“O Papa é o diretor espiritual de uma Igreja em exercícios”

É jornalista e conhece como ninguém o pensamento do Papa. Austen Ivereigh fala do caminho de aprofundamento espiritual que Francisco quer levar a Igreja a percorrer, e da exigência de uma Igreja sinodal que vive do discernimento.

É jornalista e conhece como ninguém o pensamento do Papa. Austen Ivereigh fala do caminho de aprofundamento espiritual que Francisco quer levar a Igreja a percorrer, e da exigência de uma Igreja sinodal que vive do discernimento.

Quais os principais desafios que se colocam à Igreja de hoje na Europa?

Eu diria que é a credibilidade. Após tantos escândalos, o grande problema é a distância das pessoas em relação à Igreja, essa falta de compreensão e empatia que podemos resumir na palavra credibilidade. É uma palavra que Francisco usa muito, relacionando-a com a evangelização: não podemos evangelizar se não formos credíveis. A credibilidade advém da síntese da integridade, da oferta do Evangelho. Acho que recuperar a essência do Evangelho é a tarefa principal da Igreja hoje.

Como se posiciona o Cristianismo na atual realidade europeia, marcada pelo secularismo? 

No discernimento que o Papa faz, este é o momento de recuperar o que era a Igreja nos primeiros séculos, o cristianismo que também acontecia num contexto de secularização, de paganismo. Não era uma instituição forte, com muita influência política, mas podia evangelizar pela força do testemunho, da misericórdia de Deus. Acho que ter essa força de testemunho é a grande missão da Igreja, sobretudo num contexto de secularização. Isto implica cristãos que tenham tido um encontro pessoal com Jesus Cristo. Esta é a grande análise que fez a Igreja Latino-Americana na Conferência Geral de Aparecida, em 2007: num contexto de liquidez, de fragmentação, quando os mecanismos de transmissão da fé são quebrados – a lei, a cultura e a família, os mecanismos de transmissão tradicionais – a evangelização depende da experiência de testemunho pessoal vivido pelos cristãos.

E esse é um caminho fácil? É possível recuperar essa identidade judaico-cristã da Europa?

Esse é um falso caminho. Se a Igreja está focada em recuperar terreno – sobretudo espaço e poder de influência, que em si mesmos nada têm que ver com o Evangelho – é uma distração que também faz a Igreja vulnerável, aos encantos dos populistas como Salvini, em Itália, Putin, na Rússia e Trump, nos EUA, que se oferecem precisamente para proteger uma identidade judaico-cristã, mas que não é autêntica. O Papa pensa que este não é o momento para recuperar alguma coisa, mas sim para olhar para diante e focar-se no essencial.

No discernimento que o Papa faz, este é o momento de recuperar o que era a Igreja nos primeiros séculos (…) Não era uma instituição forte, com muita influência política, mas podia evangelizar pela força do testemunho, da misericórdia de Deus. Acho que ter essa força de testemunho é a grande missão da Igreja, sobretudo num contexto de secularização. Isto implica cristãos que tenham tido um encontro pessoal com Jesus Cristo.

Como pode a Igreja, num espaço público tão plural, aprender a não ser só mais uma voz? E, dentro de si mesma, aprender a lidar melhor com a pluralidade?

A missão da Igreja é criar uma nova cultura a partir dos elementos fragmentados que existem. Tem de o fazer num caminho de humildade, não a partir do poder, mas da oferta gratuita. A grande vantagem da secularização e do pluralismo é darem oportunidade à Igreja de recuperar a gratuidade da oferta cristã. É uma grande oportunidade! É uma questão de foco: se estamos a lamentar-nos, a olhar para o passado e a tentar recuperar-nos, é um falso caminho. O desafio é ouvir o convite do Espírito Santo neste momento para a Igreja: como é que deve mudar ou reformar-se para oferecer o Cristianismo neste contexto? “A cultura do encontro” – a grande frase do Papa – consiste em criar uma cultura onde as pessoas de raças, religiões e crenças diferentes podem coexistir com respeito mútuo. Não é só tolerância, é uma tentativa de ter juntos elementos contrastantes, numa síntese que pode oferecer algo de novo a todos. Algo que não é de nenhuma identidade em particular mas pode ser uma expressão de todos. O papel da Igreja, dos cristãos, é fundamental nisso. Se os cristãos não o fizerem, ninguém o fará.

A polarização sente-se na sociedade mas também dentro da própria Igreja. Como se pode superar isto?

