O P. António está prestes a completar 80 anos. Antes de começarmos a percorrer a história da sua vida, queria perguntar-lhe como se sente animicamente?
Muito bem. Como se costuma dizer, de papo cheio. Se morrer daqui até aos 80 anos, ou logo a seguir, levo desta vida uma vida que valeu a pena viver, que vivi com muito gosto, com muita alegria e muitos amigos. Estou muito grato a Deus pela vida que me deu.
Muito bem. Isso é muito inspirador. Estive a ler o livro da sua vida até aos 63 anos (A História de Deus comigo) e uma frase que o P. António usa para se descrever, e que é um traço comum da sua vida, é “um espírito arquitetónico e de construtor”. Alguém que junta vários elementos, faz várias obras, sejam físicas, espirituais. De onde vem este espírito empreendedor, já nasceu consigo ou foi Deus que foi construindo ao longo da vida?
As duas coisas. Eu tenho uma graça enorme que foi ter nascido na família em que nasci, onde muita gente fazia coisas importantes e significativas. E isso foi muito inspirador para mim. Nunca me entendi a viver dos rendimentos. Pouco a pouco fui olhando para fora da minha família, para o mundo, a realidade, e fui percebendo que era chamado – e isto ainda não tem nada a ver com vida religiosa e ser padre – a fazer qualquer coisa no mundo e na história. Mas ninguém pode agir sozinho. Pode fazer qualquer coisa – descobrir uma fórmula química ou coisa que o valha – mas o género de coisas humanas e sociais só podem ser feitas com os outros. E foi isso que me acompanhou. A ideia de construir aproxima-se muito da ideia do gerar, produzir ser e realidade humana. É qualquer coisa inata, mas tem de ser trabalhada. É curioso… olhando para trás, eu vejo: escrevi variadíssimos livros. E o que é escrever um livro? É fazer um conjunto de capítulos, e estes têm parágrafos e os parágrafos frases e as frases palavras e as palavras letras. Isso dá uma construção que depois se passa ao papel. Nas circunstâncias concretas da minha vida, para além de tudo aquilo que fui recebendo – que é imenso e sem o qual não podia ter feito o que acabei por fazer – eu percebi sempre que precisava dos outros para, em conjunto e comunitariamente – fossem leigos, leigas, padres – podermos responder às necessidades que via à minha volta. É este sentido de resposta que é a chave de compreensão da vida humana toda, e da minha vida. Há um grande historiador inglês que diz que a compreensão da história se faz por desafio-resposta. Os desafios existem, as respostas umas vezes existem, outras vezes não. Ou outras vezes respondemos a coisas que não têm importância. Foi isso que me levou a uma série de coisas: os Leigos para o Desenvolvimento, os centros universitários, o trabalho na imigração, etc. Procurei sempre responder a uma necessidade.
Nas circunstâncias concretas da minha vida, para além de tudo aquilo que fui recebendo – que é imenso e sem o qual não podia ter feito o que acabei por fazer – eu percebi sempre que precisava dos outros para, em conjunto e comunitariamente – fossem leigos, leigas, padres – podermos responder às necessidades que via à minha volta. É este sentido de resposta que é a chave de compreensão da vida humana toda, e da minha vida.
Dessas obras, há alguma que possa dizer que lhe deu mais gozo?
Todas me deram gozo. Quando vim dos estudos da Alemanha, com o P. Vasco Pinto de Magalhães e o P. Alberto Brito fundamos em Coimbra o primeiro centro universitário, o CUMN (Centro Universitário Manuel da Nóbrega). Fomos 3. Aqui no CUPAV já fui eu sozinho. O Provincial mandou-me para aqui para fazer uma coisa ao modelo de Coimbra. É o meu primeiro filho único, digamos. Mas depois vieram os Leigos para o Desenvolvimento, o Centro São Cirilo, a ação junto dos imigrantes… Não há momento nenhum na minha vida que não tenha sido gozoso e que possa privilegiar. Foram todos bons.
E sentiu sempre a mão de Deus nessa história? Ou sentiu que as vezes andava sozinho?
Sempre, sempre. Não sei o que acontece com os que me veem de fora, mas para mim, a minha vida não tem qualquer sentido nem preocupação maior do que Deus. É uma coisa muito anterior à vocação, que aconteceu na minha infância mais remota, eu ter percebido que Deus era o absoluto da História, das pessoas, de cada pessoa e de mim próprio. As coisas organizaram-se em função do absoluto. Quando mais tarde vim a compreender qual era a vocação da Companhia de Jesus – o serviço da fé, a promoção da justiça e o diálogo intercultural -, isso correspondeu exatamente ao que estava dentro de mim, ao desafio que senti desde o início e que foi dando origem a estas respostas.
O P. António foi, ao longo da vida, criando vários projetos. Sente que continua a haver esse ardor apostólico e esse rasgo na vida da Igreja, nos mais jovens, e até na vida da Companhia? Esse desejo de dar respostas?
Sim, sim. Nas várias obras que eu, com Deus e com os outros, criei, sempre tive o espírito de fazer algo que os outros pudessem herdar, que pudesse seguir sem mim. E não deixar dívidas! Mas do que vou vendo, aqui e acolá, há muita gente a fazer coisas tão boas ou melhores do que eu fiz.
Percorrendo os principais momentos da sua vida, começando pelas origens em Arouca. Quais as principais marcas que a sua infância lhe deixou? O que herdou dos seus pais?
