Elluz Pernia (EP) e Maria Teresa Uruena (MTU) estão ligadas a projetos de educação e desenvolvimento que têm a Amazónia como pano de fundo. Estão também envolvidas na preparação do Sínodo da Amazónia que terá lugar em outubro no Vaticano. Recentemente, vieram à Europa passando por Portugal a convite da Fundação Gonçalo da Silveira. Nesta entrevista, de que hoje publicamos a primeira parte, ajudam-nos a compreender a complexidade da situação vivida atualmente na Amazónia.
Elluz Pernía é Venezuelana trabalha na rede de escolas Fé e Alegria, numa escola que se situa em Santa Teresa de Uairen, comunidade indígena situada na fronteira da Venezuela com o Brasil. Trabalha com crianças de 6 e 7 anos, procurando sensibilizá-las paras as questões relacionadas com a Amazónia.
Maria Teresa Uruena (MTU) é Columbina e desenvolve a sua atividade no âmbito do Serviço Jesuíta Panamazónico (SJPAM). A SJPAM é uma organização da Conferência de Provinciais Jesuítas da América Latina (CPAL) que tem como objetivo articular o trabalho que a Companhia de Jesus está a fazer a nível de toda a Amazónia.
Trabalhando em prol da proteção e da preservação da Amazónia, da sua biodiversidade e das suas comunidades, quais são os desafios que enfrentam diariamente no vosso trabalho?
Maria Teresa Uruena – Os desafios que vivemos enquanto Amazónia, embora esta região possa ser entendida como uma região distante [para quem vive na Europa] são desafios partilhados com toda a Humanidade. A Amazónia é um bioma muito importante para o equilíbrio climático do Planeta. Então parte do que queremos dizer nesta visita é que «não se sintam afastados desta realidade, porque esta realidade toca-nos a todos.» Mas os principais desafios que temos estão relacionados com o extrativismo, principalmente. Este é um modelo de desenvolvimento económico que converteu a natureza e a todos os seus recursos em meras mercadorias para explorar. E essa exploração conduziu a situações de violência e de empobrecimento das comunidades locais e a violações dos Direitos Humanos.
Como é que a instabilidade política que se vive na América do Sul está a afetar a zona amazónica e as suas comunidades?
MTU – Temos uma complexidade muito grande, porque a Amazónia é constituida por nove países distintos. Politicamente, não há uma homogeneidade. Há uma grande diversidade. O que temos como ponto em comum é esta perspetiva de sermos um bioma, um ecossistema partilhado a partir de uma visão mais ecológica. Contudo, a nível político temos desafios muito distintos. Por um lado, temos a realidade venezuelana que é bastante complicada. O governo permitiu a extração numa zona ecologicamente muito importante que é o Arco Mineiro. Também temos a realidade do Brasil, onde neste momento os povos indígenas se têm visto bastante ameaçados com as políticas do Governo. De tal maneira que os indígenas do lado brasileiro têm passado para o lado venezuelano a pedir ajuda e proteção. No Perú e noutros lugares temos a perseguição de líderes ambientais e líderes indígenas e ainda casos de violação dos Direitos Humanos. Por isso, apesar de serem governos distintos, muitos favorecem o modelo extrativista. E junto com este modelo extrativista ou antes dele vêm processos de violência e de desestruturação do tecido social. Estas são as coisas mais fortes que nos preocupam agora.
Politicamente houve uma tentativa de se criar uma zona de cooperação entre os vários países, mas isso não funcionou na prática.
Como é que os distintos países chegam a acordo no que toca à Zona Amazónica enquanto território partilhado? Ou isso não existe, politicamente?
MTU – Politicamente houve uma tentativa de se criar uma zona de cooperação entre os vários países, mas isso não funcionou na prática. Este acordo é o Tratado de Cooperação Amazónica que existe, mas que não funciona. O que, sim, está a funcionar entre os vários países é que, desde o ano 2000, os governos chegaram a acordo para levar a cabo uma série de projetos de infraestruturas e de desenvolvimento, através da Iniciativa para a Integração Regional Sul-Americana (IIRSA), com dinheiro do Banco Mundial e dinheiros públicos. Esta é uma nova estrutura que está a nascer. A Amazónia tem integrado projetos de energia (barragens hidroelétricas) e também projetos de interconexão fluvial que pretendem conectar o Oceano Atlântico com o Oceano Pacífico, atravessando uma parte do Rio Amazonas. Para isto os governos, sim, conseguem chegar a acordo. Outra forma de cooperação é que, pelo menos em alguns países, estão a tentar constituir corredores biológicos, como no caso entre a Colômbia e a Venezuela. Contudo, estes acordos avançam muito mais devagar do que aquilo que desejaríamos. O que avança com rapidez são os projetos de infraestruturas e de desenvolvimento.
