A Ir. Nathalie Becquart, Subsecretária da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, é francesa e pertence à Congregação das Irmãs Xavieranas, congregação com forte ligação à espiritualidade inaciana. Além de ter estudado Gestão, Sociologia, Filosofia e Teologia, especializou-se em Eclesiologia (estudo da vida da Igreja) com uma investigação sobre a sinodalidade. Tem ainda uma longa prática de trabalho com jovens. Supervisionou o Serviço Nacional para a Evangelização dos Jovens e para as Vocações da Conferência Episcopal Francesa, coordenou o programa de escutismo para jovens em áreas urbanas pobres e foi diretora espiritual da Rede Inaciana da Juventude na França.
Nesta conversa com o Ponto SJ, aquando da sua estadia em Portugal para o Dia da Família Inaciana (em março), a Ir. Nathalie fala sobre o processo sinodal e a necessidade de conversão da Igreja a um modo de proceder mais relacional baseado na escuta. Analisa também o lugar dos jovens na Igreja e a forma como esta maior abertura se relaciona com a obediência e a estrutura vertical da Igreja.
Conhecendo o que se passa em várias zonas do mundo, o que nos pode dizer sobre o modo como o processo sinodal tem sido vivido?
A primeira coisa que se pode dizer é que o Sínodo já começou em todo o mundo. Todas as conferências episcopais nomearam equipas e referentes para coordenar os processos dos seus países e houve celebrações de lançamento em várias dioceses do mundo. Tem havido muita criatividade, de acordo com os diferentes contextos e culturas, para adaptar os documentos e os modos de desenvolver o processo sinodal. Alguma coisa está a acontecer um pouco por todo o mundo. Claro, que com ritmos e modos diferentes de proceder. Isso também é influenciado pela prática sinodal que já existe em alguns países como em França. Em alguns países, depois do Vaticano II, tem havido sínodos diocesanos e noutros países nunca se fez nenhum Sínodo e, nesses casos, tudo é novo. Mas foi possível identificar muito entusiasmo, em especial por parte dos leigos em África e na Ásia. As pessoas ficaram muito contentes que lhes fosse dada voz, às vezes pela primeira vez. A nível global é possível verificar que em alguns países é difícil que os padres se envolvam no processo devido à sobrecarga de tarefas que têm ou, por vezes, aos medos associados à conversão que é necessária e ao chamamento a um novo modo de ser Igreja. De um modo geral também se pode dizer que as congregações religiosas estão bastante envolvidas neste processo uma vez que devido à sua vida comunitária muitas delas já têm uma experiência sinodal.
Mas o Espírito Santo está mesmo a trabalhar?
Como já disse, alguma coisa está a acontecer, sentindo-se o desejo de em conjunto responder ao apelo de estar envolvido no Sínodo, de fazer desde já parte do Sínodo. É possível contemplar o trabalho do Espírito Santo em tudo isto. Temos recebido muitas reações que indicam que, quando é verdadeiramente possível estar envolvido num processo de consulta sinodal, seguindo a metodologia da conversação espiritual, isso traz alegria e transforma as pessoas. Naturalmente, como se trata de um novo caminho, há dificuldades e resistências. Como aprendemos com Santo Inácio, quando o Espírito Santo age é normal que surjam resistências. Faz parte do caminho. É um processo longo e não bastarão dois anos de Sínodo para que a Igreja seja mais sinodal. É um longo caminho de conversão, mas parece-me, mesmo analisando os dados de publicações em redes sociais, por exemplo, que há cada vez mais pessoas a falar do Sínodo e da sinodalidade. Há muitas conferências e publicações e as pessoas, passo a passo, vão reconhecendo a importância deste caminho. É verdadeiramente, como diz o Papa Francisco, um chamamento a ser Igreja para hoje. Envolver-se e dispor-se a cumprir a vontade de Deus para a Igreja.
