Nasci em Setúbal, há 70 anos, numa família de “classe média”.
Os meus primeiros contactos com a pobreza foram na escola primária pública, onde vários colegas eram de famílias pobres. Apercebi-me depois que, ao terminar a quarta classe, fui o único do grupo que seguiu para o liceu. Aliás, o regime político de então tinha o seu sistema muito eficaz para erguer muros de separação entre ricos e pobres. Por exemplo, para concorrer ao liceu, era preciso ter frequentado explicações pagas fora da escola, para aprender matérias que não faziam parte do programa do ensino oficial, mas sobre as quais havia questões nos exames de admissão ao liceu. Entretanto, ainda nos meus tempos de estudante liceal, vivi uma experiência importante a partir dos meus 14 anos, por iniciativa de um professor que desafiou as turmas que acompanhava a criarem com ele uma Conferência de S. Vicente de Paulo, composta por estudantes e por ele próprio. Passámos então a visitar regularmente várias famílias num bairro de lata, inteirando-nos aos poucos das suas necessidades, às quais procurávamos dar alguma resposta com os recursos que conseguíamos arranjar. Fiquei assim a conhecer o que é viver sem água canalizada, eletricidade, esgotos, casa de banho, alimentação suficiente, condições para as crianças estudarem e os adultos trabalharem, apoio adequado nas doenças, etc. E percebi também que o nosso contributo pouco atenuava as carências daquelas famílias, cuja vida decorria de forma “invisível”, numa cidade que as ignorava.
Aliás, o regime político de então tinha o seu sistema muito eficaz para erguer muros de separação entre ricos e pobres. Por exemplo, para concorrer ao liceu, era preciso ter frequentado explicações pagas fora da escola, para aprender matérias que não faziam parte do programa do ensino oficial, mas sobre as quais havia questões nos exames de admissão ao liceu.
Quando entrei para a Faculdade de Medicina e fui viver para Lisboa, procurei ir mais longe nos contactos com famílias pobres e aderi ao Centro de Ação Social Universitário (CASU), associação que procurava a cooperação e promoção social nas comunidades de alguns bairros pobres de Lisboa. Uma das iniciativas do CASU era estimular a criação de uma coletividade em cada um destes bairros, e apoiar as suas atividades. Acompanhei durante algum tempo as reuniões da Direção da coletividade do bairro da Curraleira. Não me lembro de ter dado grandes contributos, mas ganhei grande admiração e respeito por aquele grupo de pessoas, com uma vida dura, que dedicava parte do seu tempo de descanso a manter a sua associação, escutando necessidades, promovendo iniciativas e funcionando democraticamente. Também aqui aprendi que estávamos apenas a dar os primeiros passos na abordagem dos problemas de saúde das pessoas, famílias e comunidades.
Dois acontecimentos marcantes
Durante o período em que fui estudante de medicina, houve ainda dois acontecimentos que me marcaram no que respeita à relação entre Pobreza e Saúde:
Em 25/11/67, as inundações na região de Lisboa provocaram cerca de 500 mortos e muitas pessoas desalojadas, após uma noite de catástrofe. A partir do dia seguinte, participei nas brigadas de estudantes universitários, organizadas com base na cooperação entre as associações de estudantes e a JUC, procurando chegar aos locais mais afetados e dar apoio às populações. O choque com a realidade nas zonas atingidas foi enorme, mas sempre com uma constante: as mortes e as casas destruídas ocorreram sobretudo entre os mais pobres, na periferia de Lisboa, em bairros sem condições mínimas de habitabilidade e saneamento básico. Em contrapartida, na zona rica do Estoril, onde as inundações foram mais fortes, os prejuízos foram poucos … Afinal, a principal causa da morte destas 500 pessoas foi a pobreza, numa sociedade com muitas desigualdades. E isso não se podia resolver com consultas e medicamentos, mas com mais justiça social.
