Há 35 anos que se reconhece (no papel) o acesso à educação como um direito fundamental de todas as crianças [1]. Está lá, na Convenção sobre os Direitos da Criança. E também é lá que se reconhece à criança o direito de ser protegida contra a exploração económica ou a sujeição a trabalhos perigosos ou capazes de comprometer a sua educação.
Mas, no lado errado do mundo, estes princípios não saem do papel. No lado errado do mundo, crianças de cinco anos acordam às 5 da manhã para ir apanhar jasmim para que, por aqui, no lado certo do mundo, se consigam bons perfumes. Segundo as últimas estimativas globais, são 160 milhões de crianças a trabalhar, um rácio alarmante de cerca de uma em cada dez crianças em todo o mundo. Um rácio calculado ainda antes do eclodir dos últimos conflitos armados.
Existiram momentos da nossa história em que podíamos invocar o desconhecimento de atrocidades cometidas. Hoje, o silêncio e a omissão não podem ser opção. Se conseguimos comprar, a milhares quilómetros de distância, camisolas, sapatos, tecnologia, candeeiros, e tudo o que nos passe pela cabeça, também conseguimos saber quem produz as matérias-primas, quem fabrica e quem as transporta por milhares de quilómetros. O trabalho infantil é claramente um flagelo que se alimenta do nosso consumo. Por isso, quer queiramos quer não, somos sempre parte da equação.
O trabalho infantil é claramente um flagelo que se alimenta do nosso consumo. Por isso, quer queiramos quer não, somos sempre parte da equação.
Em 2015, a ONU adotou um plano de ação global, e definiu, entre diversos objetivos, a eliminação do trabalho infantil até 2025 – meta 8.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Pretendeu-se assegurar um futuro mais justo e sustentável à escala planetária. Mas é sempre um futuro, e o futuro nunca chega, e o futuro desenhado não chegará em 2025, apesar das estratégias de ESG (Environmental, Social and Governance) que são alinhavando.
O avanço que se tinha vindo a verificar em relação aos números de trabalho infantil estagnou em 2016 e a pandemia do COVID-19, assim como as crises e conflitos armados, vieram reverter este processo (perda de rendimentos familiares, fecho de escolas, recrutamento de crianças como soldados…).
A maioria das crianças que exerce trabalho infantil está no sector agrícola. Crianças que plantam, colhem e embalam, crianças expostas a ferramentas e a químicos perigosos e prejudiciais à sua segurança e saúde. Falamos de cacau, café, algodão, tabaco entre tantos outros, mas, o trabalho infantil ainda se pode encontrar em minas de cobalto e ouro, nas indústrias de têxtil, de calçado e tijolos, ou seja, está no nosso quotidiano.
Ainda que puxadas a ferros, vão-se observando alterações legislativas na promoção dos direitos das crianças a ganhar terreno na Europa, porém, o compromisso global com a infância voltou a ficar de fora da equipa de comissários da senhora Ursula Von der Leyen. Ratificar uma convenção (sendo o tratado de direitos humanos mais ratificado da história) não pode significar apenas assinar um papel…
O bem-comum convoca-nos. A sustentabilidade humana convoca-nos. Somos chamados a ser defensores dos direitos dos mais pequenos no nosso quotidiano tornando o lado errado do mundo o lado certo, tal como o nosso.
[1] A Convenção dos Direitos da Criança adotada a 20 de novembro 1989 faz hoje 35 anos, apesar de só ter sido ratificada por Portugal em 1990. A Declaração de Genebra dos Direitos da Criança, fez em setembro 100 anos e foi promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 20 de Novembro de 1959. A grande diferença dos tratados é que a Convenção é o primeiro instrumento de direito internacional a conceder força jurídica internacional aos direitos da criança, tornando os Estados integrantes juridicamente responsáveis pela realização dos Direitos da Criança e por todas as ações relativas às mesmas, enquanto a Declaração de 1959 impunha meras obrigações de carácter moral.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.