Herdei imenso. Eu sou o 11º filho, só há um mais novo. Já enterrei oito dos meus irmãos, e várias cunhadas. Dos meus pais, muito diferentes, muito unidos um com o outro, bons educadores – muito mais pelo exemplo do que pelas regras e ordens – herdei a coerência. Pessoas perfeitamente normais, inteligentes, cultas, civilizadas e profundamente cristãs. Foram um paradigma e um modelo. Os meus irmãos, muito diferentes e variados, também tiveram, pela sua presença, por entrarem neste xadrez, um papel muito importante. Ninguém me desviou, desiludiu, foi uma harmonia positiva que fui sentindo ao longo da minha história. Não éramos ricos, o meu pai vivia do seu vencimento. Ter 12 filhos era difícil, mas nunca nos faltou nada do fundamental. Mas não eramos pobres. Vivi num ambiente onde o que era importante acontecia, o luxo deixava-se cair e ninguém se lamentava. Nunca nos foi dado como modelo os ricos, os grandes, os poderosos, mas a fidelidade às nossas raízes para dar frutos abundantes. A minha história é muito condicionada pelas raízes e pelo primeiro tronco que constituiu a árvore da minha vida.
A minha história é muito condicionada pelas raízes e pelo primeiro tronco que constituiu a árvore da minha vida.
Na sua juventude, não era um aluno empenhadíssimo. Mas isso fui mudando…
Nada, nada. Mas houve um momento em que isso mudou. Na instrução primária, eu e mais dez pessoas tínhamos uma professora privada – era muito comum nessa altura – uma senhora de origem goesa, a D. Cristina, que era uma ótima professora. Depois estava na altura de fazer o liceu e tinha aberto o Colégio São João de Brito e vim aqui parar. Senti-me aqui muito bem, gostei dos padres jesuítas. Não fiquei fascinado por nenhum. Às vezes uma pessoa ouve “Ah fiquei fascinado, o São Francisco Xavier passou e o padre x foi atrás dele” Não senti isso, mas vi pessoas cultas, humanas, virtuosas. Uma família positiva para além da minha família de sangue. Agora, estudar? Os mínimos.
Era preferível jogar à bola…
Sim, era preferível não fazer nada, ler… não tinha pachorra para quase nenhuma das disciplinas. Andava ali nos mínimos, queria era passar. Isto tudo envolto num ótimo ambiente humano pois o colégio era muito bom, saudável e humanamente muito positivo. Muitos amigos dessa altura continuam meus amigos.
Foi o seu primeiro contacto com os jesuítas, não tinha nenhuma ligação familiar à Companhia?
Não. Mas tinha, através do meu pai, a noção de que a Companhia de Jesus era uma instituição relevante e muito considerada e respeitável.
Como era a sua vida cristã na altura?
Era relativamente praticante. Ia à missa ao domingo, fazia umas oraçõezinhas, confessava-me de vez em quando, mas não tinha perspetiva nenhuma de ser padre. Isso era uma coisa que estava completamente fora dos meus horizontes. Era um cristão mais ou menos, ‘molezinho’… era o que era…
E porque foi estudar Direito?
O que eu queria profissionalmente era ir para diplomata e para isso era preciso um curso superior. Era mais inclinado para a área da Filosofia e das Letras do que para o Direito. Mas, como tive alguns momentos de bom senso na vida, pensei: ‘Se vou para Letras, faço aquilo com uma perna às costas e sou um preguiçoso que nunca mais me curo. Posso perfeitamente, em casa com os meus amigos, ir lendo, conversando e aprendendo e pôr-me em Direito onde me vai ser exigido mais e isso é francamente melhor para a minha autoformação’. Foi, por isso, sem grande amor ao Direito.
Escolheu o caminho mais exigente?
Sim. Percebi o que era melhor para mim. Não me deixei levar pelo facilitismo, que eu acho que na vida das pessoas as prejudica imenso.
Já tão novo e com esse sentido de exigência…
Sim, era isso mesmo.
Mas gostava de sair e estar com os amigos?
Sim, imenso, e namoradas, festas, copos. Andava sempre na boa vai ela.
Aproveitou tudo?
Tudo, tudo.
Percebi o que era melhor para mim. Não me deixei levar pelo facilitismo, que eu acho que na vida das pessoas as prejudica imenso.
E foi depois do curso que surgiu a questão vocacional?
Direito não me deu nem mais nem menos do que eu esperava. Mantive-me cá em baixo, só queria acabar o curso. Ao longo deste percurso, mantive sempre uma certa preocupação social. Por exemplo, estive com o P. José Manuel Rocha e Mello nos primeiros dias do Bairro da Musgueira, quando veio para aqui a gente deslocada das obras da ponte. No segundo ou terceiro ano, reunimos um grupo de 30 rapazes e raparigas, de vários cursos, e todas as noites íamos para o Bairro da Quinta da Calçada dar aulas. Dividimos o bairro em áreas, eu era o ministro da Educação, outro era o da Saúde, e tomámos conta, responsabilizámo-nos pelo bairro. Manifestava uma preocupação saudável pelos outros. Admiro muito as pessoas, além de mim, que uma ou duas vezes por semana, das 8 às 10, não iam para o cinema nem jantar fora, mas dar aulas e fazer atividades ali
O chamamento vocacional vem dessa altura?
Às vezes há pessoas a quem acontece um evento: a morte de uma namorada, a perda de um pai, um fracasso num exame… Eu não tive nada disso. Vivia uma vida sossegada, com um bom futuro e bons projetos. Ia para diplomata por um certo brilho, internacionalismo, mas também – embora haja exceções – para ter uma vida relativamente sossegada, que me desse espaço para fazer outras coisas que eu achava mais importantes. Era esse o horizonte. Entretanto, estávamos em guerra em África e eu não me importava nada ir para a guerra colonial. Não que me interessasse matar pessoas, mas a minha ideia era: ‘Se for para Angola e Moçambique, posso fazer escolas, hospitais, essas coisas’.
