O mundo foi mesmo criado em 7 dias?

Brad Pitt, Miguel Ângelo e Santo Agostinho estão connosco esta semana para nos ajudar a ler um dos textos mais conhecidos do livro do Génesis.

Brad Pitt, Miguel Ângelo e Santo Agostinho estão connosco esta semana para nos ajudar a ler um dos textos mais conhecidos do livro do Génesis.

1. Como mel para a boca

O filme A árvore da vida, com Brad Pitt, Palma de Ouro do Festival de Cannes em 2011, começa com a recitação de um versículo do livro de Job: “Onde estavas tu, quando lancei os fundamentos da terra?” (Job 38,4). Neste momento, o realizador Terrence Malick convida-nos a contemplar uma sequência de imagens que evocam o processo da criação do mundo. Tudo ao som de Lacrimosa de Preisner… Ou seja, dois minutos espetaculares, a não perder!

 

 


2. Um texto bíblico

No princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas. Deus disse:

– Faça-se a luz.

E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. Deus chamou dia à luz, e às trevas, noite. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o primeiro dia. Deus disse:

– Haja um firmamento entre as águas, para as manter separadas umas das outras.

E assim aconteceu. Deus fez o firmamento e separou as águas que estavam sob o firmamento das que estavam por cima do firmamento. Deus chamou céus ao firmamento. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o segundo dia. Deus disse:

– Reúnam-se as águas que estão debaixo dos céus, num único lugar, a fim de aparecer a terra seca.

E assim aconteceu. Deus chamou terra à parte sólida, e mar, ao conjunto das águas. E Deus viu que isto era bom. Deus disse:

– Que a terra produza verdura, erva com semente, árvores frutíferas que dêem fruto sobre a terra, segundo as suas espécies, e contendo semente.

E assim aconteceu. A terra produziu verdura, erva com semente, segundo a sua espécie, e árvores de fruto, segundo as suas espécies, com a respectiva semente. Deus viu que isto era bom. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o terceiro dia. Deus disse:

– Haja luzeiros no firmamento dos céus, para separar o dia da noite e servirem de sinais, determinando as estações, os dias e os anos; servirão também de luzeiros no firmamento dos céus, para iluminarem a Terra.

E assim aconteceu. Deus fez dois grandes luzeiros: o maior para presidir ao dia, e o menor para presidir à noite; fez também as estrelas. Deus colocou-os no firmamento dos céus para iluminarem a Terra, para presidirem ao dia e à noite, e para separarem a luz das trevas. E Deus viu que isto era bom. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o quarto dia. Deus disse:

– Que as águas sejam povoadas de inúmeros seres vivos, e que por cima da terra voem aves, sob o firmamento dos céus.

Deus criou, segundo as suas espécies, os monstros marinhos e todos os seres vivos que se movem nas águas, e todas as aves aladas, segundo as suas espécies. E Deus viu que isto era bom. Deus abençoou-os, dizendo:

– Crescei e multiplicai-vos e enchei as águas do mar e multipliquem-se as aves sobre a terra.

Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o quinto dia. Deus disse:

– Que a terra produza seres vivos, segundo as suas espécies, animais domésticos, répteis e animais ferozes, segundo as suas espécies.

E assim aconteceu. Deus fez os animais ferozes, segundo as suas espécies, os animais domésticos, segundo as suas espécies, e todos os répteis da terra, segundo as suas espécies. E Deus viu que isto era bom. Depois, Deus disse:

– Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra.

Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher. Abençoando-os, Deus disse-lhes:

– Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra.

Deus disse:

– Também vos dou todas as ervas com semente que existem à superfície da terra, assim como todas as árvores de fruto com semente, para que vos sirvam de alimento. E a todos os animais da terra, a todas as aves dos céus e a todos os seres vivos que existem e se movem sobre a terra, igualmente dou por alimento toda a erva verde que a terra produzir.

E assim aconteceu. Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o sexto dia.

Génesis 1,1-31


3. O esclarecimento

Hoje em dia, este texto está envolto em polémica:

– “à direita”, os criacionistas interpretam literalmente esta passagem, como se o texto descrevesse a história do mundo logo a seguir ao Big Bang;

– “à esquerda”, outros criticam a Bíblia por ser um relato infantil e ultrapassado.

Mais, será que o mundo foi mesmo criado em 7 dias?

