São os rituais que dão densidade ao suceder do tempo. Entre tantos que fazem parte da minha rotina, e que aqui poderia elencar, há um que comecei a pôr em prática desde que me mudei para Roma para aprofundar os meus estudos em teologia, e que muito me ajuda a ver em que Eixo(s) se desenha o mundo, tornando-me atento aos seus reais problemas. Falo de um conhecido programa de opinião política, transmitido semanalmente na televisão, e que escuto religiosamente nas manhãs de sábado, no seu formato de podcast, enquanto faço algumas tarefas triviais.
Foi o seu mais recente episódio, que abriu com um comentário ao Conclave e à eleição do novo Papa, que me levou a escrever este texto. Faço-o movido pela convicção de que a teologia, quando perde a sua dimensão pública, a sua vocação de fazer pontes entre a fé e o espaço público, torna-se um produto cultural de gueto, incapaz de dizer o mundo e de dizer algo ao mundo. Para que tal não aconteça, o crente em geral, e o teólogo em particular, precisam de se colocar à escuta daquilo que os rodeia, assumindo uma postura de quem quer compreender os verdadeiros motivos das vozes que se escutam. E, quando possível, juntar-se a elas, procurando oferecer outras chaves de leitura que, na sua complementaridade, possam ajudar a dar sentido à realidade.
A um certo momento, os comentadores residentes deste programa começam a falar uns por cima dos outros. Se para muitos este é um momento desconfortável de confusão, para mim é um imediato convite a fazer uma pausa nas coisas triviais que estou a fazer e a ficar especialmente concentrado ao que se está a dizer. O motivo da discussão era, no fundo, uma pergunta muito simples, mas de resposta bastante complexa: para os católicos a escolha de um Papa é uma decisão “do Além” ou “do aquém”?
O motivo da discussão era, no fundo, uma pergunta muito simples, mas de resposta bastante complexa: para os católicos a escolha de um Papa é uma decisão “do Além” ou “do aquém”?
Na opinião de um dos comentadores presentes, os católicos são firmes em acreditar que a escolha do Papa é “uma decisão tomada pelo Espírito Santo que ilumina os seus cardeais”. Por isso, demonstra um certo embaraço em comentar o tema: admite, desde o primeiro momento, que não faz ideia do que dizer, porque se considera “um não especialista em decisões do Além”. Um dos seus colegas, naquele preciso momento, deixa escapar o seu ponto de vista: o que se está para comentar é, na sua opinião, uma decisão “do aquém”. Entendi aquela exclamação como uma insistência em convocar o assunto para aquela mesa. No final, a palavra decisiva é dita por um outro membro do painel: todos devem partir para o tema com a certeza de que a afirmação de que “quem escolhe o Papa é o Espírito Santo” é “uma balela”, “uma anedota” que “ninguém acredita”, e que serve apenas para codificar, em linguagem de caserna, aquilo que é uma “eleição política” tomada dentro do Vaticano, mas que se reveste de uma enorme relevância social e política.
Considero que a pergunta que nasce neste espaço de comentário político e social, e a consequente variedade de opiniões, é de grande pertinência nesta hora que estamos a viver. Posso imaginar que, na sua origem, estará o uso de certos jargões da Igreja católica no espaço mediático, sem as devidas explicações e aprofundamentos.
Procurando, neste contexto, entrar no âmago da questão — não para dar a resposta definitiva, mas para participar na discussão —, começaria por traduzi-la em chave teológica. Penso que seja esse o pequeno contributo que uma teologia que se faz pública possa vir acrescentar ao tema. Ela é, se bem entendo, uma pergunta acerca do papel do Espírito Santo na vida da Igreja e na vida de cada crente. É, por isso, uma pergunta acerca da identidade daquela paradoxal Pessoa da Santíssima Trindade, «mistério escondido, tesouro sem nome, coisa indizível, Pessoa incognoscível», nas palavras de Simeão, o Novo Teólogo, que por um lado preenche todo o universo com a sua presença, mas por outro lado permanece escondida, de modo que o dom que Ela comunica seja plenamente nosso, como nos convidada a pensar o teólogo ortodoxo Vladimir Lossky.
O Conclave é, sem margem para dúvidas, uma experiência espiritual, como já nos ajudou a entender um belo artigo aqui publicado. Espiritual na sua ritualidade, nos seus espaços, nos seus membros. Falamos de um encontro de homens livres que, de mãos dadas, são convidados a procurar um bem comum que, em última análise, coincide com o fim último do Conclave: aquele de escolher o Sucessor de Pedro, Bispo da Igreja que está em Roma, chamada a presidir na caridade à Igreja universal, como nos dizia Santo Inácio de Antioquia.
Mas espiritual sobretudo porque o Espírito Santo habita o mais profundo do ser humano, de cada ser humano, do crente e do não crente, do que se abre ao Infinito e do que permanece fechado em si mesmo e nos seus esquemas, e dentro do qual o Espírito limita voluntariamente a sua plenitude e os seus dons, escolhendo esperar que o homem o escolha (cf. Sergei Bulgakov, Il paráclito, Bologna 2012, 349). É esse mesmo Espírito Santo que faz da votação daqueles homens, que permanecem sempre livres para o escutarem ou não, uma decisão “do aquém”, que se pode tornar, na medida em que estes o deixarem — e assim esperamos que sempre aconteça —, uma manifestação do Além.
É este o eixo que separa a ideia de um Espírito ausente do Conclave daquela que postula a presença de um Espírito manipulador, que trata as criaturas de Deus como fantoches. Duas visões anedóticas, incapazes de dizer a fé da Igreja. No eixo, entre as duas, está a certeza de que esta eleição, de tremendas consequências quer religiosas, quanto políticas e sociais, é uma experiência espiritual, porque uma experiência habitada pelo Espírito.
E se, no extremo, o Espírito Santo não falasse no Conclave devido à rigidez dos corações que não se predisporiam a escutar o seu tão silencioso como potente convite a procurar o Bem comum — a história da Igreja é, como bem sabemos, um livro aberto que nos convida a considerar essa possibilidade —, permaneceria todavia uma certeza de fé e que, provavelmente, é aquela que melhor diz a relação entre o Espírito Santo e o Conclave, porque diz da relação entre o Espírito Santo e a Igreja. Falo daquilo que a linguagem teológica chama de indefetibilidade da Igreja, e que outra coisa não diz se não a confiança de que, por uma especial ação do Espírito Santo, a Igreja, «única realidade complexa, formada pelo duplo elemento humano e divino» (Concílio Vaticano II, Lumen gentium 8), permanece estruturalmente fiel à sua realidade original segundo o plano de Deus, sem ser destruída pelo pecado ou pelo mal.
Só assim poderemos compreender como é que, após dois milénios de história, com todas as suas turbulências, com todos seus períodos negros, para os quais algumas vezes o papado contribuiu, o mundo inteiro se colocou a olhar para uma chaminé, cujo fumo branco foi arauto de uma mensagem sempre antiga e sempre nova: «Deus ama-nos, Deus ama-vos a todos, e o mal não prevalecerá! Estamos todos nas mãos de Deus. Portanto, sem medo, unidos de mãos dadas com Deus e entre nós, sigamos em frente!» (Papa Leão XIV, Primeira saudação na varanda central da Basílica de S. Pedro, 8-05-2025).
Foi o Espírito?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.