Já tinha esse espírito empreendedor…
Sim, empreendedor e de contribuir para o serviço. Entretanto, fui tendo várias namoradas, e às tantas tinha um namoro já muito sério, quase noivado, embora ainda não formalizado. Estava no quarto ano de Direito e tinha que decidir o que queria. As pessoas que iam para África tinham algumas vantagens no tempo de estudos, podiam acelerá-los. Foi aí que, sem nenhum acontecimento, foi começando a surgir dentro de mim uma dúvida: mas o que é que tu queres? Será que o que tu queres é ser embaixador em Roma, com um Mercedes, um motorista a tirar-te o boné e a abrir-te a porta, uma casa maravilhosa, cocktails? É para isto que tu existes? E comecei a sentir: ‘Isto é pouco para mim, eu quero outra coisa’. Por outro lado, o sentido positivo de servir os outros, sem ainda ver bem como…. É aqui que as coisas se ligam. Comecei a perceber que podia servir como médico, advogado, mas o grande serviço é o serviço de Deus. E isso implica ser padre, com todas as consequências. Começou esta ideia, secretamente, dentro de mim.
É aqui que as coisas se ligam. Comecei a perceber que podia servir como médico, advogado, mas o grande serviço é o serviço de Deus. E isso implica ser padre, com todas as consequências.
Continuou com a sua vida de jantares?
Sim, continuei. Nem ao pai, nem à mãe, nem mesmo à minha namorada passava pela cabeça a combustão que acontecia dentro de mim… Até que às tantas disse: ‘Tenho de tomar uma decisão’. Vim falar com um padre, falei com ele duas vezes. Foi uma coisa muito precipitada… Mal feita… ‘Quando é que queres entrar’, perguntou ele. E eu respondi: ‘O mais depressa possível’. ‘Então pode ser no Dia de São José’. E eu dizia: ‘Eu sei lá quando é o Dia de São José’. ‘É 19 de março’. ‘Então está bem’. Estávamos no final de janeiro.
E ser jesuíta era o óbvio?
Sim, era. Não por qualquer desprezo por outras ordens, mas era aquela que eu conhecia e na qual me dava bem. Conhecia variadíssimos jesuítas admiráveis. Nem se me pôs sequer o problema. Pensei: ´´E aqui, esta é a minha casa’. Isto com todas as consequências… Para ela foi trágico… (de quem sou muito amigo agora, isso está tudo passado). Um grande espanto entre os meus amigos, a minha família…
Foi uma surpresa para todos?
Completa. E houve alguns que disseram: ‘Isso foi uma coisa que te passou pela cabeça, depois vai-te passar’. E já lá vão alguns anos… Quando entrei, entrei à séria, com os pés juntos. E foi aí que se deu a grande mudança. Eu até aí, com algumas notas positivas, tinha feito tudo mais ou menos. Mas entrei para o Noviciado e foi até ao limite. Se me dissessem ‘é preciso comer uma autoestrada’, eu comia uma autoestrada. É por aqui, é isto que eu quero, a qualquer preço. Fiz um Noviciado com uma grande força, tive momentos duros e outros muito consoladores e construtivos. Acho que esta imagem é boa: quando a gente põe um fato e diz ‘é este o meu fato’. E a figura de santo Inácio e de outros santos a fascinar-me… Não tive a menor dúvida de que, no fim do tempo do noviciado, podia fazer votos. Aí, como já tinha mudado esta mentalidade do mais ou menos, de ser calão e preguiçoso, meti-me à séria. Fiz a Filosofia e ainda hoje não sei como aguentei, tal era a intensidade com que estudava e ao mesmo tempo rezava e trabalhava. Foi fortíssimo. Não que me exigissem, eu é que me exigia a mim próprio. Gostei imenso da Filosofia.
Fiz um Noviciado com uma grande força, tive momentos duros e outros muito consoladores e construtivos. Acho que esta imagem é boa: quando a gente põe um fato e diz ‘é este o meu fato’.
Mas apesar de jogar à bola, já gostava muito de ler…
Sim, mas era ler devagarinho, romances, o que me agradava. Agora era estudar. A tal ponto que, desses estudos – e isso era pouco vulgar –, assim que os acabei, escrevi logo um livro de Filosofia sobre Ludwig Wittgenstein, considerado um dos filósofos mais difíceis do século XX. Isto mostra com que dedicação eu me fiz às coisas… Depois do curso de Filosofia/ Humanidades (parte em Soutelo e parte em Braga), vim fazer o magistério ao Colégio São João de Brito, ao longo de um ano. Depois punha-se a questão: ‘Para onde vou fazer Teologia?’. Estas decisões são tomadas pelo Provincial, mas sempre em diálogo connosco.
Mas o P. António sabia para onde queria ir…
Sim. Queria ir para a Alemanha porque é a melhor teologia do mundo. Mas não sabia alemão. Custa? Paciência! A minha cidade de sonho é Roma, mas nunca lá vivi. E a Alemanha – que não é a minha cidade de sonho embora me tenha dado bem lá – é onde há a melhor teologia. E era aí que eu queria, a qualquer preço.
E foi difícil?
