O desconsolo do rigor- revisitando “Adolescência” com Leonor Xavier

Este legado que a Leonor nos deixa com a sua Adolescência é a melhor forma que encontrou para se despedir da família e dos amigos.

Este legado que a Leonor nos deixa com a sua Adolescência é a melhor forma que encontrou para se despedir da família e dos amigos.

Li em adolescente as Mémoires d’une Jeune Fille Rangée [1] de Simone de Beauvoir, um livro que me despertou a atenção para esta filósofa sobre a qual, anos mais tarde,  pretendi escrever uma  tese de licenciatura. A proposta foi então recusada pelo meu orientador, com a justificação de ser absurdo escolher uma mulher quando havia tantos filósofos disponíveis. Não me irei debruçar sobre este episódio que é digno de ter um maior desenvolvimento em texto próprio. Apenas o cito para reforçar o meu interesse pelos diários, enquanto testemunho de uma época, de uma mentalidade, de um modo de habitar o mundo.

Um mês depois da sua morte a  Leonor Xavier ofereceu-nos a sua Adolescência, [2] um livro de despedida no qual partilha episódios da sua vida, num cruzamento feliz entre passado e  presente. Um livro bonito por dentro e por fora -na capa a autora aparece sentada, numa postura ambígua pois não se percebe se há algum apoio – dá a ideia que poderá dar o salto para algo  indefinido pois o pano de fundo  tanto pode ser mar como chão de terra. A imagem transmitida é ambígua, inspira tranquilidade  mas simultaneamente  insegurança pois estamos perante alguém que se nos afigura ao mesmo tempo  bem sentada  mas com o  risco permanente de resvalar num  precipício.

A contracapa oferece-nos uma  Leonor esforçada, numa gincana de bicicleta onde está a querer dar tudo por tudo, antecipando o que lhe irá  acontecer ao longo da  vida. As folhas de guarda são a fotocópia das páginas de um diário escrito ao longo de quatro anos (de 1956 a 1960) e a evolução da grafia é-nos mostrada no contraste entre a letra  infantil dos anos cinquenta e a tipicamente adolescente,  dos  anos sessenta, em que todas tínhamos uma letra igual, redonda e grande, a marcar a diferença com a que aprendêramos em criança. De igual modo verificamos um contraste  entre o que a Leonor registou no seu tempo de menina, escrito  em itálico, e o comentário e a apreciação crítica dessas memórias, vistas à luz da Leonor adulta e apresentadas  num corpo normal.

Depois de referir  um país a preto e branco em que viveram as pessoas nascidas nos anos quarenta do século passado (p.18), e antes de mergulhar nos seus diários, a Leonor insere neste livro o testemunho actual de doze jovens, recentemente saídos da adolescência, num  contraste imediato com o que se irá seguir. Neles se patenteiam a esperança, a angústia e a insegurança. A linguagem é diferente,  os  problemas são outros mas há um mesmo olhar  crítico e inquieto, típico desta faixa etária.

Cumprir, respeitar, perceber, obedecer, estudar e calar são as normas dominantes num mundo que  pretendia ser seguro pois tudo nele era  previsto, marcado e organizado – as idas ao Coliseu, as férias de Natal, a Feira Popular no começo do verão, a rotina tranquilizadora das tardes.  Um universo ritmado onde o conceito de consumismo não cabia. Nada se deitava fora, tudo era aproveitado e transformado. As roupas dos mais velhos passavam para os mais novos e “os objectos eram feitos para durar muito tempo”(p. 178). Lembrando um outro livro de memórias Bilhete de Identidade de Maria Filomena Mónica,[3] encontramos semelhanças nas críticas feitas a esse contexto vigiado, na reconstituição da infância e adolescência de duas raparigas da alta burguesia, na denúncia de um meio fechado em que o “parece mal” traçava fronteiras e onde os diferentes mundos eram regidos por códigos próprios.

O mundo da casa e da família  

Este mundo é revisitado com sentimentos antitéticos de amor, de irritação e de revolta. A casa é a bolha de protecção, a defesa das ameaças, representa segurança mas ao mesmo tempo é também prisão. Os papeis do pai e da mãe embora  demarcados estão em sintonia no que respeita à educação dos filhos. O poder arbitrário do chefe da família é motivo de revolta para a Leonor adolescente, nomeadamente  quando  é enviada de castigo para um colégio interno, algo que profundamente a marcou. Como também foi sensível à injustiça de uma maior liberdade concedida aos  irmãos, liberdade que lhe era recusada pelo seu estatuto de menina. Esta diferença de tratamento é muitas vezes criticada  denunciando-se o estatuto de permissividade concedida aos rapazes e o controlo total no que respeita às  raparigas. A vigilância permanente por parte das mães, era reforçada com a existência de misses, mademoiselles e fräuleins que ensinavam línguas e acompanhavam as meninas, ocupando um estatuto dúbio entre criadas, chaperons e professoras. Os  irmãos mais velhos eram um  passe para uma maior liberdade  e a sua companhia era requisitada e desejada para festas e passeios.