A polarização dentro da Igreja é uma das muitas coisas que abala a sua credibilidade neste momento. A Igreja não pode ser fator de união na sociedade se estiver dividida. A cultura do encontro tem de começar dentro da Igreja.

Perdemos por ter um discurso fechado, hermético, que nos impede de ouvir e de escutar o outro, mesmo dentro da Igreja…

Os católicos são cada vez mais tentados pela identidade, o que é normal numa situação de mudança e turbulência, onde as pessoas tendem a procurar certezas. Mas o problema é que, por vezes, tentamos construir essa identidade baseando-nos em coisas que não podem conferir essa identidade. Estamos a falar de ídolos. A missão da Igreja é oferecer a verdadeira identidade: Jesus Cristo. Mas para que Jesus Cristo seja a nossa identidade, temos que aceitar um certo nível de dúvida e incerteza. O Cristianismo não é uma ideologia, é uma pessoa. O convite aos ideólogos, dentro e fora da Igreja, é o de abandonarem esse tipo de certeza e acreditarem na verdadeira certeza que é Jesus. Mas isto não é fácil! Sobretudo porque muitos sacerdotes e jovens católicos comprometidos estão muito atraídos pelo fundamentalismo, pelo tradicionalismo, e estão a construir uma imagem da Igreja que não é real. Como se a Igreja fosse uma rocha fora do tempo, flutuando no espaço, completamente imutável. Isto não é a Igreja. Isto é Deus. Deus, sim, é imutável! Mas a Igreja tem de mudar, tem que se reformar constantemente para poder evangelizar nos tempos que estão a mudar.

Muitos sacerdotes e jovens católicos comprometidos estão muito atraídos pelo fundamentalismo, pelo tradicionalismo, e estão a construir uma imagem da Igreja que não é real. Como se a Igreja fosse uma rocha fora do tempo, flutuando no espaço, completamente imutável. Isto não é a Igreja. Isto é Deus. Deus sim, é imutável!

Há uma confusão entre Deus e a Igreja?

Há uma tendência de idolatrar a Igreja precisamente por ser uma instituição tão grande e forte. Como instituição é admirável, pelo facto de ter sobrevivido tanto tempo, por ter essa presença no mundo. A ideia do Concílio Vaticano II da Igreja como povo de Deus é muito real! Porque a instituição pode ser algo muito forte e, no dia seguinte, perder essa influência, como estamos a ver agora com a crise dos abusos sexuais. É incrível ver como era, por exemplo, a Igreja em Boston, nos EUA, ou do Quebéc, no Canadá, nos anos 60 e 70, e como é agora… A transição é dramática! A questão é saber se a Igreja será mais capaz de evangelizar neste contexto ou naquele último. Eu acho que esta humildade forçada da Igreja oferece mais oportunidades de encontro com o Jesus Cristo do Evangelho do que uma instituição forte na sociedade civil. Mas isto é difícil de aceitar, é mais fácil acreditar numa instituição forte do que num salvador débil, ou um salvador disposto a assumir a debilidade da condição humana.

Por vezes há quase uma ideia da privatização da religião. Que contributo podemos dar para que a presença da religião no espaço público seja efectiva, respeitando a pluralidade, e não nos faça renunciar, de forma quase temerosa, a essa presença?

Não podemos aceitar a visão da religião que tem o liberalismo ou o secularismo. A religião não é um assunto privado pois tem uma visão do ser humano e da sociedade! Ao mesmo tempo, temos que aceitar que o facto de sermos cristãos católicos numa sociedade com tradição cristã não nos dá nenhum direito especial. Temos de oferecer o que temos nos mesmos termos, linguagem, e métodos dos que participam numa democracia plural. Temos que prosseguir com estas batalhas – contra o aborto, a eutanásia – porque são fundamentais, mas vamos perdê-las. Em geral, temos perdido! O problema da Igreja, quando intervém nestas questões, é que procura impor os seus valores, o que pode produzir uma contra-reacção. É muito importante que a mensagem sobre a vida seja apresentada não como uma lei ou pressuposto, mas como Evangelho. A Igreja tem de compreender como pode oferecer a boa notícia da vida, não como uma restrição dos direitos das pessoas, mas uma oferta que liberta a todos. Somos impotentes num sentido: a Igreja, como tal, é incapaz de impor, de exigir. Temos de aceitar isso e aprender uma linguagem de humildade, de oferta e testemunho credível, sustentada em acções, não só em palavras.