No início foi. Chego a uma comunidade onde se fala alemão, as aulas e os livros são em alemão… Cheguei em setembro e até março foi livro, dicionário, lápis e borracha… Até que acabei, marquei o primeiro exame e nunca mais peguei no dicionário.
Foi aí que pode também conviver com os grandes teólogos?
Sim, fui para lá para isso. E tive contactos com muitos, muito bons, com o P. Karl Ranher, talvez o maior teólogo católico do século XX, cujas obras de pensamento conheço mais ou menos e é considerado admirável. Mas era um péssimo professor, complicado, confuso, era uma pessoa a atravessar o palco e a falar alto. Ele tinha outro irmão jesuíta que dizia: ‘quando tiver tempo a ver se traduzo as obras do meu irmão para alemão’. Depois fui parar a Regensburg, porque quis e porque o Provincial me deixou ir fazer um semestre fora de uma faculdade jesuíta, numa universidade civil, fora do mesmo estado e viver numa família alemã.
Foi aí que encontrei o professor Joseph Ratzinger, ainda nem era bispo. Havia uma mudança de instalações e duas ou três vezes por semana vínhamos juntos, éramos companheiros de autocarro.
Foi viver para uma família?
Sim, receberam-me lindamente. Uma gente de grande categoria, quase todos judeus convertidos, onde o irmão, a tia e a avó estiveram em campos de concentração. Foi aí que encontrei o professor Joseph Ratzinger, ainda nem era bispo. Havia uma mudança de instalações e duas ou três vezes por semana vínhamos juntos, éramos companheiros de autocarro. Era um belíssimo professor, um bocadinho tímido, e às vezes os tímidos parecem arrogantes, mas não era nada. Guardo dele ótimas recordações.
Já depois da sua ordenação, teve um período difícil. Quer partilhar connosco? Está escrito em livro, por isso não cometo nenhuma inconfidência…
Muito difícil, sim. Não vou entrar em grandes pormenores, mas isto está no livro, sim… (A História de Deus comigo).
As certezas todas que tinha vieram por água a baixo?
Algumas, nem todas. A certeza de que eu queria fazer a vontade de Deus manteve-se. Esse era o Absoluto da minha vida. Mas houve circunstâncias afetivas que me fizeram encontrar uma determinada pessoa por quem me apaixonei e que se apaixonou por mim. Então, a minha questão, que foi posta com toda a seriedade e clareza aos meus superiores, foi ‘o que é que isto significa na minha vida? Quer Deus que eu continue na minha vida, onde estava, ou quer Deus que eu, como cristão leigo e casado, siga por outro caminho?’ E isso foi extraordinariamente doloroso. Uma prova terrível, demorou mais de um ano, uma tensão enorme. Fui continuando a fazer a minha vida, até que apostei na vontade de Deus e nos sinais que Ele me dava e atirei-me de paraquedas. Depois disso tive uma experiência de Deus, de morte e ressurreição, de Deus na minha vida, insuperáveis! Quando fui ordenado, fizeram-se uns santinhos e eu escolhi uma frase de São Paulo que dizia ‘Conheço Aquele a quem acreditei’. É isso, conheci, sei bem o que isso é. E nunca mais me abandonou na vida. Tenho a certeza de que Deus me chamou para isto, posso ser fiel ou infiel, mas lá que é isto que Deus quer de mim, lá isso é.
Como foram os primeiros anos de padre?
A ideia de virmos a fundar um centro universitário já existia nessa altura, com o P. Vasco Pinto Magalhães, éramos grandes amigos, que entrou na Companhia na mesma semana do que eu. Aliás, foi muito engraçado porque eu tomei a decisão de entrar e convidei cerca de 30 pessoas para minha casa para me despedir. Disse: ‘Vasco, vem cá a casa despedir-te porque eu vou para jesuíta’. E ele: ‘Vais? Olha, é que eu também vou!’ Vivemos juntos desde o primeiro ano no Colégio São João de Brito e nunca trocamos uma palavra sobre isto.
Fui continuando a fazer a minha vida, até que apostei na vontade de Deus e nos sinais que Ele me dava e atirei-me de paraquedas. Depois disso tive uma experiência de Deus, de morte e ressurreição, de Deus na minha vida, insuperáveis!
Nas conversas que vínhamos tendo, eu e o P. Vasco, que vínhamos do meio universitário, tínhamos consciência das carências enormes neste meio. Quer-se goste ou não, o futuro passa pela universidade. O que havia nesse tempo era o Partido Comunista e a Juventude Universitária Católica (JUC), com belíssimas figuras, – Marcelo Rebelo de Sousa, António Guterres – mas não era uma presença suficiente. A ideia de fundar um centro com a nossa espiritualidade no meio da universidade já nos acompanhava, a mim, sobretudo. O P. Vasco, no início, estava um bocadinho renitente, depois foi-se aproximando, e curiosamente, por uma questão de organização de estudos, eu fiquei pronto um ano mais cedo do que ele. Mas não ia fundar um centro com uma pessoa só. O P. Alberto Brito, que é meu primo e ia um ano à minha frente, tinha sido já nomeado mestre de noviços, mas não tinha ainda noviços. Falei com ele e com o Provincial que disse: ‘Muito bem, se ele estiver disposto, tenho muito gosto’. Por isso, quem realmente iniciou em Coimbra foi o P. Alberto e eu e o P. Vasco estava na cabeça e no coração, mas só no segundo ano nos juntamos os três. E fizemos essa obra que ficou de matriz para os centros universitários.
E como foi começar do zero, literalmente pelas paredes?