Nos Verões de 1968 e de 1970, participei nas primeiras campanhas de alfabetização de adultos em Portugal pelo método de Paulo Freire, promovidas pelo Graal, respetivamente nas regiões de Portalegre e Coimbra. Este pedagogo brasileiro criou um processo de aprendizagem da leitura e da escrita em relação estreita com o desenvolvimento da “Conscientização” e da “Praxis” dos alfabetizandos, ganhando consciência das suas capacidades e construindo em conjunto projetos de libertação transformadora. Através destas campanhas, dei passos importantes na descoberta de que, na medida em que os mais pobres ganhem uma consciência crítica sobre si próprios e alarguem essa consciência ao modo como veem o mundo à sua volta, mais capacitados vão ficando para se libertarem da teia de rótulos negativos em que estão presos, aprendendo a cooperar entre si e a tomar o destino em suas mãos. Comecei mais tarde a aplicar com alguns grupos estes processos de conscientização em relação à Saúde, tomando como base a noção de que a Saúde é a capacidade de cada homem, mulher e criança, para criar e lutar pelo seu projeto de vida pessoal e original, em direção ao desenvolvimento do “ser-com”(adapt. de Christoph Djours). Optei pela carreira médica de saúde pública e pelo trabalho em concelhos rurais do interior, e estas opções têm claramente a ver com a preferência por zonas onde as comunidades têm mais dificuldades no acesso à saúde, mas, por outro lado, têm mais laços comunitários e identidade cultural.
O acesso saúde – o que se pode fazer?
As minhas experiências de Saúde Comunitária decorreram em Aljustrel, Paredes de Coura e Gouveia, entre 1975 e 2009. Na impossibilidade de as descrever aqui, saliento apenas alguns pontos em que tenho vindo a refletir, com base nessas experiências:
– Nos meios rurais do interior de Portugal, os hábitos de trabalhos agrícolas e as relações inclusivas por parte da família, vizinhos e amigos, contribuem para atenuar o grau de pobreza sofrido, sobretudo, por reformados, desempregados e trabalhadores precários.
– As dificuldades de acesso aos serviços de saúde, associadas às vezes com limitações motoras relacionadas com o envelhecimento, têm vindo a aumentar no interior rural, agravadas pela redução de serviços de saúde descentralizados e também pela menor oferta de transportes públicos, obrigando a custos extraordinários que não são comportáveis pelas populações mais empobrecidas. Daí que seja muito importante prosseguir com o investimento em cuidados continuados ao nível do domicílio, além de apoios domiciliários ocasionais.
O investimento na cooperação intersectorial e na participação cidadã é fundamental para o desenvolvimento sustentável das comunidades rurais.
– O investimento na cooperação intersectorial e na participação cidadã é fundamental para o desenvolvimento sustentável das comunidades rurais. Nestes processos, deve promover-se, sempre que possível, a integração dos Jardins de Infância e das escolas do 1º ciclo nas respetivas comunidades, funcionando em diálogo de saberes e fazeres, de forma a valorizar a cultura dos mais velhos, através da cooperação transgeracional.
– O controlo de doenças crónicas pelos serviços de cuidados de saúde primários será reforçado se houver encontros periódicos de pequenos grupos, com partilha de experiências, estimulação da entreajuda e educação para a saúde.
– Em relação às pessoas parcial ou totalmente dependentes, é muito importante a presença de fisioterapeuta e terapeuta ocupacional na equipa de saúde que as acompanha. Além disso, quem exercer funções de cuidador/a dessas pessoas, necessita ter apoio técnico regular, com encontros periódicos em grupo, para partilha de experiências e formação adequada às situações.
Enquanto o motor de um sistema social for o crescimento económico dos que detêm mais poder, as desigualdades sociais não irão atenuar-se e o fosso entre ricos e pobres aumentará
– Nos processos de animação comunitária que envolvam pessoas / famílias em situação de pobreza e/ ou exclusão social, é muito importante que as mesmas possam exprimir as suas necessidades e desejos, e que encontrem bom acolhimento por parte do grupo em que se enquadram, procurando-se, sempre que possível, que estas pessoas possam assumir algumas responsabilidades dentro do grupo.
– Só com um bom acolhimento dos imigrantes e refugiados que demandam o nosso país, e com um acompanhamento próximo do seu processo de integração, com respeito pela sua cultura, e no âmbito da saúde, educação, trabalho, comunicação, etc, será possível criar condições para que eles desenvolvam projetos de vida sustentáveis ao nível individual, familiar e comunitário.
Enquanto o motor de um sistema social for o crescimento económico dos que detêm mais poder, as desigualdades sociais não irão atenuar-se e o fosso entre ricos e pobres aumentará. Contudo, esta tendência pode ser invertida se cada um de nós se empenhar em práticas de despojamento do ter /poder/dominar, e optar por caminhos de escuta e diálogo, partilhando e cooperando na construção de projetos comunitários onde todos tenham voz e possam juntar as mãos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.