Logo na homilia da missa de início do seu pontificado, em 2013, o Papa Francisco afirmou que «a vocação de guardião (…) diz respeito a todos: é a de guardar a criação inteira, a beleza da criação, como se diz no livro de Génesis e nos mostrou São Francisco de Assis: é ter respeito por toda a criatura de Deus e pelo ambiente onde vivemos» (Nota 1).
O Papa Francisco trouxe à Igreja e ao mundo uma nova perspectiva sobre a ecologia, sublinhando a interligação entre a espiritualidade e a ecologia. A encíclica Laudato Si’ é um marco nesse sentido, chamando a atenção para a crise ambiental e propondo uma «conversão ecológica» que envolve todos os aspectos da vida humana. Nesta encíclica é patente, de novo, a inspiração de São Francisco, que, «fiel à Sagrada Escritura, propõe-nos reconhecer a natureza como um livro esplêndido onde Deus nos fala e transmite algo da sua beleza e bondade» (LS12).
O reconhecimento da Criação como manifestação do Criador e da sua bondade, para um jesuíta evoca a contemplação para alcançar amor dos Exercícios Espirituais (EE234), que nos conduz a procurar corresponder, em tudo amando e servindo a Deus.
Para cuidarmos de verdade da criação, há claramente uma dimensão espiritual a ter em conta: é essencial que se dê em nós uma «conversão». O próprio Papa Francisco reconhece ter passado por um processo de conversão, admitindo ter dito em 2007: «Mas estes brasileiros, como aborrecem com esta Amazónia! O que tem a Amazónia a ver com a evangelização?» e acrescentando de seguida «Percorri um caminho de conversão, de compreensão do problema ecológico. Antes eu não entendia nada! (…) para mim foi um caminho interior (Nota 2)». O conceito de «conversão ecológica», já utilizado pelo Papa João Paulo II (Nota 3), é central na sua mensagem e por isso apela os cristãos a uma mudança de coração e de comportamento em relação ao meio ambiente (LS216-221). Esta conversão é mais do que adoptar práticas ecológicas, trata-se de transformar a nossa maneira de ver o mundo e de nos relacionarmos com ele. Francisco afirma na Laudato Si‘ – nada menos que dez vezes – que «tudo está interligado», enfatizando que a crise ambiental é também uma crise espiritual e moral: «tudo está inter-relacionado e o cuidado autêntico da nossa própria vida e das nossas relações com a natureza é inseparável da fraternidade, da justiça e da fidelidade aos outros» (LS 70). Esta visão holística é fundamental na abordagem do Papa Francisco, que vê o cuidado da Casa Comum como parte integrante da missão da Igreja.
O reconhecimento da Criação como manifestação do Criador e da sua bondade, para um jesuíta evoca a contemplação para alcançar amor dos Exercícios Espirituais (EE234), que nos conduz a procurar corresponder, em tudo amando e servindo a Deus.
De facto, o apelo do Papa Francisco não é apenas a uma conversão individual, mas é dirigido a toda a Igreja, para que assuma um papel activo no mundo, promovendo a justiça ambiental e social. Os capítulos 5 e 6 da Laudato Si’ dão a entender que Igreja não pode limitar-se a transmitir uma mensagem religiosa, mas deve também promover acções concretas em favor do meio ambiente, desde a educação ambiental até a promoção de políticas públicas que protejam o meio ambiente. Também nisto podemos dizer que o Papa Francisco procura seguir o que escreve Santo Inácio no início da contemplação para alcançar amor dos Exercícios Espirituais, que «o amor se deve pôr mais nas obras que nas palavras» (EE230).
Podemos associar o modo integral como o Papa Francisco olha para o mundo ao início da contemplação da Encarnação, nos Exercícios Espirituais, em que se propõe:
«ver as pessoas (…) da face da terra, em tanta diversidade, assim em trajes como em gestos: uns brancos e outros negros, uns em paz e outros em guerra, uns chorando e outros rindo, uns sãos e outros enfermos, uns nascendo e outros morrendo, etc; ver e considerar as três pessoas divinas (…) como observam toda a face e redondeza da terra, e todas as gentes em tanta cegueira, e como morrem e descem ao inferno (…). E reflectir para tirar proveito de tal vista». (EE106)
Mas este olhar não basta, porque é demasiado geral para que sintamos que podemos fazer alguma coisa. Deus encarnou numa terra e numa cultura específica, assim como cada um de nós tem um local onde vive e procura viver a sua fé. Assim, também a proposta do Papa Francisco para o cuidado da Casa Comum teve uma aplicação concreta a um contexto que serve como exemplo de como podemos fazer a nossa parte em todos os contextos em que vivemos: a exortação pós-sinodal «Querida Amazónia»(Nota 4), de 2020.
Do individual ao eclesial, do geral ao particular, para voltar a agir com consciência de que cada pequena acção tem efeitos globais, é assim a proposta que o Papa Francisco nos deixa para o cuidado da nossa Casa Comum!
As Preferências Apostólicas Universais (PAU) da Companhia de Jesus são fruto de um profundo processo de discernimento, realizado ao longo de quase dois anos e envolvendo jesuítas e colaboradores. Confirmadas pelo Papa Francisco num encontro com o Padre Geral Arturo Sosa, estas quatro preferências constituem um horizonte comum para a missão da Companhia nos próximos anos. Procuram responder aos desafios mais urgentes do nosso tempo e renovar a presença da Igreja no mundo, através de uma colaboração mais plena com a missão de Cristo. As PAU propõem: mostrar o caminho para Deus mediante os Exercícios Espirituais e o discernimento, ajudando a Igreja a ser sinal do Evangelho numa sociedade secular; caminhar ao lado dos pobres, excluídos e vítimas de injustiça, numa missão de reconciliação; acompanhar os jovens na construção de um futuro com esperança, reconhecendo-os como lugar teológico; e colaborar no cuidado da Casa Comum, assumindo a responsabilidade partilhada pela criação. Estas preferências não são apenas diretrizes: são um apelo à conversão, à escuta e ao compromisso ativo com o mundo e com o Evangelho.
Notas
Nota 2 Audiência a um grupo leigos ecologistas vindos da frança, 3 de Setembro de 2020. https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2020/september/documents/papa-francesco_20200903_laici-ecologia.html#DISCURSO_DO_PAPA_FRANCISCO
Nota 3 https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/audiences/2001/documents/hf_jp-ii_aud_20010117.html
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.