Paredes poucas… Tivemos a sorte de ficar com uma casa, mas que entrava água pelo telhado, sem janelas, sem condições, muitíssimo degradada. Não conhecíamos ninguém, foi pesca à linha, andar a ver as pessoas, ir os lares universitários. Havia também o Instituto de Justiça e Paz, (sucessor de uma coisa que teve muita importância na primeira metade do século XX que é o Centro da Democracia Cristã, onde andou Salazar e o cardeal Cerejeira), onde nós íamos almoçar e jantar para tomar contacto com os universitários. Nós vínhamos todos fresquinhos, bem-dispostos, e as coisas foram crescendo sempre com a mesma lógica: responder às necessidades dos que se iam aproximando de nós.
Nós vínhamos todos fresquinhos, bem-dispostos, e as coisas foram crescendo sempre com a mesma lógica: responder às necessidades dos que se iam aproximando de nós.
E foi uma lufada de ar fresco na pastoral de Coimbra?
Foi, foi, dávamo-nos muito bem com a diocese, os bispos, o clero. Foi de facto uma experiência muito boa, marcante, e também muito apreciada ao nível da Província. Entretanto, teoricamente, o Noviciado estava em Soutelo e começou-se a pensar que era preciso uma comunidade que o envolvesse. Então, transferiu-se provisoriamente para Coimbra.
No seu livro sublinha muito a importância da vida comunitária, o facto de os três terem uma ligação muito forte, rezarem muito em conjunto, terem um discernimento conjunto.
É curioso, pois agora em Évora, onde estou, o esquema mantém-se, através do P. Alberto, que estava lá em Coimbra nessa altura. Tínhamos todas as semanas a reunião comunitária, com oração, partilha, missa, havia uma vida comunitária. De início, nem tínhamos ninguém que nos preparasse os almoços e jantares, íamos às compras, fazíamos essas coisas todas. Isso deu-nos uma coesão enorme. Estávamos sempre muito disponíveis: ‘É preciso ir ali, quem é que vai?’ Não tínhamos coutadas, embora tivéssemos especializações – pois uns têm mais jeito para uma coisa do que para outra – que tentávamos respeitar. Era uma vida com uma vida comunitária muito intensa, mas muito flexível e leve.
Queria voltar um pouco atrás cronologicamente. Quando foi ordenado padre voltou para Lisboa e em Portugal vivia-se o 25 de abril. Como foram esses primeiros tempos de padre, que teve intervenção cívica, que coisas fez nesta altura?
Eu estava em Frankfurt nessa altura e tinha sempre dificuldade em acordar. Havia um suíço, que era um chato, que chegava lá e dizia: ‘Oito horas’, e eu virava-me para o lado. E havia um americano, muito divertido, que fazia um truque formidável: ouvia os noticiários e inventava notícias: ‘Houve um atentado contra o Papa’, e eu levantava-me logo. Até que um dia disse: ‘Houve uma revolução em Portugal’. E eu respondi: ‘É pá, já é a terceira revolução em Portugal…’ Mas desta vez era mesmo…
É evidente que eu, como tanta gente em Portugal, sentia que o país tinha que dar uma volta colossal. Recebi o 25 de Abril com uma grande alegria e esperança. Mas, passado pouco tempo, comecei a perceber que as coisas não se estavam a encaminhar muito bem e foi nessa altura que, com autorização dos meus superiores, vim para Portugal para me meter nas coisas. Transferi umas aulas para a Universidade Católica e estive em tudo: nas mocas de Rio Maior, no comício de todos os partidos, no 25 de Novembro, contactei com a esquerda e a direta. Nunca ocultei a minha identidade, era uma espécie de espectador interessado.
É evidente que eu, como tanta gente em Portugal, sentia que o país tinha que dar uma volta colossal. Recebi o 25 de Abril com uma grande alegria e esperança.
Viveu as coisas por dentro…
Sim. As pessoas respeitavam-me, nunca tive problemas, e vivi uns episódios caricatos. No chamado verão quente, os grandes intervenientes foram o Partido Comunista (PC) e a Igreja Católica, e a comunicação social, à exceção da Rádio Renascença, estava toda nas mãos do PC e da extrema esquerda, pelo que era muito difícil fazer-se ouvir outra voz. O Mário Soares e o Partido Socialista eram muito valentes e muito hábeis. A Igreja começou a fazer umas manifestações de protesto contra os atentados, começou em Aveiro, Coimbra e Braga, e eu lá estive. Os governantes não se atreviam a proibir uma manifestação organizada pelo bispo. Na de Braga, aquilo aqueceu muito e alguns dos extremistas, na saída, junto à Sé, passaram pela sede do PC e, mesmo com pessoas lá dentro, deitaram-lhe fogo. Fui eu que os fui libertar, impus-me às pessoas e fui eu que os safei!
Até jornalista foi nessa altura…
Sim, com coisas engraçadíssimas, até entrevistei líderes do Conselho de Revolução. Foi um período muito rico e eu vivia isso também com um certo humor. Um trágico humor. Dá-me uma certa consolação dizer isto. Uma coisa fez-me sempre impressão: como é que o PC e a extrema esquerda, que dominavam as Forças Armadas e os meios de comunicação, permitiram que se fizessem as primeiras eleições para a Assembleia Constituinte, que foi o fim da revolução. Como é que permitiram? Eles tinham capacidade para boicotar tudo. Fiquei com a suspeita de que eles estavam convencidos de que iam ter uma maioria total. Mais tarde, vim a conhecer a Zita Seabra, que era do PC e próxima do Cunhal – ela publicou o meu livro – e perguntei-lhe: ‘Vocês na altura estavam convencidos de que iam ganhar as eleições, não estavam?’ E ela: ‘Estávamos’.
