Ao celebrarmos hoje a festa da Imaculada Conceição de Maria, é conveniente perguntarmo-nos pelo sentido profundo desta celebração. Os mistérios devem ser acolhidos como aquela história do G. K. Chesterton, sobre o homem que saiu da sua terra para começar uma vida nova. Meteu-se num barco de malas e com os seus óculos. Um naufrágio fê-lo perder ambos e regressar à terra donde saíra. Sem óculos nem bagagem, todas as coisas lhe pareciam novas. É a surpresa de quem descobre que o mistério não está fora de nós ou apenas dentro, mas que nos envolve por todos os lados e nos convida a uma resposta pessoal.
A festa da Imaculada Conceição de Maria afirma que a Mãe do Senhor foi concebida sem pecado original e, deste modo, foi purificada de todo o mal para ser Mãe do Salvador. Mas o que significa isto? Ao olharmos para esta pureza de Maria, precisamos de permitir que caiam as nossas bagagens e os nossos óculos, os nossos conceitos prévios e os nossos modos habituais de ver, permitindo, portanto, que seja o Senhor a ensinar-nos a acolher este mistério.
Onde estás?
No livro dos Génesis é-nos apresentado o contexto cordial e histórico do drama da salvação. Nele nos encontramos com um momento tenso. Uma serpente que fala põe em questão a bondade de Deus. Sempre me deu que pensar que a serpente fizesse “ssssss”, tal como o mau espírito se dirige ao nosso coração com “E se…”, questionando a bondade de Deus e das coisas. Mais ainda, o mau espírito, diante da bondade de Éden, lança a bomba questionando a bondade de Deus diante das criaturas, porque questionar a bondade do Criador é pôr em causa um modo de ser criatura: aberta à criação contínua, disponível para a vontade do Pai.
Por oposição, o maligno não pergunta as coisas diretamente. Atira à cara sem se molhar, vestido de anjo de luz que nos vem ajudar a perceber como é que as coisas realmente são ou deviam ter sido.
Por oposição, o maligno não pergunta as coisas diretamente. Atira à cara sem se molhar, vestido de anjo de luz que nos vem ajudar a perceber como é que as coisas realmente são ou deviam ter sido. Este mistério do mal é contrariado com a singela pergunta de Deus a Adão: onde estás? Curiosamente, Adão não diz onde está mas porque não está disponível: estou nú e escondi-me. Adão percebe que a pergunta vai mais fundo que a geografia, mas tem a ver com a geografia do coração: a partir de onde vejo a realidade? O sssssss da serpente despiu o seu olhar da bondade original.
O mistério do mal despe as relações e as pessoas da bondade original, fazendo-as entrar num olhar de suspeita, crítica velada e desamor. Porém, Eva é capaz de ver uma coisa que poucos viram: foi a serpente que nos enganou. O seu coração maternal permitiu-lhe ver que a acusação, para ser justa, precisava de reconhecer que mais do que perversos somos ignorantes do bem que está por vir, e por isso nos deixamos enganar pelo mau espírito. Como nos recorda Inácio de Loiola, precisamos de contrapor a nossa ignorância da bondade de Deus com três conhecimentos: o conhecimento interno do nosso pecado, de Cristo que por nós Se fez homem e de tanto bem recebido para assim O amar e servir.
Abençoados
Maria é a primeira das abençoadas com este conhecimento interno, que a carta aos Efésios traduz nos tons de uma bênção. O conhecimento interno do pecado é fundamentalmente a consciência da bondade infinita de Deus, que sintetiza a vocação da criação sonhada pela Trindade e que Maria conheceu intimamente. Por isso, aquela que disse “o todo poderoso fez em mim maravilhas” é também aquela de quem se pode dizer “Bendito seja Deus que a predestinou antes de toda a criação para ser santa, imaculada em amor na sua presença”.
