“O sonho de uma nova manhã – Cartas ao Papa” é o título do novo livro de Tomás Halík, sacerdote, teólogo, filósofo, sociólogo e um dos mais respeitados pensadores cristãos da atualidade. Editado este mês de outubro, pelas Paulinas, já está à venda em Portugal. O Ponto SJ publica hoje um excerto desta obra, onde o autor checo, num registo epistolar dirigido a um papa da sua imaginação, sonha com um redescobrir e reavivar da identidade do Cristianismo.
O autor estará em Portugal no próximo mês, entre os dias 19 e 22, tendo três conferências agendadas, uma para Braga e duas para Lisboa.
TERCEIRA CARTA – A MISSÃO DOS PROFETAS
(…) da pág 47 à 53
“A Europa, após o fim da hegemonia do Cristianismo eclesiástico, não se tornou não-cristã. Muitos elementos da ética cristã não só se mantiveram no humanismo secular e na democracia moderna, como até se desenvolveram mais do que na época considerada como cristã. Testemunho disso é, principalmente, a ênfase nos direitos humanos e em muitos dos valores promovidos pelas Revoluções Americana e Francesa.
No entanto, o caos e a violência que acompanharam as revoluções europeias e a rapidez das mudanças sociais assustaram de tal forma os representantes da Igreja que estes começaram a mover o Cristianismo no sentido de uma «visão do mundo», tornando-se uma ideologia de contracultura em relação a uma modernidade lentamente triunfante. Chamo a esta infeliz mudança a transformação da catolicidade em catolicismo, eventualmente, em protestantismo.
Iniciou-se um processo de exculturação do Cristianismo. Um Cristianismo arrancado à dinâmica do desenvolvimento social nunca poderia ser verdadeiramente fecundo. A tarefa missionária do Cristianismo não se pode centrar apenas na propagação de uma visão do mundo ou de uma ideologia; deve ser uma outra coisa bastante diferente: a continuação do mistério da Encarnação, da dinâmica da encarnação de Cristo na cultura e na sociedade, «o fermento e o sal».
Não se trata de uma adaptação mecânica às mudanças sociais, de se conformar à mentalidade dominante da maioria. Trata-se de um esforço constante para compreender, para discernir o que é a linguagem de Deus nos acontecimentos contemporâneos e o que é apenas um eco de processos superficiais, «linguagem deste mundo». É exatamente esta arte do discernimento espiritual que eu considero ser a principal tarefa do Cristianismo na sociedade, o cumprimento do seu papel profético.
Como há muito me dedico à sociologia da religião, não acredito que o Cristianismo não religioso e não eclesiástico possa ser uma forma sustentável de fé. Ao mesmo tempo, como sociólogo, teólogo e principalmente como padre do serviço pastoral, vejo a insustentabilidade da atual modalidade religiosa e eclesiástica de Cristianismo. A fé sob a forma de uma «visão do mundo» não é nem pode ser fecunda, é um beco sem saída no desenvolvimento do Cristianismo.
Pergunto-me, então, que forma futura de religião e de Igreja pode ser um espaço e uma expressão daquilo que está vivo no Cristianismo, daquilo que está a transbordar pelas margens da forma existente, daquilo que está à procura da sua forma, depois das muralhas existentes se terem desmoronado ou estarem a desmoronar-se.
Pergunto-me, então, que forma futura de religião e de Igreja pode ser um espaço e uma expressão daquilo que está vivo no Cristianismo, daquilo que está a transbordar pelas margens da forma existente, daquilo que está à procura da sua forma, depois das muralhas existentes se terem desmoronado ou estarem a desmoronar-se.
Estou convencido de que se oferece, para o Cristianismo de amanhã, uma forma diferente de religião, um diferente papel social. A palavra «religio» também pode ser derivada do verbo «re-legere», ler novamente. Penso no papel da religião como uma nova hermenêutica, como uma re-lecture – uma nova leitura, uma leitura mais cuidada, possibilitando uma compreensão mais profunda que pode ser a fonte de mudanças nos comportamentos.
Trata-se da arte de uma abordagem contemplativa do texto que é semelhante à forma como se trabalham os textos bíblicos durante a lectio divina (nota 25). O texto é lido repetidamente, primeiro pensado e analisado racional e criticamente, mas depois «saboreado», interiorizado. Isto acontece numa área diferente da vida espiritual, mais profunda do que aquela que é ativada durante o esforço de uma abordagem racional e analítica.
A metáfora tradicional para esse centro é o coração, entendido como um santuário interior, um espaço para aquilo que acompanha a consciência humana como con-sciência. Não são apenas emoções e sentimentos: o coração tem a sua própria razão, as suas razões, a sua lógica (raison), diferente e mais profunda do que aquela de que dispõe a mera racionalidade (raison) – já Pascal o sabia e expressou de forma brilhante.