Depois dessa experiência em Coimbra, onde esteve cerca de dez anos, veio para Lisboa com essa missão de construir um centro universitário semelhante?
Dados os bons resultados de Coimbra, convinha replicar o modelo. Havia duas hipóteses, um espaço na Duque de Ávila, e estes edifícios, mais deslocados (onde é o CUPAV). Eu não tive dúvidas: é para aqui que vamos, pois precisamos de uma coisa com futuro e largueza. Foi uma luta tremenda, pois isto estava arrendado à RTP, eram estúdios. Foi o fim do mundo, mas lá consegui….
Com muita persistência e conhecimentos…
Sim, muita persistência e coisas engraçadas pelo meio.
Ao contrário de Coimbra, que se calhar não tinha tanta necessidade apostólica, aqui em Lisboa existia muita, certo?
Sim, existia e o crescimento foi muito mais rápido. Um ano depois de ter começado, o CUPAV estava em pleno funcionamento, com todas as coisas de Coimbra: serões, exercícios, cursos de iniciação à fé. Era tal a carência que nós tínhamos amigos de Lisboa que iam às nossas coisas de Coimbra. Em Coimbra tinha surgido a ideia dos Leigos para o Desenvolvimento (LD), com rapazes e raparigas que tinham acabado o curso e diziam: ‘E agora, vamos fazer o quê? Ganhar dinheiro, entrar na sociedade de consumo? Podíamos fazer mais alguma coisa, pôr os nossos talentos ao serviço de populações que necessitassem e de expressão portuguesa’. Quando cheguei a Lisboa encontrei algumas dessas pessoas e outras com a mesma ideia. Por isso aqui é que surgiram os Leigos, gerados lá, mas nascidos aqui.
Quando cheguei a Lisboa encontrei algumas dessas pessoas e outras com a mesma ideia. Por isso aqui é que surgiram os Leigos, gerados lá, mas nascidos aqui.
Como foram os primeiros tempos dos Leigos? Implicou ir para o terreno, conhecer as pessoas e necessidades?
Fui à Guiné e a São Tomé, pois Angola e Moçambique estavam em guerra. Fomos muito bem recebidos em São Tomé, mas foi tudo difícil. Os primeiros seis leigos que foram, os fundadores, souberam que iam partir no próprio dia, pois a partida foi adiada sete vezes, faltava sempre alguma coisa. Viveram meses de expectativa. No CUMN tínhamos o núcleo de 3 jesuítas e associamos logo um conjunto de animadores. No CUPAV estava sozinho, por isso o papel dos leigos foi logo de início muito forte. Há oito fundadores do CUPAV e só um é jesuíta. Desde a primeira hora que não se fez nada aqui sem eles.
Isso não foi uma relativa novidade na vida da Igreja?
Sim, mas correu tudo lindamente. Nunca houve um problema. Eu às vezes é que sou rabugento, e tal, mas faz parte…
E os outros projetos?
Pediram-me também para ficar à frente do Centro Social da Musgueira e da Rádio Renascença. Aí estive anos, ia lá várias vezes por semana, gravava muitas coisas e tinha uma voz que se ouvia em muitos sítios. Foi uma experiência jornalística muito boa.
Foi também aí que começou a ser uma voz mais requisitada para estar nos media, como comentador?
Sim. Nessa altura pôs-se também o projeto das televisões privadas…
Pois, o P. António também esteve no projeto da TVI. Mas esse não correu bem…
Eu dei força, mas não fui dos cabeças da coisa. No CUPAV fundei uma produtora de televisão, a Futuro, que produziu uma série de conteúdos religiosos, muito razoáveis, que passaram na televisão. Depois entrou-se na questão da concorrência, da economia, e estragou-se tudo.
Outra experiência foi a construção do Banco Alimentar. Como surgiu essa ideia?
Esta é uma história engraçada e quase familiar. No CUPAV reuniam-se à noite muitos grupos, como hoje, sobretudo comunidades de vida cristã (CVX). Havia um membro desse grupo que ficava muito impressionado, quando chegava às 21h15 para a reunião, ao ver sempre um homem a esgravatar no caixote do lixo. E perguntava-se o que podia fazer. Ele trabalhava em hotelaria. Aquilo ficou-me na cabeça… Havia um irmão meu, que já morreu, que também trabalhava em hotelaria, a quem perguntei: ‘Não se podia arranjar maneira de recolher as sobras dos hotéis para serem distribuídas?’ Ele foi falar com os colegas e disse que não havia nada a fazer porque não sobrava nada, distribuíam-se as sobras entre os funcionários. Um mês depois, veio ter comigo com uma revista francesa que dizia Banque Alimentaire Contra la Faim, e um número de telefone. Falou para lá e explicaram-lhe a ideia, e depois foi a França e tomou contacto com a coisa. Mas ele não tinha muitas ligações com a área social, algo que eu tinha. Arranjamos uma equipa, começámos no CUPAV e depois entraram mais pessoas e conseguiu-se um armazém. Estive desde os inícios e durante imenso tempo estive na direção do Banco Alimentar.
Portanto, uma obra que também cresceu imenso e tem um papel incrível no combate à fome em Portugal.
Formidável. Dá-me muito gosto o que se faz, os milhares de pessoas que comem devido ao Banco Alimentar.
Como é que no meio de uma vida tão intensa, com tantos desafios e responsabilidades, se mantém uma vida espiritual, sacramental e comunitária?