Referiu que se encontram algumas resistências ao processo sinodal, nomeadamente no que respeita ao envolvimento dos padres. Que aspetos necessitam de maior conversão?
No que diz respeito aos padres, bispos e responsáveis da Igreja trata-se de encontrar um novo estilo de liderança. Uma liderança mais colaborativa e servidora. Implica introduzir processos comuns de discernimento e de decisão assentes na ideia de corresponsabilidade. Não se trata de querer que um bispo deixe de ser bispo ou que um pároco deixe de ser pároco. Mas uma coisa é decidir sozinho, outra é decidir a partir de um discernimento conduzido pelo Espírito Santo e consultando as pessoas que se serve. As raízes da sinodalidade encontram-se no Concílio Vaticano II e na ideia de que há uma autoridade dada ao Povo de Deus, devendo ser reconhecido um sensus fidei que capacita espiritualmente os fiéis para reconhecerem o que é pedido pelo Espírito Santo. Se acreditamos nisto temos que ouvir as pessoas. Por isso, é preciso ajudar os bispos e os pastores a terem esta atitude espiritual e isso aprende-se fazendo. A experiência da sinodalidade é uma experiência de discernimento comum, de caminhar em conjunto. Não bastam conceitos. Mas toda a gente na Igreja é chamada à conversão, não apenas os bispos e os pastores. Os leigos têm que se atrever a ter voz. O Papa Francisco pede sempre no começo de cada Sínodo que as pessoas falem com parresia, coragem. E é preciso ter humildade na escuta, é um processo espiritual que requer atitudes espirituais. Não temos a verdade sozinhos, procuramo-la juntos. Precisamos de humildade, capacidade de escuta, mas também de abertura, coragem, coragem para oferecer a nossa própria voz.
E por isso é tão importante empoderar os leigos nomeadamente os jovens e as mulheres. O foco deve estar em dar voz aos que não têm voz: os pobres, os periféricos. Esse é o modo de proceder de Deus que podemos encontrar na Bíblia. O Espírito fala pelos mais pobres. Curiosamente na regra de São Bento ele diz que o Abade nunca deve tomar nenhuma decisão sem ouvir o mais novo da comunidade. Se formos capazes de ir às periferias e ouvir aqueles que usualmente não são ouvidos por ninguém, então daremos testemunho de que somos capazes de ouvir a todos. É importante que os leigos entendam que são chamados a ser discípulos e a assumir a missão da Igreja como sua. A Igreja não é apenas dos padres, bispos e religiosos. Isto implica treinar as pessoas para o discernimento, nem todos sabem de que é que se trata.
Como é possível articular discernimento e obediência? Não deixa de haver uma certa verticalidade na estrutura da Igreja. Isso é claro na organização da Companhia de Jesus, cuja tradição tem algo a aportar à compreensão do que é o discernimento.
A questão terá que ser relacionada com o entendimento que temos da obediência. Em algumas ordens religiosas, não em todas, há ainda um modo desatualizado de entender a obediência. Segundo esse modo, o superior ou superiora decidem tudo e as outras pessoas da comunidade são como pequenas crianças que obedecem sem questionar. Mas isso não é assim. A obediência a que nos comprometemos quando entramos na vida religiosa é a obediência a Deus. Na minha comunidade religiosa dizemos que a obediência é a escuta comum do Espírito Santo. No fim do processo é a superiora que nos envia para alguma missão. Mas ela decide depois e através de um processo de diálogo, no qual eu como religiosa lhe dou a conhecer as inspirações da minha oração e discernimento, tenho que lhe dar informações sobre a minha vida. Implica verdadeiramente um sentido de corresponsabilidade. Não se trata de ser passivo e de esperar por uma decisão tomada exclusivamente pelo superior.
