ato de a recriarem – é quando fica intacta que morre. Trabalhar formulações e articulações doutrinais não significa, por isso, mudar a doutrina, como rendição a qualquer novidade ou moda do tempo. Significa, sim, começar por reconhecer a realidade tal como é e reconhecê-la como possível fonte de bem para a Igreja – o que lhe vem de fora poderá dizer-lhe algo sobre si mesma. Esse será um passo indispensável para traduzir fielmente o Evangelho em categorias novas, em formulações e disposições práticas que sejam significativas para pessoas existencial, cultural e socialmente situadas. Por isso, cuidar da doutrina implica necessariamente revê-la. A doutrina sobre a guerra ou a pena de morte, por exemplo, já foram objeto de revisão. Trata-se de uma forma de cuidado daqueles a quem se anuncia o Evangelho, na convicção íntima de que a sua força, misteriosamente, já age neles. Bem mais do que destinatários passivos de um conteúdo ou preceito, são, sobretudo, interlocutores da Palavra que os constitui destinatários e sujeitos de palavra. Como tal, recebem e dão, são interrogados e interrogam.
Trabalhar formulações e articulações doutrinais não significa, por isso, mudar a doutrina, como rendição a qualquer novidade ou moda do tempo. Significa, sim, começar por reconhecer a realidade tal como é e reconhecê-la como possível fonte de bem para a Igreja – o que lhe vem de fora poderá dizer-lhe algo sobre si mesma.
É assim, como ato plural de atenção ao Evangelho e à complexidade da experiência humana, com as suas expressões culturais e configurações sociais, que a Brotéria compreende a sua missão e que, de diferentes formas, a procura realizar. Não se furta, por isso, a inevitáveis tensões e a conflitos de interpretações. Neste sentido, consideramos importante, como fazemos neste número, colocar questões como a da revisão da ética sexual católica ou da possibilidade da bênção de casais ditos irregulares e de pessoas do mesmo sexo. Os assuntos serão bastante desconfortáveis para alguns, evidentes para outros, complexos para a maioria. Não nos parece um caminho interessante nem é nosso interesse assumir uma qualquer bandeira. O nosso, é um exercício – pelo menos, desejamos que o seja – de pensamento que se reconhece, sobretudo, desassossegado e incompleto.
[1] Permito-me reenviar para o editorial do nº. do mês passado, “Sinais que o tempo dá”, Brotéria 198-2 (2024): 126-132.
in Brotéria de Março 2024
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