 

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Jerónimo Bosch (1450-1516), A criação do mundo (1504), Museu do Prado, Madrid, Espanha.

Esta obra é composta por duas partes. Quando os painéis estão fechados (esta imagem), vemos representado um globo fervilhando de vida e de fenómenos aquáticos, minerais e vegetais, que evocam o terceiro dia da criação. Quando os painéis se abrem, abre-se ao olhar o jardim da criação (ver a imagem seguinte).

Antes de mais nada, é preciso recordarmo-nos que a Bíblia contem dois relatos da Criação:

1. O que nós vos apresentamos hoje, aqui (Gn 1)

2. O relato da chamada história de Adão e Eva (Gn 2-3)

Ora, estas duas passagens contradizem-se mutuamente a respeito da ordem da criação das criaturas: em Génesis 1, o ser humano é a última criatura a ser criada; em Génesis 2, o ser humano é criado antes dos animais. Porquê uma tão flagrante contradição? Qual destas duas versões é a mais científica?

Nenhuma das duas! Porque nenhuma delas tem a pretensão de nos oferecer um relato científico. Sim, a Escritura é verdadeira, mesmo e sempre, mas a verdade das Escrituras diz respeito à salvação, não à constituição científica do universo.

 

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Jerónimo Bosch (1450-1516), O jardim das delícias (1504), Museu do Prado, Madrid, Espanha.

Ao exibir de forma tão flagrante estas dissonâncias, a Bíblia mostra ela mesma que não pode ser lida sempre de forma literal. A Bíblia pressupõe a inteligência do leitor, pedindo-lhe que vá mais longe na interpretação. A Bíblia é uma coleção de textos de géneros literários muito distintos. É preciso aprender a identificá-los, se queremos lê-la corretamente. Eis aqui uma lista não exaustiva destes géneros literários:

  • O Cântico dos Cânticos convoca toda a arte da poesia erótica antiga para nos oferecer uma descrição da beleza do corpo feminino;
  • Ao longo de toda a Bíblia, as parábolas servem sobretudo para ilustrar as atitudes que os seres humanos podem assumir;
  • O livro de Jonas é um conto que narra as aventuras de um profeta que sobrevive a uma breve passagem pelo ventre de uma baleia!
  • Diversos anais e arquivos reais parecem ter deixado uma marca na forma final do livro dos Reis;
  • Os Atos dos Apóstolos tem semelhanças com as crónicas ou jornais de viagem dos historiadores antigos;
  • Quanto ao texto de Génesis 1, trata-se de um hino, com refrão e tudo!

 

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Miguel Ângelo (1475-1564), A criação de Adão (1508-1512), Capela Sistina, Vaticano.

Querer ler os relatos bíblicos com as lentes da ciência é simplesmente um erro de interpretação. Porque que é que havíamos de exigir deste poema uma precisão científica que ele nunca quis ter? Quem ataca este texto sob pretexto de que o mundo não foi criado em 7 dias tem razão quantos aos factos, mas ainda não entendeu nada:

  • claro que o mundo não foi criado em sete dias e os criacionistas são os primeiros a enganar-se, quando tomam o texto à letra;
  • dito isto, o número sete é significativo. Génesis 1 utiliza-o como um número simbólico (7 como os 7 dias da semana), para ritmar este hino litúrgico, que exprime de forma tão bela aquilo que o ser humano está chamado a ser no seio da criação, no tempo e na História.

Neste hino inaugural, a Bíblia transmite-nos verdades acerca de Deus, do mundo e do homem, que são bem mais do que “verdades científicas”. Mais do que isso: a Bíblia não se limita a informar-nos, mas convida-nos a tomar na parte no louvor que as criaturas elevam até ao Seu criador.

 


4. E ainda uma palavra final…

Este relato insiste sobre a beleza da Criação. Para os Padres da Igreja, esta beleza é uma das vias para o (re)conhecimento de Deus. Ouçamos Santo Agostinho:

“Interroga a beleza da terra, interroga a beleza do mar, interroga a beleza do ar que se dilata e se difunde, interroga a beleza do céu, […] interroga todas estas realidades. Todas te responderão: ‘Vê como somos belas!’ Mas, a sua beleza é apenas um indício. Estas belezas sujeitas à mudança, quem as criou senão o Belo, Aquele que não está sujeito à mudança?”

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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