O termo lectio divina é utilizado principalmente para uma leitura meditativa e contemplativa das Escrituras e, eventualmente, de outras literaturas de carácter espiritual. Essa releitura (re-lecture) de que falo certamente pode e deve ter que ver também com uma nova e mais profunda compreensão das Escrituras e da tradição de diálogo com as nossas novas experiências históricas e conhecimentos filosóficos e científicos. No entanto, o «texto» que aqui tenho em mente é também a própria vida do homem.
A re-lecture contemplativa e regular da experiência quotidiana é praticada, principalmente, na escola jesuíta de espiritualidade, sob o nome de exame inaciano. Este tem como objetivo, precisamente, desenvolver a arte do discernimento espiritual.
Santo Inácio ensinou os seus discípulos a olharem para tudo aquilo que encontraram durante o dia, incluindo as suas reações imediatas, de forma renovada e profunda, com uma certa distância, uma visão distanciada que tente ultrapassar a sua própria perspetiva pessoal.
Santo Inácio ensinou os seus discípulos a olharem para tudo aquilo que encontraram durante o dia, incluindo as suas reações imediatas, de forma renovada e profunda, com uma certa distância, uma visão distanciada que tente ultrapassar a sua própria perspetiva pessoal. Quando alguém examina a forma como tudo ressoa dentro de si mesmo, tudo aquilo que se vive, e o insere na oração, no diálogo interior com Deus, aprende a compreender melhor as orientações de Deus através desses acontecimentos. Eles tornam-se, por meio do exame meditativo, experiências espirituais.
Esse caminho é considerado uma condição necessária para tomar corretamente decisões, para escolher aquilo que, entre as muitas possibilidades, melhor (magis) conduz o homem ao objetivo que Deus lhe traçou. O que conduz não só ao objetivo e ao sentido da humanidade enquanto tal – que é, segundo Santo Inácio, o louvor agradecido e a celebração de Deus e o serviço de Deus –, mas também à realização da vocação pessoal específica que um homem vai descobrindo progressivamente, e isso tanto pelo conhecimento e aceitação dos seus carismas e talentos, como pela aceitação interior das circunstâncias externas da sua situação de vida em mudança.
Caro papa Rafael, não chegou a hora de darmos o próximo passo nessa viagem? Estou convencido de que devemos, da mesma forma, analisar e processar espiritualmente não só as nossas experiências individuais, mas também o que acontece no mundo do qual fazemos parte. É assim que entendo o cumprimento da tarefa profética que Jesus confiou aos seus discípulos, quando os desafiou para que se esforçassem por compreender os «sinais dos tempos».
No ano de 2020, a pandemia do coronavírus paralisou praticamente todo o planeta. Apenas dois anos depois, a guerra regressou à Europa sob a forma da agressão russa contra a Ucrânia e, no outono de 2023, assistimos a um ressurgimento do antissemitismo na sequência do conflito israelo-palestiniano. Estes acontecimentos suscitaram numerosos comentários de jornalistas, sociólogos e politólogos. Estou convencido de que o que acontece no mundo merece algo mais, ou seja, uma descoberta contemplativa do sentido espiritual dos acontecimentos atuais. Da mesma forma como procedemos no exame inaciano, analisemos o que esses acontecimentos provocam em nós e o que deixam em nós quando permitimos que eles entrem nesse santuário interior chamado coração ou consciência. Considero que esse é o primeiro e imprescindível passo da reflexão teológica.
Os acontecimentos do mundo, hoje, são percebidos, pela maioria das pessoas, sobretudo através dos meios de comunicação social, que sempre, de alguma forma, já os selecionam e, portanto, já os interpretam (e não podem fazer de outra maneira). Nos noticiários televisivos ou nas redes sociais, somos bombardeados por uma rápida sucessão de imagens que despertam memórias, associações e emoções de todo o tipo. Muitos desses planos rápidos referem-se a sofrimentos difíceis de imaginar, mas também despertam em nós, simultaneamente, diferentes mecanismos de defesa. Se estas imagens e as nossas reações de defesa se repetem permanentemente, isso pode levar ao entorpecimento e ao cinismo.
É possível manter a saúde mental e, ao mesmo tempo, não nos tornarmos consumidores cínicos e superficiais de informação sem a oração contemplativa? Porque permitimos que as pessoas desenvolvessem a ideia de que a oração é apenas uma estranha atividade ritual, porque deixámos que a palavra contemplação não significasse absolutamente nada para a maioria?