A polarização dentro da Igreja é uma das muitas coisas que abala a sua credibilidade neste momento. A Igreja não pode ser fator de união na sociedade se estiver dividida. A cultura do encontro tem de começar dentro da Igreja.

Há pouco dizia que a Igreja necessita de se adaptar, e isso passa, necessariamente, pela tecnologia? É possível inovar sem pôr em causa a doutrina?

O Papa Francisco tem trabalhado bastante a questão da tecnologia, que tem muito potencial, sobretudo no aproximar as pessoas de forma tão rápida. Mas isto também tem muitos riscos, pois a capacidade de desacordo é muito maior. Temos que aprender a utilizar a tecnologia com discrição, discernimento. A globalização, que é fruto da tecnologia – ou talvez a tecnologia seja fruto da globalização – é uma grande oportunidade para sermos mais próximos, mas as mudanças rápidas criam um certo medo e as pessoas querem construir fronteiras para proteger-se. Uma tarefa essencial é criar espaços de pertença, de identidade, com laços de fraternidade, que sejam capazes de fornecer uma identidade e segurança, neste mundo turbulento de mudança!

Um tema que está na ordem do dia é o dos abusos sexuais. Quais os desafios que nos coloca?

Penso que para o Papa Francisco, 2018 foi um momento de conversão pessoal, sobretudo após a crise do Chile. Antes disso, ele considerava este assunto um aspecto entre uma série de prioridades. Concebia o fenómeno como sendo um tipo de pecado, um tipo terrível, mas focado na pessoa que comete os abusos. Depois do Chile, começou a ver a questão num sentido mais amplo, como um abuso de poder e de consciência, que tem uma dimensão sexual, mas que é muito mais do que isso. No fundo, é uma perversão do poder! É uma perversão terrível, que implica também a instituição, por isso, fala do clericalismo como estando na base de tudo. O clericalismo é um modelo da Igreja que é abusivo. Para o Papa, estes escândalos e revelações que temos vivido têm uma finalidade: o Espírito Santo quer que a Igreja veja e enfrente o clericalismo. E não podemos ter medo disso! Estas revelações do passado são terríveis, mas temos de enfrentá-las, admiti-las e confessá-las. Temos que ser convertidos pela sua realização porque, no fundo, a conversão nas nossas vidas só se produz a partir da raiz do problema. A Igreja como instituição não é punitiva, jurídica. Não se pode erradicar este mal simplesmente mudando o bispo! O que se exige é uma conversão do coração. Por isso, o encontro de Roma começava sempre com o testemunho de uma vítima de abusos. Foi muito, muito forte. A Igreja tem que ser convertida: de uma instituição focada em si mesma, auto-referencial, jurídica, moralista, orgulhosa, dogmática que usa o poder, para uma instituição do povo de Deus, humilde, que oferece o Evangelho no contexto que temos falado do pluralismo.

Acredita que vai existir essa conversão?

No processo de conversão, há sempre resistência em todo o lado. A Igreja tem os seus exercícios espirituais e o Papa é o director espiritual dando conselhos, advertindo sobre as tentações e convidando a Igreja a aceitar essa graça. Mas já se sabe que vai haver muita resistência… E há muita crítica, muita turbulência!

A Igreja tem que ser convertida: de uma instituição focada em si mesma, auto-referencial, jurídica, moralista, orgulhosa, dogmática que usa o poder, para uma instituição do povo de Deus, humilde, que oferece o Evangelho no contexto que temos falado do pluralismo.

Que conselhos daria à Igreja em Portugal para comunicar estes casos e lidar com eles?

Comunicar nesta matéria não é fácil. A maioria dos casos são do passado. Antes dos anos 80, os números eram totalmente inaceitáveis… Mas após 2000, estão num nível muito mais baixo. Temos de comunicar este facto ao mesmo tempo que dizemos que a revelação do passado tem que afetar o presente! Além disso, as feridas das vítimas são de agora, não são do passado. É muito difícil comunicar estas duas coisas ao mesmo tempo.

Usou a expressão “o Papa Francisco como director espiritual de uma Igreja em exercícios”. Onde nota a presença dos exercícios espirituais de Santo Inácio na ação do Papa Francisco?