Além do mais, Maria conheceu internamente o Seu filho. Dom que não se limita ao conhecimento dos seus afetos e pensamentos mas procura, sobretudo, o conhecimento do seu modo de relação com o Pai para que também nós cheguemos a ser filhos no Filho. Ao experimentar o chamamento de Deus como um nascimento constante, tanto na Anunciação como diante da Cruz e no Pentecostes, Maria Imaculada desponta na imaginação cristã como Senhora da Esperança, que de nascimento em nascimento não se proclama como mulher de respostas definitivas. De nascimento em nascimento, aquela que disse “pôs os olhos na humildade da sua serva”, é também aquela de quem se pode dizer: “em Cristo, Maria foi constituída herdeira de um novo nascimento”.
Finalmente, Maria conheceu internamente todo o bem recebido de Deus. A exceção que ela representa diante de nós é a seguinte: se a sabedoria espiritual consiste em fazer uma síntese dos dons que recebi pela criação, com os que recebi ao ser salvo em Cristo e os particulares que recebo do Espírito, Maria recebeu esta síntese de tríplice-graça logo no nascimento. Tanto mal vem ao mundo quando um cristão se convence que para ser fiel à redenção ou para buscar dons particulares tem que lutar contra a criação — então cai na vida frenética, na falta de discernimento, no dizer sim a tudo, que não é o sim de Maria. Por outro lado, é tão triste quando o desejo de respeitar os ritmos da criação nos adentram num naturalismo intimista ou a la carte que nos faz inamovíveis diante da caridade de Cristo que nos impele e da fortaleza que vem do Espírito — então caímos na tibieza e na vida imóvel e preguiçosa. Ao experimentar que as graças da sua vida estão em sintonia com as promessas feitas a Abraão e à sua descendência para sempre, Maria experimenta essa harmonia misteriosa entre criação, redenção e dons pessoais que a carta aos Efésios descreve com estas palavras: “em Cristo fomos chamados a ser um hino de louvor para a Sua glória”.
Tanto mal vem ao mundo quando um cristão se convence que para ser fiel à redenção ou para buscar dons particulares tem que lutar contra a criação — então cai na vida frenética, na falta de discernimento, no dizer sim a tudo, que não é o sim de Maria.
O sim de Maria e o de Deus
No momento da anunciação, Maria acolhe a voz do anjo com a humildade de quem está disponível para renascer sem mácula, sem pretensiosismos de grandeza. Maria nasceu imaculada para continuar a nascer, em cada chamamento divino, sem mácula. Nasceu imaculada para nunca mais o deixar de fazer. Desse sim constante realizou-se o SIM de Deus, confirmou-se o sim de Isabel e Zacarias, conformou-se o sim de João, construiu-se o sim da Igreja. Não se trata de divinizar o sim de Maria mas de ver como aquilo que gera um sim é outro sim. A que nos move esta convicção diante de uma Igreja que somos nós e que tantas vezes ficou conhecida por dizer ‘não’? A responsabilidade é ‘deles’, dos que mandam ou não são como eu, ou estamos todos implicados e chamados a dizer um sim que abra e possibilite outros sins? A que nos convida hoje o Senhor? Diante da nossa realidade, o que nos comove? Que nos pergunta o Senhor?
Podem dizer-me: essa reflexão é interessante, mas Maria disse que sim porque foi concebida sem pecado, nós não. A conceção de Maria está voltada sobre nós como um espelho. Tal como o espelho inverte a imagem na horizontal, este mistério da fé coloca no início da vida de Maria aquilo que, na nossa vida, vai acontecendo apenas ao longo dela: renascermos em liberdade, dando o nosso sim com alegria e generosidade. Porém, o espelho não inverte a imagem na vertical: Maria continua a ser uma de nós, uma mulher pequena e anónima como tantas e tantos que não aparecem nos livros de história e, ainda assim, continuam a preparar a vinda contínua de Cristo. E eu? Onde estou? Como me tem abençoado o Senhor? A que sim me move Aquele que me amou e Se entregou por mim?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.