A vida comunitária era mais reduzida do que em Coimbra, mas almoçava sempre com a comunidade. Sempre tive a vantagem de ser notívago, tinha os grupos até às 23h30-00h00 e depois tinha o meu tempo, também de oração, até às 3 da manhã. Foi aí que escrevi os livros.
E eu tenho uma coisa que gostava que outros fizessem mais do que fazem: sei dizer que não. Sempre soube dizer não. Há pessoas que dizem sim a tudo, é uma estupidez. O nosso sistema de vida não pode ser acumular, mas selecionar, senão as pessoas ficam esgotadas.
Mas é muito disciplinado…
Sim, bastante. Como não tinha que acordar muito cedo, de manhã ia à Renascença, à Musgueira. O CUPAV tinha missa diária. Tive uma vida espiritual que nunca descarrilou. E eu tenho uma coisa que gostava que outros fizessem mais do que fazem: sei dizer que não. Sempre soube dizer não. Há pessoas que dizem sim a tudo, é uma estupidez. O nosso sistema de vida não pode ser acumular, mas selecionar, senão as pessoas ficam esgotadas. Nestes anos todos, chegava a altura das férias e eu não precisava de descansar, descansava por obrigação. Às vezes vejo os mais novos, duas gerações abaixo de mim, esgotados…
Mas o P. António também tem muita energia…
Tenho, mas também me defendo. Se dissesse que sim a tudo estava tramado. Sempre deleguei muito, responsabilizo as pessoas, não ando sempre em cima delas, tenho uma supervisão das coisas. E uma relação muito fraterna e próxima. E isso faz com que as coisas não estejam todas em cima de mim. Distribuo bem a carga.
Depois deste tempo intenso, de maior exposição e contacto com os outros, foi para Braga para uma vida completamente diferente. Como foi essa mudança?
Um dia disse ao Provincial que só tinha trabalhado em centros universitários, e que sabia fazer mais coisas, não queria ficar até à morte preso nisto. Pedi-lhe que me arranjasse outra missão e, se pudesse, que não fosse em Lisboa, pois não queria ficar aqui a fazer sombra. Fui para a Comunidade Pedro Arrupe (Juniorado/Filosofado, casa em que vivem os jesuítas na segunda etapa de formação, em Braga) para ser reitor. Uma vida completamente diferente, caseira, com mais tempo para escrever, investigar, dar aulas. Mas um reitor é sobretudo um pai, no bom sentido, sem paternalismos. O que tinha era de acompanhar, estar presente, dar exemplo, contar histórias. Também fiz lá umas obras completamente disparatas, ou engraçadíssimas…
O famoso terraço?
O terraço e outra. Eu sempre tive uma lata e um descaramento total… Éramos uma comunidade grande, de 24 pessoas, e um dia toquei à porta da vizinha e disse: ‘Sabe, felizmente, temos tido muitas vocações e não cabemos bem na sala de jantar. Não quer ir viver para outro lado? Eu arranjo-lhe um sítio e a senhora vende-me isto’. E assim foi. Foi um tempo muito interessante, dei-me muito bem. Eu não tenho tempos de adaptação, onde Deus me põe eu estou bem.
Eu não tenho tempos de adaptação, onde Deus me põe eu estou bem.
E precisa apenas de 15 minutos para se preparar…
Sim. Eu tinha esse sonho de precisar só de 15 minutos para me adaptar. Mas será que preciso mesmo? Daí segui para o Porto.
E aí, antes de lançar obra, fez uma espécie de discernimento coletivo com algumas pessoas. Como foi isso?
Nós estávamos no Porto há muito tempo, mas se a parte espiritual estava bem coberta (missas, catequese, exercícios), a parte social não. Então, fizemos um conjunto de reuniões, durante 4 ou 5 meses, em que eu lançava a pergunta: ‘Se tivessem oportunidade, qual seria a maior necessidade social a resolver?’ E daí saiu o apoio aos imigrantes. Nessa altura estávamos na primeira vaga de imigração dos os ucranianos, moldavos. Comecei nesse trabalho, a Província cedeu-me um edifício e, quando já estava metido nisso, fui nomeado para Alto Comissário para as Migrações. Fiz umas exigências que foram todas cumpridas, e quis fazer a coisa como deve ser: tive de pedir licença ao Padre Geral, ao Patriarca de Lisboa, fui falar com o líder da oposição, pois eu não era de um partido nem de outro. Nessa altura fui a Timor visitar uma comunidade dos Leigos e, quando o avião pousa lá, vem o embaixador e diz: ‘Sr. P. Vaz Pinto, está aqui ao telefone o Sr. Ministro da Presidência a perguntar se pode anunciar na Assembleia da República que o senhor aceitou ser o Alto Comissário para as Migrações’. E eu: ‘Mas com todas as condições que pus?’ E ele: ‘Sim’. Eu: ‘Então, pode’. Tive um colaborador magnífico, e que o tem sido em muitas obras, o Dr. Rui Marques, juntou-se uma equipa muito boa. Estendeu-se a ação aos imigrantes a todo o país, com os CLAI (centro local de apoio ao imigrante) e os CNAI (Centro Nacional de Apoio ao Imigrante), para centralizar tudo o que o imigrante precisa: apoio, vistos, emprego, língua, etc. E mudou-se a lei da imigração. Conseguiu-se fazer uma obra que, segundo as instâncias internacionais, é notável.
Mas foi também uma grande mudança de mentalidades?