É muito difícil separá-lo dos exercícios (risos)! É um homem totalmente imbuído nos exercícios, para quem o discernimento é algo muito natural. Um exemplo: na manhã em que o arcebispo Viganó publicou a sua denúncia, na conferência de imprensa a bordo do avião, o Papa não quis falar sobre isso. Apenas disse aos jornalistas para fazerem o seu trabalho! Depois, um jesuíta perguntou-lhe porque respondera assim e ele disse que agiu de acordo com uma moção (experiência interior) que teve naquele momento. É esta a experiência dos exercícios, a de sentirmos essas moções! E o Papa é um homem com uma sensibilidade incrível. Os jesuítas argentinos que conheço têm uma capacidade de ver as aparências do diabo a léguas, mesmo quando disfarçadas de coisas aparentemente bonitas, ortodoxas e religiosas. O Papa tem uma capacidade incrível de ver isso! Escrever sobre este Papa é sempre fascinante, sobretudo na sua reação à oposição. A forma como ele responde tem muito que ver com os exercícios, até as decisões que toma – de não responder ou responder de certa maneira – é por não querer entrar no círculo mimético do diabo. Respondendo a um mau espírito, há sempre a possibilidade de entrar no mesmo jogo dele. E ele tem dito várias vezes que com o diabo não se brinca!

Uma das desconfianças relativas ao Papa tem que ver com a sua confiança (ingénua, dizem alguns) na capacidade de a Igreja viver o discernimento. Acha que existe esse perigo ou é preciso uma Igreja mais madura que aprenda realmente a viver em discernimento?

Não há dúvida de que muitos ensinamentos e ações do Papa dependem do discernimento e da criação de uma cultura de discernimento na Igreja. Estou a pensar no capítulo VIII da Exortação Apostólica Amoris Laetitia. É óbvio que a Igreja não está preparada para isso! Mas, em parte, acho que é este o papel do líder, do Papa: tem de avançar e mostrar o caminho. É interessante ver quantas coisas estão a acontecer desde o início deste Pontificado. Diria que a Igreja já tem aprendido a discernir de uma forma que seria inconcebível há uns anos. Um exemplo é o Sínodo. E isso tem mudado a Igreja, acredito mesmo nisso. A Igreja agora tem a capacidade de reformar-se, de responder às exigências dos tempos modernos, exatamente como dita o Concílio Vaticano II e como acontecia nos primeiros séculos do Cristianismo. Acho que este vai ser o grande contributo deste Pontificado para a história da Igreja. Não serão as reformas da Cúria ou do Vaticano, por mais importantes que sejam – o ensino da Ecologia é importantíssimo! –, mas o que terá mais impacto a longo prazo será isso: produzir mecanismos de discernimento eclesial através da sinodalidade.

Acho que este vai ser o grande contributo deste Pontificado para a história da Igreja. Não serão as reformas da Cúria ou do Vaticano, por mais importantes que sejam – o ensino da Ecologia é importantíssimo! –, mas o que terá mais impacto a longo prazo será isso: produzir mecanismos de discernimento eclesial através da sinodalidade.

E como é que isso se liga ao recuperar do primado da consciência?

Há uma linha na Amoris Laetitia que diz: “não é a nossa função substituir consciências, mas sim formá-las”. Não é papel da Igreja substituir a consciência, mas sim formar ou educar a consciência. Muitas pessoas leram isso e pensaram: “ah, finalmente!”. Precisamos de cristãos maduros, pessoas de fé, e não de crianças à espera das decisões, que não são capazes de pensar por si e recebem ordens de cima. E a consciência não é, como pensam muitos americanos, uma possibilidade de não aplicar a lei, de evitar a lei. É sobre como aplicar a lei neste contexto e nesta situação! De tal forma que estejamos abertos à graça de Deus: o que é que Deus me pede neste contexto, dentro das minhas limitações? A ideia de consciência é muito importante, só se lhe pode obedecer no contexto real, das pessoas na vida real. Não é uma coisa abstracta, isto é mesmo muito importante! A conversão pastoral consiste em criar espaços para que a Igreja possa melhorar, para que a graça de Deus possa entrar nas situações das pessoas reais. Uma vez perguntei a um jesuíta sobre o porquê de tanta resistência a este Pontificado e ele disse-me que a resposta era simples: o Papa está a ampliar o acesso à graça de Deus, por isso há tanta resistência.

Esta entrevista resulta de uma parceria do Ponto SJ com a Rede Mundial de Oração do Papa e o Diário do Minho, e foi conduzida por Elisabete Carvalho, Flávia Barbosa e P. José Maria Brito, sj.

As fotografias são de João Pedro Quesado e da Rede Mundial de Oração do Papa.

 

Para rever a conferência de Austen Ivereigh no Espaço Vita, em Braga, pode aceder ao vídeo em baixo:

https://www.facebook.com/espacovitabraga/videos/558284371335931/

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.