Todas as tradições religiosas podem trazer algum contributo valioso para o Sínodo: pela escuta da palavra de Deus, pelo seu modo próprio de oração, através dos capítulos gerais que orientam os superiores, da vida comunitária. Não basta que haja uma estrutura. Mesmo quando algumas comunidades já vivem sinodalmente, há caminho a fazer. Nenhuma comunidade é totalmente sinodal. O processo de conversão sinodal nunca termina. Não se trata de nos livrarmos dos princípios hierárquicos, mas de equilibrá-los com este maior sentido de horizontalidade, recordando que todos somos irmãos e irmãs em Cristo. A obediência é a Deus, o superior tem um papel importante, mas é uma mediação.
No que diz respeito, aos padres, bispos e responsáveis da Igreja trata-se de encontrar um novo estilo de liderança. Uma liderança mais colaborativa e servidora.
E no que respeita à espiritualidade inaciana, de que é que a comunidade inaciana precisa de ter consciência? A que precisa de estar atenta para identificar o que pode oferecer a este processo?
Temos esta tradição, este dom recebido de Santo Inácio de nos focarmos no discernimento. Podemos oferecê-lo. E quem tem experiência de discernimento comum pode assumir-se como um facilitador do processo sinodal nas paróquias, nas dioceses, aproveitando o conhecimento que possam ter de processos como o da “conversação espiritual”. Na tradição inaciana também há a preocupação de ir às periferias, de ouvir os pobres, de trabalhar pela justiça. E o estilo sinodal tem que ser acompanhado por um estilo de Igreja em diálogo com o mundo. Mas as pessoas podem pensar ‘este é um sínodo inaciano’… Não, não! Organizámos em Roma um encontro muito interessante de estudo com pessoas de várias tradições espirituais: beneditinos, franciscanos, agostinhos, salesianos, inacianos, entre outras, para que nos pudessem dar a conhecer o modo como vivem a sinodalidade e como são os processos de discernimento nas suas comunidades. Foi de uma enorme riqueza. Cada tradição espiritual tem uma experiência própria do discernimento. Como inacianos podemos aprender com outros.
Não sabemos tudo!
Não, não sabemos. É importante reconhecê-lo. E trabalhámos nesse encontro sobre o que caracteriza a espiritualidade sinodal. Em primeiro lugar é uma espiritualidade de reconciliação, de diálogo que permita viver uma vida cristã, tendo claro aquilo que significa ser Igreja no mundo de hoje, sendo uma Igreja encarnada na realidade.
Por falar em encarnação…. Vivemos numa cultura digital e um dos traços dessa cultura é, por um lado, a polarização e por outro, talvez haja uma maior consciência da nossa interdependência. Como é que estas características da nossa cultura podem afetar a experiência sinodal?
Hoje não é possível pensar na missão da Igreja, na evangelização, na organização de projetos pastorais sem integrar a comunicação. É uma questão de inculturação. Vivemos num mundo de comunicação em que as redes sociais e a cultura digital assumem uma grande importância. E, mais do que isso, nós vivemos neste ambiente da cultura digital. Trata-se de um lugar em que as pessoas trocam pontos de vista. É certo que se pode gerar uma certa polarização. Mas o que importa é encontrar modos de escutar aqueles que estão nesses ambientes. Há iniciativas interessantes de algumas dioceses em que se fazem sessões sinodais de escuta através das redes sociais, pedindo às pessoas que tragam a sua voz. Mas claro que temos que estar conscientes do risco da polarização, procurando incrementar o espírito de escuta e diálogo nas redes sociais e na sociedade. Num mundo mais polarizado e fragmentado, o discernimento diz-nos que a sinodalidade é uma urgência porque é um meio para encontrar caminhos de fraternidade e amizade social, na linha da Fratelli Tutti. Precisamos de encontrar formas em que possamos viver juntos na nossa casa comum. E a pandemia aumentou a consciência da nossa interdependência. A sinodalidade é uma visão de um Povo de Deus em que a interdependência é reconhecida. E isto tem em conta uma visão relacional da antropologia que se baseia na reciprocidade. Uma visão que vê a Igreja no mundo assumindo esta reciprocidade: damos alguma coisa, mas também temos que receber. O Espírito Santo não fala apenas através dos batizados, no Povo de Deus. Não podemos ser sinodais como Povo de Deus se não formos Povo de Deus caminhando com o Povo da Terra.