Sim, muito grande. Teve que se lutar contra muitas coisas. Estive aí três anos. Fui convidado a continuar, mas disse que não, pois tinha-me comprometido com três anos. Quem me sucedeu foi o Rui Marques. Entretanto, ainda não tinha tido as licenças para a construção do Centro São Cirilo, no Porto. Depois pude debruçar-me outra vez sobre isto e fundar o centro, que continua vigoroso. É um edifício magnífico, mas custou muito dinheiro… Aqui aconteceu uma coisa que nunca me tinha acontecido, e era um peso que eu tinha em cima das costas: larguei o São Cirilo com uma dívida colossal. Agora já está tudo pago. Senti aquilo que os miúdos devem sentir quando chegam a casa e tiram a mochila: foi um peso que saiu.
Daí veio para Lisboa para integrar a comunidade da Brotéria. Foi um tempo mais calmo e para escrever?
Sempre escrevi, mas nunca dirigi uma revista. O Provincial pediu-me e eu disse: ‘Concerteza’, mas até um bocadinho temerário, pois a revista Brotéria tem uma grande tradição, um grande nome. Por lá fiquei uma série de anos, renovei completamente o Conselho de Redação, pois aquilo estava mortiço, e pus lá leigos com muita categoria.
Foi nessa altura que se foi esboçando a Brotéria enquanto centro cultural…
Sim, essa ideia já tinha história. Um antecessor do Pedro Santana Lopes (Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa) veio falar comigo sobre uma possível colaboração com a Brotéria e fizemos um protocolo. A ideia era ser num edifício dentro da SCML, mas depois veio esta proposta e negociou-se e ficou ali num sítio privilegiado, não podia ser melhor.
E nesses tempos ficou reitor de São Roque também?
Sim, exatamente.
Sempre tive uma ótima relação com a morte, nunca me assustou. A morte é a porta da ressurreição. Por isso, se me disserem que eu vou morrer amanhã, não me afeta nada, não preciso de mais de um quarto de hora. É só mudar de casa.
Como foi esse tempo de viver no centro de Lisboa, trabalhar no coração da cidade, numa igreja com uma história importantíssima para a Companhia?
Foi muito bem. Gosto muito de História, de São Roque, foi lá que celebrei a minha primeira missa. Animou-se muito, o que foi uma coisa consoladora. Mas pronto, a gente não fica para sempre e já estava na altura de partir para outro sítio e lá fui para Évora.
Como têm sido estes tempos em Évora?
Muito bem! É muito diferente, muito mais pacato e parado, não tem a grande vitalidade destes centros, mas está em expansão e crescimento.
Aos 80 anos sente que há alguma coisa importante que gostava de ter feito e que ainda não fez?
Não, não me lembro. Sempre tive uma ótima relação com a morte, nunca me assustou. A morte é a porta da ressurreição. Por isso, se me disserem que eu vou morrer amanhã, não me afeta nada, não preciso de mais de um quarto de hora. É só mudar de casa. O que acho agora é que tenho de continuar o que estou a fazer. Tive a surpresa de saber que vou receber as provas finais do segundo livro “A história de Deus comigo”. Estou a escrever uma coisa pequenina chamada “Caminhos de Santidade” e vou respondendo ao quotidiano.
Acho que está a fazer uma obra formidável e que o próximo Papa já vai ter que ser papa de outra maneira. Já não é possível ser-se papa como antes deste.
Como olha para a igreja hoje, com um Papa jesuíta, em caminho sinodal? O que o anima e desanima nestes tempos?
Este Papa aborda as coisas de uma maneira muito nova e corajosa, sacode muito a Igreja. Isso provoca, como é óbvio, reações muito positivas e negativas. Acho que está a fazer uma obra formidável e que o próximo Papa já vai ter que ser papa de outra maneira. Já não é possível ser-se papa como antes deste. O estilo de vida, o não viver no palácio, marcou definitivamente este estilo e é muito mais próximo do Evangelho. Muito exigente e muito positivo.
A Igreja tem problemas de corrosão e esta coisa horrível e nojenta do abuso infantil, na qual eu suponho que estamos agora a caminhar para uma muito melhor solução. Houve falhas, mas a grande falha foi o escondimento. Estão a pagar caro. A mentalidade era outra, pensava-se ‘Claro que não se pode saber porque se se sabe é uma vergonha’… Havia esta estupidez que nos está a sair caríssima. Em todo o caso, faz-se disto uma mancha completamente desproporcionada da realidade. Mas acho que vai limpar muito a Igreja.
Só mais uma coisa… Há os pessimistas e os otimistas e há uma série deles que dizem ‘Eu sou realista, nem uma coisa nem outra’. Não sei bem onde é que eu me situo, mas mais nos otimistas do que os pessimistas. E tenho um argumento formidável. No dia em que Deus achar que isto não vale a pena, não tem cura, acaba com isto. Por isso, se isto continua é porque Deus acha que isto vale a pena. É porque tem uma visão positiva. O positivo supera o negativo.
Livros publicados:
Iniciação ao Tractatus Logico-Philosophicus de Ludwig Wittgenstein – Publicações da Faculdade de Filosofia – Braga – 1982
Ateísmo e Fé I – Apostolado da Oração – 1996
Revelação e Fé II – Apostolado da Oração – 2001
Manual do Peregrino – Apostolado da Oração – 2003
A história de Deus comigo – Alêtheia Editores – 2006
Fé e existência cristã – Alêtheia Editores – 2010
O credo – síntese da fé crista – Alêtheia Editores – 2012
Iniciação à fé cristã – Paulus – 2018
Fotografias e vídeo: Rúben Marques
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.