Falar de Francisco é reconhecer, com gratidão, um homem tocado pelo Espírito, cuja vida e ministério foram moldados pela espiritualidade inaciana. Neste texto, procuram-se identificar alguns traços fundantes dessa espiritualidade vivida, não como teoria, mas como carne e sangue, oração e missão, num homem que se deixou transformar para, em tudo, amar e servir.
Liberdade interior: o que primeiro salta à vista. Em tudo o que diz, faz e nas suas relações, se revela essa atitude pronta e disponível, para ir ao encontro, acolher e comunicar, despojado de receitas e condicionamentos, mas centrado no bem maior, no mais construtivo. Como quem tem assimilada a “indiferença inaciana”, tantas vezes mal-entendida, mas é ser como o fiel da balança que apenas se move para onde pesa a vontade de Deus. Enfim, pronto a fazer o que Jesus faria.
Discernimento: o Papa Francisco divulgou este conceito. Passou a estar nas bocas do mundo, políticos, jornalistas, etc. Nem sempre bem-entendido, mas fica o desafio de ser a condição necessária para o diálogo e para o crescimento, a importância da sabedoria e do pensamento crítico. Trata-se de um processo de ponderação que leva a distinguir estados de espírito e a fazer boas escolhas.
Obediência à missão recebida: assumir a responsabilidade e a autoridade (que não é poder, mas ser autor), com frontalidade e compaixão na avaliação e resposta às grandes questões do nosso tempo, sociais, políticas, éticas e religiosas. Veja-se como abordou, com denúncia e anúncio, por exemplo, o “clericalismo”, o “mundanismo”, os inimigos ferozes vindos de dentro da Igreja, a pedofilia, as guerras, os migrantes, o descarte de pessoas, a urgência ecológica, e toda a espécie de abuso, etc.
O Sentir com a Igreja: o verdadeiro e atualizado modo inaciano de ter sentido de Igreja: aberta a todos, inclusiva, atenta aos jovens, crianças e casais, famílias em dificuldade, marginais. Por uma Igreja em saída, hospital de campanha. Que inclui o apelo à oração, à esperança e à partilha; bem como ao “terceiro grau de humildade”.
O mais urgente, o mais necessário, o mais universal, o que somos chamados a criar: com grande coragem apostólica e criatividade pastoral, podemos apontar o implementar de três grandes processos como resposta aos sinais dos tempos. Assim: primeiro, o caminho da fraternidade, hoje; depois a inclusão da mulher; e o desafio da sinodalidade. 1º) O Papa Francisco, inspirando-se na Admoestação Fratelli Tutti’ de Francisco de Assis aos seus irmãos, aponta-nos uma verdadeira saída para a frequente tentação de se ficar bloqueado entre dualismos, sem saída. É dramático que o mundo se tenha dividido: se defendo a Igualdade, bloqueio a Liberdade; se priorizamos a liberdade, desistimos da igualdade. Ora, não somos iguais, somos irmãos. E isso corrige a liberdade libertina, entendendo-a como a capacidade de escolher o melhor, o mais ajustado nas diferenças que, afinal, são uma riqueza. (O próprio ideal da revolução francesa esqueceu a fraternidade!). Santo Inácio, a propósito do discernimento, lembra como tantas vezes não se trata de escolher entre A e B, o caminho pode ser C! 2º) Em relação ao lugar da mulher na sociedade e na Igreja, têm sido muito estimulantes as escolhas e as missões que o Papa tem confiado a mulheres. 3º) Por fim, o caminho sinodal: está lançado e não deve ser apressado, mas atento e discernido na escuta de todos. A tentação do “rapidismo” e da aparência de bem, sempre nos pode enganar. Mas a paciência e a verdadeira esperança não enganam.
Sinais da prática dos Exercícios Espirituais: A) o estilo e modo de ser na relação com Deus, com os outros e com a natureza; vendo o lado bom! B) a prioridade dada à oração, à leitura sobre a vida com pequenos propósitos e ação de graças frequente. Sempre “pedir o que quero” (a vontade de Deus). C) o “em tudo amar e servir”, da “Contemplação para alcançar amor” é o retrato do Papa. D) a proximidade (aos outros, à vida simples e comunitária, aos pobres e ricos, como fala nas entrevistas e aproveita as viagens, etc.). Lembremos o seu testemunho ao deixar de viver em “palácios vaticanos” para habitar com outros e como os outros, escolhendo para si a casa de Santa Marta. E) a partilha em simplicidade das suas regras em “Ordenar-se no comer”. F) o cuidado, o humor e a humanização (cf. Evangelii Gaudium). G) a presença e o lugar de Nossa Senhora, no seu dia a dia: “Maria, a Mãe da evangelização”.
O Coração de Jesus: a última Encíclica do Papa Francisco Dilexit nos, “amou-nos” (Rom 8,37), lançada em outubro de 2024, poderia parecer mais um traço de espiritualidade jesuítica do que inaciana, mas aqui não é separável. O Papa começa por revisitar a história da devoção ao “Amor humano e divino do Coração de Jesus”. Considera-o essencial. E vê nesse Coração o símbolo do centro da identidade de cada um e a fonte da verdadeira comunhão, da entrega e do acolhimento: unificando vontade libertada, inteligência discernida e afeto amadurecido. O Papa toma para si esse apelo e vocação. E, depois de lembrar o testemunho de tantos santos, desenvolve as “Ressonâncias na Companhia de Jesus”. Começa em São Cláudio de la Colombière (séc. XVII) até hoje, passando pelo encargo que os jesuítas receberam em 1883: “a Companhia de Jesus aceita e recebe com espírito pleno de alegria e gratidão o suavíssimo encargo, que lhe foi confiado por Nosso Senhor Jesus Cristo, de praticar, promover e propagar a devoção ao seu diviníssimo Coração” (XXIII Cong. Geral S.J.). Diz o Papa Francisco: “Neste mundo líquido, é necessário voltar a falar do coração; indicar onde cada pessoa, de qualquer classe e condição, faz a própria síntese”. “O Coração de Cristo é êxtase, é saída, é dom, é encontro. Nele tornamo-nos capazes de nos relacionarmos uns com os outros de forma saudável e feliz, e de construir neste mundo o Reino de amor e de justiça. O nosso coração unido a Cristo é capaz deste milagre social”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.