Há participação local por parte das comunidades indígenas e de todas as outras comunidades que vivem na Amazónia, para que possam falar com os seus governos, ter algum tipo de participação e fazer algum tipo de exigências junto destes?
MTU – Um aspeto que faz parte da história dos nossos países, é que eles são demasiado centralizados e a Amazónia sempre foi considerada o nosso quintal. Nunca foi vista como um lugar importante. Por isso, politicamente, estamos a falar de territórios muito abandonados. Por outro lado, estamos a falar de zonas que não estão ligadas, que estão dispersas geograficamente. E isso também dificulta ainda mais que as pessoas possam levar a cabo processos de exigência para com os governos locais. Deslocar-se desde o local onde se vive até à câmara municipal ou à capital mais próxima é algo muito custoso e distante. Ao nível dos direitos dos povos indígenas existe em vários dos países amazónicos o reconhecimento dos seus territórios coletivos. Contudo, o que temos visto é que cada vez mais se pratica o extrativismo que ameaça os direitos sobre a propriedade da terra. Os outros povos não têm as mesmas garantias que têm os povos indígenas.
Elluz Pernía – Gostaria de acrescentar uma coisa. Os povos indígenas também se têm envolvido em trabalhos ligados ao extrativismo como forma de exploração da natureza. Seja porque lhes foi ensinado ou porque viram. Sabem que, ao trabalhar numa empresa petrolífera ou na extração de minérios vão receber algum dinheiro com o qual podem comprar várias coisas. Por isso, em várias comunidades indígenas as pessoas vão abandonando a sua cultura agrícola e pecuária e passam a trabalhar em algo mais fácil e mais lucrativo. Vão esquecendo o cuidado e a proteção da Natureza que sempre foi essencial para as comunidades indígenas. Vão perdendo esta ligação e começam a utilizar e a destruir a Natureza. Pensam apenas no momento e não no futuro. Este problema aconteceu especialmente com a minha geração [30-40 anos] e a dos meus pais. A geração dos meus avós mantém esta cultura de proteção e cuidado com que sempre cresceram e viveram. Na minha geração e na anterior, já vimos outra forma de vida e de trabalho. Fomos esquecendo este sentimento de pertença, de cuidado.
Como é que a educação pode responder a esta situação?
EP – Nas escolas Fé e Alegria procuramos trazer avós e avôs para a escola e fazemos atividades com eles e com as crianças para que possam conhecer esta cultura e valorizar outros saberes. A Educação nesta zona sempre foi importada. Os livros, recursos didáticos, materiais, vêm das cidades e de outros lugares. Nas escolas Fé e Alegria percebemos que com este tipo de educação as crianças perdem parte da sua cultura. Por isso, queremos trabalhar a partir de materiais didáticos, materiais de aprendizagem que nascem de cada contexto, de cada sociedade, segundo a realidade em que estejamos inseridos. Porque a minha comunidade na Venezuela não é igual a um comunidade indígena do Perú, da Bolívia, ou do Brasil.
Neste momento os povos indígenas estão bastante ameaçados com as políticas do Governo [brasileiro].
Como fazer este caminho de criar uma relação mais justa com os povos indígenas da Amazónia, em todas as relações numa lógica da ecologia integral? E também como fazê-lo de uma perspetiva coerente e não manipuladora?
MTU – O primeiro passo é começar pela nossa casa. Já não vamos reverter quinhentos anos de História. Isso é tonto. Mas, isso não significa que não tenhamos os nossos próprios desafios e que não possamos avaliar como começar a construir a partir da nossa própria realidade. Isto não se aplica apenas aos povos indígenas. Na Europa também há desafios ambientais, aqui também há desafios sociais que são bastante importantes. A partir desta realidade é possível levantar questões. Nomeadamente partindo de uma perspetiva de justiça intergeracional, como nos aponta a encíclica Laudato Sí. Talvez não seja através de ações concretas com os povos indígenas daqui para lá, mas antes pensando e questionando a realidade dos jovens que aqui vão seguindo os passos dos mais velhos. Que mundos estamos a deixar a este jovens e crianças? Que ferramentas também lhes estamos a dar ao nível da educação? Que sentido ético e de defesa da vida? Isto também faz parte da nossa mensagem. A mensagem que queremos deixar é esta: temos que defender todas as formas de vida. Não só privilegiar a nossa por cima da vida de outro ser. E acredito que a partir disto poderá haver uma mudança nas nossas relações. Temos que começar a reconstruir os nossos próprios paradigmas. Os paradigmas da modernidade que separam o homem – a razão do coração – quando isso no fim de contas não tem sentido. Ou separam as várias visões do mundo – as ciências sociais das ciências naturais. No fim de contas que é mais importante? Que eduquemos para o sentido ético, questionando-nos sobre as ferramentas que estamos a deixar aos jovens.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.