O som do silêncio

Hebraico, grego, latim... ou a difícil vida dos tradutores. Simon & Garfunkel e Martin Scorsese ao seu serviço!

Hebraico, grego, latim... ou a difícil vida dos tradutores. Simon & Garfunkel e Martin Scorsese ao seu serviço!

1. Como mel para a boca

Em The Sound of Silence, Simon & Garfunkel cantam: “Que ninguém ouse perturbar o som do silêncio”. Simon queria apenas denunciar a incapacidade que as pessoas têm de comunicar umas com as outras.

Mas, a questão permanece: a que se assemelha o som do silêncio, uma vez que o silêncio é precisamente a ausência de som? O texto bíblico de hoje devolve-nos esta mesma questão… ♪ ♫

 


2. Um texto bíblico

Tendo chegado ao Horeb, Elias passou a noite numa caverna, onde lhe foi dirigida a palavra do Senhor:

– Que fazes aí, Elias?»

Ele respondeu:

– Estou a arder de zelo pelo Senhor, o Deus do universo, porque os filhos de Israel abandonaram a tua aliança, derrubaram os teus altares e assassinaram os teus profetas. Só eu escapei; mas também a mim me querem matar!

O Senhor disse-lhe então:

– Sai e mantém-te neste monte, na presença do Senhor; eis que o Senhor vai passar.

Nesse momento, passou diante do Senhor um vento impetuoso e violento, que fendia as montanhas e quebrava os rochedos diante do Senhor; mas o Senhor não se encontrava no vento. Depois do vento, tremeu a terra. Passou o tremor de terra e ateou-se um fogo; mas nem no fogo se encontrava o Senhor. Depois do fogo, ouviu-se o som de um suave silêncio.

Ao ouvi-lo, Elias cobriu o rosto com um manto, saiu e pôs-se à entrada da caverna.

Primeiro Livro dos Reis 19,9-13


3. O esclarecimento

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O profeta Elias (1668), Museu Nacional de Belas-Artes de Bielorrússia, Minsk.

| DA BRISA AO SILÊNCIO |

Se abrir as distintas traduções portuguesas da Bíblia, encontrará diferentes maneiras de traduzir a expressão-chave deste texto, quando Deus se revela a Elias:

– “o murmúrio de uma brisa suave” (Bíblia dos Capuchinhos), “o murmúrio de uma leve brisa” (Bíblia para todos), “um cicio tranquilo e suave” (Almeida revista e atualizada).

– a tradução que vos apresentamos contém uma expressão paradoxal: “o som de um suave silêncio”.

 

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Washington Allston (1779-1843), Elias no deserto (1818), Museu de Belas-Artes, Boston, EUA.

Como explicar esta diferença?

  • As três primeiras traduções inspiram-se na versão grega dos LXX, a tradução realizada pelos judeus de Alexandria entre o século III a. C. e a era cristã. A LXX utiliza o termo aura, que significa precisamente uma “brisa suave”.
  • A tradução apresentada aqui segue mais de perto o texto hebraico (a que chamamos “Massorético”), que contém a enigmática expressão qol demamah daqqah, que se poderia traduzir literalmente com a expressão “voz-de-silêncio-fino”.

Esta diferença permite-nos compreender que os tradutores da Bíblia são obrigados, muitas vezes, a tomar decisões. Têm diante de si as diferentes “versões”:

  • Tradicionalmente, escolhem a versão que goza de maior autoridade no seio da sua comunidade de fé.
  • Alguns escolhem a versão que se encontra no maior número de manuscritos.
  • Outros optam pela versão ou fonte mais antiga (sendo que é preciso saber qual é!)
  • Outros ainda tomam como critério a coerência, por exemplo.

 

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Santo Elias com a espada, Adro da catedral maronita de Alepo, Síria.

| A RETER |

Esta diversidade de fontes escritas ajuda-nos a perceber que:

  • A Bíblia não é um texto monolítico que caiu do céu aos trambolhões! Ela não é tão pouco uma “mensagem pré-estabelecida” que os autores bíblicos teriam posto por escrito, quais autómatos.
  • Na inspiração e história da transmissão do texto bíblico, os homens, movidos pelo Espírito Santo, têm um papel fundamental.
  • Nesse sentido, a diversidade das versões constitui um verdadeiro tesouro. Como diz o Salmo 21 (vv. 11-12), quando “Deus diz uma coisa”, o homem “escuta duas” e, como se pode ver, escreve três!

Esta é precisamente a razão de ser do trabalho em curso na École biblique de Jérusalem, do qual cada artigo do PRIXM não é que um pequeno eco: traduzir a Bíblia “nas suas Tradições” (o programa chama-se precisamente La Bible en ses Traditions) é uma forma de celebrar, como um tesouro, a diversidade de versões que resultou de mais de 2000 anos de receção da Palavra de Deus no seio das culturas humanas.


4. E ainda uma palavra final…

No filme Silêncio (2016, realizado por Martin Scorsese), o Irmão Rodrigues, interpretado pelo ator Andrew Garfield, interroga-se regularmente a respeito do silêncio de Deus, que lhe parece insuportável. Porquê este silêncio? Qual é o seu significado? Deus está ausente e permanece indiferente perante o sofrimento? Ou, pelo contrário, está presente nesse silêncio, como no caso de Elias?

Para o descobrir… o melhor é fazer pipocas e ver o filme!  🍿🎬

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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