Há uns tempos uma jovem dizia, num encontro em que estive, que participar não pode ser apenas ir à Igreja fazer coisas… arrumar o armazém dos alimentos ou outra coisa. Nós queremos ter voz.
Sim. Isso ficou claro no Sínodo dos Jovens, eles querem ser ouvidos, ser protagonistas. A fé transmite-se por meio de relações. Uma Igreja sinodal é uma Igreja relacional. A única forma de transmitir a fé e ser Igreja na nossa cultura é ser uma Igreja sinodal em que toda a gente é protagonista. E os jovens pedem isso de um modo especial. Com a minha experiência de 30 anos na Pastoral Juvenil, em especial com os universitários, posso dizer que os lugares de Igreja com jovens em que existe vida e dinamização são aqueles que são construídos em conjunto com eles, em que a missão é partilhadas com eles. Assumir a pastoral juvenil partilhando responsabilidades com líderes juvenis. Temos que nos atrever a dar mais responsabilidades aos jovens, trabalhando com eles.
Num inquérito que o Ponto SJ realizou para escutar os jovens ficou claro que o aspeto em que estes se sentem menos ajudados pela Igreja é o da sua vida afetiva e sexual. Partindo da sua experiência, em que aspetos da vida é que os jovens se sentem mais sós e menos ajudados pela Igreja?
Ouço muitos jovens, mesmo em acompanhamento espiritual, e há certamente muitas questões relacionadas com a afetividade e a sexualidade. E no Sínodo dos Jovens foi claro que eles querem que a Igreja os ouça no que se refere a essa dimensão da sua vida. E alguns até compreendem a proposta da Igreja para o matrimónio, mas querem ser ouvidos a partir das suas vivências e realidade, com as suas lutas e dificuldades e conversarem verdadeiramente com padres, religiosas ou com outras pessoas que os possam acompanhar. Para fazê-lo é necessário que haja quem tenha disponibilidade para ouvir, que se conheça também a si próprio, e se deixe tocar pela realidade dos jovens, estando aberto e tendo capacidade para acolher esta dimensão das suas vidas. Por diversas razões, há muitas pessoas na Igreja que não se sentem confortáveis com esta dimensão das suas vidas… e os jovens pressentem esse desconforto. Mas isto deveria fazer parte da Pastoral Juvenil. Em França tentamos que quem trabalhe com jovens esteja preparado para isso, independentemente de haver algumas pessoas mais especializadas neste tema. É que esta é uma dimensão essencial da vida dos jovens.
Temos que nos atrever a dar mais responsabilidades aos jovens, trabalhando com eles.
Uma boa imagem para entender o que significa trabalhar com jovens é a imagem de Jesus caminhando com dois discípulos na estrada de Emaús: aproxima-se, começa a ouvi-los sobre a sua situação, as suas desilusões e sofrimentos. Eles seguiam na direção errada mas Jesus estava simplesmente lá, acompanhando. Os jovens precisam antes de tudo de ser ouvidos e depois podemos explicar alguma coisa. Para escutar outros, é preciso também aprender a escutar-se a si próprio e em especial à sua dimensão afetiva. E se não se está confortável com este processo em termos pessoais não se pode verdadeiramente escutar os outros.
Para terminar, já é possível identificar as situações ou grupos a que a Igreja está a ser convidada a dar mais atenção, que portas se têm aberto? Alguém que peça de um modo mais premente a escuta da Igreja?
É ainda prematuro tirar conclusões… é ainda um tempo de escuta. O importante é que toda a gente possa ser escutada, mesmo grupos que se possam sentir mais marginalizados: LGBTQ, recasados, alguns grupos de mulheres. Estamos disponíveis para receber contributos de todos.
Fotografia de destaque: Humberto Magro
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.