O maior dos mistérios

Teria vislumbrado Maria, naquela terra distante, pobre, quase esquecida, do outro lado do grande oceano que nos separa? Com o seu bebé nos braços, atenta a quem a acompanhava, caminhava como quem sabe o seu destino.

Teria vislumbrado Maria, naquela terra distante, pobre, quase esquecida, do outro lado do grande oceano que nos separa? Com o seu bebé nos braços, atenta a quem a acompanhava, caminhava como quem sabe o seu destino.

Atravessar um oceano implica sempre correr riscos. Não é apenas a distância, nem a imensidão do mar. Não é apenas a luz do sol que nos encandeia, quando nos atrevemos a olhar por cima, para o azul mais azul, aquele que vive acima das nuvens. Não é o incómodo do aperto das cadeiras que reclinamos, sempre com receio de entornar um copo de água esquecido na mesa aberta de alguém que adormeceu. Não é apenas a distância, medida em horas, acertadas à mão, num relógio barato, porque é assim que se viaja para aquele lado do mundo. Atravessar um oceano implica sempre correr riscos, porque nos espera outro mundo, outras gentes, outra forma de viver, de comer, de falar e andar pela rua.

Quando chegámos, o calor apanhou-nos de repente, numa mistura de cansaço, de humidade, de pressa em chegar às malas, que avançam sempre devagar, teimosas em não aparecer, tombadas muitas vezes, umas com mossas, outras cheias de cor.

Tudo se tornou mais tranquilo sob a brisa do ar condicionado de um grande autocarro, onde as vozes se ouviam duas a duas, naqueles primeiros momentos em que só falamos com o vizinho do lado. Era uma grande viagem, não só por causa da distância, mas também pela ambição de visitar muitos lugares, muitas igrejas, com muitas histórias por contar. No segundo dia, já se trocavam sorrisos na sala do pequeno–almoço, entre pratos cheios de fruta fresca e as especialidades do sítio.

É verdade que no caminho do aeroporto para o hotel fui olhando, surpreendida, para passeios cheios de gente, paredes grafitadas, anúncios muito coloridos, pendurados de forma improvisada em portas e janelas. Os cabos elétricos pareciam ninhos de grandes pássaros, que formavam manchas escuras ao longo das ruas. Homens e mulheres iam e vinham, como se tivessem pressa de chegar a algum lado, ou como se apenas quisessem deixar para trás a confusão que os incomodava.

Quando deixámos a grande cidade, descobrimos morros cobertos de casas que cresciam encosta acima, tijolos em cima de tijolos, janelas abertas, portas escancaradas. Os cães dormiam nos passeios, indiferentes a tudo e a todos. E, aos poucos, o verde tornou-se senhor, forte, intenso, variado nas formas e nas cores. Árvores altas e baixas, arbustos cheios de flores e outros ressequidos, tudo era cor, por ali abandonada, desconhecendo qualquer poda ou cuidado. A força da natureza que sobrevive a tudo e a todos.

Depois visitámos as igrejas. Muitas. Ouvíamos com atenção as explicações cheias de datas e nomes, o barroco e o rococó que nos recordavam impérios passados, reis e rainhas, terras outrora dominadas. Saímos da pobreza das estradas, para a riqueza do ouro. Primeiro a madeira trabalhada, recortada, capaz de mostrar emoções, surpresas e devoções. Depois as folhas de ouro muito finas, colocadas uma a uma, acariciadas com a devoção de quem trabalhava a pensar no céu. E as imagens. Umas pequenas e delicadas, outras grandes, que nos obrigavam a olhar para cima, a procurar a distância certa para mais uma fotografia que nos recordasse o lugar e o espanto. Umas lindas, outras menos. Umas capazes de nos pedir uma oração, uma súplica. Outras apenas a admiração da obra. E continuávamos. Mais uma paragem, mais uma cama diferente, uma comida servida em mesas partilhadas, já entre gargalhadas e confidências. Para chegar a outra igreja, outra surpresa. Não parecia ser possível encontrar-se tanta beleza por detrás das paredes estragadas, das pedras gastas dos degraus que subíamos, das terras pobres que atravessávamos.

Quando chegámos ao grande santuário, era de noite. Também por lá, as iluminações do Natal quase explodiam tal a profusão de laços, árvores coloridas, grinaldas de luzes. Como tudo seria mais belo, sem tantas luzes, pensei.

Vínhamos das terras pequenas, onde só a beleza da madeira, da cor, do ouro e das pedras nos seduzia. Mas quando entrámos e descobrimos a tão pequena imagem de madeira da Senhora mais bela, tudo se aquietou. Afinal estava ali a pequenez, a humildade, a verdade da Mãe do Céu.

Naquele momento, lembrei-me de uma jovem mãe que, numa das muitas terras por onde passámos, caminhava pelo passeio de uma rua esburacada, com o seu filho ao peito. De chinelos nos pés, assim o levava, apoiado num braço, enquanto lhe dava leite ao ritmo do seu andar. Jovem, muito jovem, ia acompanhada por outra mulher, numa conversa só delas. Fiquei a olhar, segui-lhes os passos. Queria ter conseguido fotografar um dos momentos mais belos da nossa viagem. Mas já tinha passado, ficado para trás.

Teria vislumbrado Maria, naquela terra distante, pobre, quase esquecida, do outro lado do grande oceano que nos separa? Com o seu bebé nos braços, atenta a quem a acompanhava, caminhava como quem sabe o seu destino.

O Advento tem esta capacidade de nos fazer antever o maior mistério da nossa Fé. Deus criador do céu e da terra, encarnou, fez-se homem, nasceu menino, tão pequeno, tão frágil, tão dependente, como aquele bebé que vi passar ao colo de sua mãe. A Ressurreição provoca-nos, levanta dúvidas e questões. Dizem-nos que sem a Ressurreição de Jesus, éramos como ovelhas perdidas, sem rumo, capazes de cair em qualquer abismo. E fazemos tanto barulho à volta do Natal, ficamos tão presos ao brilho das luzes e ao rasgar dos papéis que embrulham torres de presentes, que quase esquecemos o maior dos mistérios, o que nos anuncia a encarnação do próprio Deus.

Agora, quando olho para trás, agradeço reconhecida, a brevidade do tempo que me deixou vislumbrar Maria.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.