O método de discernimento espiritual, a análise cuidadosa do que se passa dentro de nós, em resposta aos estímulos do dia a dia, da vida quotidiana e dos momentos críticos e de crise da história, pode também ajudar-nos a discernir dois fenómenos por vezes interligados, mas existencialmente diferentes: o espírito do tempo e os sinais dos tempos. O espírito do tempo (Zeitgeist) é uma certa mentalidade da sociedade que, na maioria das vezes, surge de uma reação imediata a processos externos e superficiais; manifesta-se sob a forma de uma moda, de uma «opinião pública» ou da sugestão de massas; é marcado pela influência da publicidade, da propaganda e da ideologia. O espírito do tempo é a linguagem deste mundo. O seu meio preferido são os meios de comunicação de massa populares e populistas, que fazem parte da indústria comercial do entretenimento de massas. O espírito do tempo oferece frequentemente notícias sensacionais, fama, calúnias, desinformação, notícias falsas e, mais recentemente, falsificações produzidas com a ajuda de inteligência artificial. E, principalmente, no anonimato nas redes sociais, esses fenómenos estão a propagar-se de modo similar a doenças infecciosas.
A compreensão do sentido é fruto do discernimento espiritual, que inclui um distanciamento livre e crítico não apenas das manifestações ruidosas e sugestivas do espírito do tempo, mas principalmente dos próprios preconceitos, das
compreensões prévias e das projeções dos próprios desejos e receios. Essa liberdade interior em relação a si próprio é uma manifestação de humildade que conduz à sabedoria e à maturidade de julgamento.
Os sinais dos tempos são a linguagem de Deus, a autoexpressão de Deus através de acontecimentos na sociedade e na cultura. Os acontecimentos do mundo só se tornam sinais dos tempos através da compreensão, que pressupõe a arte de serenar e contemplar.
Só essa abordagem permite que esses acontecimentos abram o seu significado mais profundo, que permanece oculto numa abordagem superficial. A compreensão do sentido é fruto do discernimento espiritual, que inclui um distanciamento livre e crítico não apenas das manifestações ruidosas e sugestivas do espírito do tempo, mas principalmente dos próprios preconceitos, das compreensões prévias e das projeções dos próprios desejos e receios. Essa liberdade interior em relação a si próprio é uma manifestação de humildade que conduz à sabedoria e à maturidade de julgamento.
Os sinais dos tempos revelam-se principalmente nos tempos de crise e de roturas, nos momentos de passagem por espaços limiares, de «mudanças paradigmáticas». Esses momentos históricos, a morte do velho e o nascimento do novo, são normalmente acompanhados de crises e de dores. No entanto, por vezes, de forma fácil e rápida, as pessoas esquecem-se da dor, que se converte na alegria pela chegada de algo novo.
Compreensivelmente, preferimos evitar a dor e, se ela passa, esquecemo-la, fácil e alegremente. Mas, às vezes, é exatamente o encontro com a dor que se pode tornar um momento de amadurecimento. Não é simplesmente necessário passar pela dor, suprimi-la, mas sim transformá-la. Penso sempre nisso perante a imagem do Ressuscitado, que tem cicatrizes nas mãos, nos pés e no coração, feridas transformadas.
Por vezes, na dor dos tempos, é difícil reconhecer a diferença entre a dor pela morte daquilo a que temos de dizer adeus e as dores de parto daquilo que está por vir. Não estaremos hoje a viver exatamente numa tal época, papa Rafael? Não é esse discernimento parte da tarefa profética confiada aos discípulos de Jesus?
Ao refletirmos sobre o Cristianismo e sobre a Igreja na sociedade, é necessário voltar constantemente à parábola do grão que deve ele próprio morrer para dar frutos. Foi necessário dizer adeus à nostalgia da Christianitas, que o Romantismo idealizou e ideologizou. No entanto, mesmo a forma moderna do Cristianismo como visão de mundo deve ser vista como uma das formas
de Cristianismo transitórias e em falência. Estou convencido de que essa sua crise é uma oportunidade para descobrir uma forma
diferente e mais profunda de Cristianismo.
Porém, isso pressupõe procurar também uma compreensão mais profunda da fé e uma compreensão mais profunda do mistério a que chamamos Deus. Caro papa Rafael, estou cada vez mais consciente de como estes grandes temas da teologia – a Igreja, a fé, Deus – se interpenetram e se esclarecem mutuamente. Para mim, a sinodalidade começa a significar não apenas a necessidade de caminharmos juntos e de pensarmos juntos, mas também a oportunidade de percebermos, ao longo deste caminho, a compatibilidade entre temas que são, muitas vezes, discutidos separadamente. Cada passo no caminho para uma compreensão mais profunda de um dos grandes temas teológicos traz uma nova luz sobre os outros.”
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.