1. Como mel para a boca
Em The Sound of Silence, Simon & Garfunkel cantam: “Que ninguém ouse perturbar o som do silêncio”. Simon queria apenas denunciar a incapacidade que as pessoas têm de comunicar umas com as outras.
Mas, a questão permanece: a que se assemelha o som do silêncio, uma vez que o silêncio é precisamente a ausência de som? O texto bíblico de hoje devolve-nos esta mesma questão… ♪ ♫
2. Um texto bíblico
Tendo chegado ao Horeb, Elias passou a noite numa caverna, onde lhe foi dirigida a palavra do Senhor:
– Que fazes aí, Elias?»
Ele respondeu:
– Estou a arder de zelo pelo Senhor, o Deus do universo, porque os filhos de Israel abandonaram a tua aliança, derrubaram os teus altares e assassinaram os teus profetas. Só eu escapei; mas também a mim me querem matar!
O Senhor disse-lhe então:
– Sai e mantém-te neste monte, na presença do Senhor; eis que o Senhor vai passar.
Nesse momento, passou diante do Senhor um vento impetuoso e violento, que fendia as montanhas e quebrava os rochedos diante do Senhor; mas o Senhor não se encontrava no vento. Depois do vento, tremeu a terra. Passou o tremor de terra e ateou-se um fogo; mas nem no fogo se encontrava o Senhor. Depois do fogo, ouviu-se o som de um suave silêncio.
Ao ouvi-lo, Elias cobriu o rosto com um manto, saiu e pôs-se à entrada da caverna.
Primeiro Livro dos Reis 19,9-13
3. O esclarecimento
| DA BRISA AO SILÊNCIO |
Se abrir as distintas traduções portuguesas da Bíblia, encontrará diferentes maneiras de traduzir a expressão-chave deste texto, quando Deus se revela a Elias:
– “o murmúrio de uma brisa suave” (Bíblia dos Capuchinhos), “o murmúrio de uma leve brisa” (Bíblia para todos), “um cicio tranquilo e suave” (Almeida revista e atualizada).
– a tradução que vos apresentamos contém uma expressão paradoxal: “o som de um suave silêncio”.
Como explicar esta diferença?
- As três primeiras traduções inspiram-se na versão grega dos LXX, a tradução realizada pelos judeus de Alexandria entre o século III a. C. e a era cristã. A LXX utiliza o termo aura, que significa precisamente uma “brisa suave”.
- A tradução apresentada aqui segue mais de perto o texto hebraico (a que chamamos “Massorético”), que contém a enigmática expressão qol demamah daqqah, que se poderia traduzir literalmente com a expressão “voz-de-silêncio-fino”.
Esta diferença permite-nos compreender que os tradutores da Bíblia são obrigados, muitas vezes, a tomar decisões. Têm diante de si as diferentes “versões”:
- Tradicionalmente, escolhem a versão que goza de maior autoridade no seio da sua comunidade de fé.
- Alguns escolhem a versão que se encontra no maior número de manuscritos.
- Outros optam pela versão ou fonte mais antiga (sendo que é preciso saber qual é!)
- Outros ainda tomam como critério a coerência, por exemplo.
| A RETER |
Esta diversidade de fontes escritas ajuda-nos a perceber que:
- A Bíblia não é um texto monolítico que caiu do céu aos trambolhões! Ela não é tão pouco uma “mensagem pré-estabelecida” que os autores bíblicos teriam posto por escrito, quais autómatos.
- Na inspiração e história da transmissão do texto bíblico, os homens, movidos pelo Espírito Santo, têm um papel fundamental.
- Nesse sentido, a diversidade das versões constitui um verdadeiro tesouro. Como diz o Salmo 21 (vv. 11-12), quando “Deus diz uma coisa”, o homem “escuta duas” e, como se pode ver, escreve três!
Esta é precisamente a razão de ser do trabalho em curso na École biblique de Jérusalem, do qual cada artigo do PRIXM não é que um pequeno eco: traduzir a Bíblia “nas suas Tradições” (o programa chama-se precisamente La Bible en ses Traditions) é uma forma de celebrar, como um tesouro, a diversidade de versões que resultou de mais de 2000 anos de receção da Palavra de Deus no seio das culturas humanas.
4. E ainda uma palavra final…
No filme Silêncio (2016, realizado por Martin Scorsese), o Irmão Rodrigues, interpretado pelo ator Andrew Garfield, interroga-se regularmente a respeito do silêncio de Deus, que lhe parece insuportável. Porquê este silêncio? Qual é o seu significado? Deus está ausente e permanece indiferente perante o sofrimento? Ou, pelo contrário, está presente nesse silêncio, como no caso de Elias?
Para o descobrir… o melhor é fazer pipocas e ver o filme! 🍿🎬
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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Sob a direção dos Frades Dominicanos de Jerusalém, mais de 300 investigadores do mundo inteiro estão a desenvolver um trabalho de tradução e anotação das Escrituras, que será oferecido numa plataforma digital que recolherá mais de 3000 anos de tradições judaico-cristãs. Para saber mais, clicar aqui.
PRIXM é o primeiro projecto, destinado ao grande público, fruto deste trabalho. A iniciativa quer estimular a redescoberta dos textos bíblicos e dar a conhecer tudo o que de bom e belo a Bíblia inspirou ao longo dos séculos e até aos nossos dias.