O mundo da casa é também o mundo das criadas –  “vidas de prisão, vidas de raparigas trancadas em casa, emparedadas” (p. 167).  Frequentemente  analfabetas, vindas da província e sujeitas a uma vigilância rigorosa,  as criadas, mais do que as mães, constituíam um suporte e um consolo por serem  uma companhia constante, pessoas com  quem se trocavam queixas e confidências.  Designadas como “o pessoal”, eram consideradas gente diferente  a quem ninguém pensava educar, a não ser no que dizia respeito ao serviço doméstico. Mas para a Leonor “na cozinha passavam-se os acontecimentos, comentavam-se os assuntos da gente grande, havia cumplicidades” (p. 174).

Como também foi sensível à injustiça de uma maior liberdade concedida aos  irmãos, liberdade que lhe era recusada pelo seu estatuto de menina.

O mundo da escola e das amizades

Na introdução ao seu diário, ainda antes de recorrer à  escrita do mesmo, há uma referência ao primeiro liceu que a Leonor frequentou, classificando-o como execrável: “o regime era absoluto, o despotismo era insuportável, a repressão é hoje difícil de descrever.” Em cada sala havia um aparelho através do qual professoras e alunas recebiam mensagens e avisos da Reitora, que simultaneamente podia ouvir tudo  o que se passava nas aulas. [4] Das professoras recorda as irmãs Guardiola, pessoas gradas no regime salazarista, guardiãs das tradições e do recato. A disciplina era controlada com faltas de castigo para quem a infringia e a ameaça de expulsão para quem prevaricava.

Na mudança no 6º ano para  um liceu misto – o D. João de Castro – o ambiente pouco se alterou. Embora juntos nas turmas, rapazes e raparigas separavam-se  nos recreios onde os contínuos vigiavam eventuais aproximações. A hora da saída era a altura dos encontros mistos. E os raros namoros aconteciam no autocarro, na ida e na volta para o  liceu. Os estudos eram exigentes e de um modo geral havia bons professores. Apreciou-os sobretudo quando no fim do secundário foi mandada de castigo para um colégio interno em Tondela,  defrontando-se com a mentalidade tipicamente provinciana. Os meses nesta escola levaram-na a consciencializar-se de um outro modo de viver, da tacanhez do meio, da  vida futura a que  as suas colegas poderiam aspirar – “o mal terrível que foi para mim aquele colégio” (p.199).

No mundo da escola forjaram-se as grandes amizades que ficaram para a vida. Anos mais tarde, ao escrever este livro, a Leonor recorda as condições, as limitações e as convenções que presidiam ao “estar em sociedade”. Aos namorados era proibido que se beijassem em público, na praia havia códigos de vestuário, estritamente vigiados pelos cabos do mar (p.57), as idas ao cinema  exigiam a presença de adultos. Os namoros eram vigiados. O grupo é um factor marcante no desenrolar das amizades e a pertença a um dado  grupo imprime  marca. As normas impõem-se subliminarmente. Quem não lhes obedece é rejeitado e  sujeito a bullying  (p.81).

Em muitos dos livros que a Leonor escreveu constatamos a presença transversal de uma amiga – “a minha amiga”, “a melhor amiga”. Ela é a confidente dos segredos, a pessoa mais próxima com quem partilha alegrias, desgostos e pensamentos íntimos. Igualmente importante é a  amiga mais velha a quem se pedem explicações e conselhos (p. 38). As amizades masculinas são raras e desaconselhadas. É proibido marcar encontros e falar ao telefone com rapazes.

Uma nota curiosa de algo que hoje caiu completamente em desuso e que entusiasmava  as  adolescentes da época – o pedido de autógrafos a cantores e artistas de cinema. A 22 de Agosto de 1957 a Leonor escreveu “Fui ao Hotel Palace com a Rita e pedi um autógrafo à Yma Sumac. [5]  (…) Resolvi fazer colecção de autógrafos.” (p. 105). Lembro-me de um objecto que hoje caiu em desuso mas que nessa altura era comum às adolescentes – um livrinho onde recolhíamos assinaturas que íamos pedindo a artistas de cinema, cantores, músicos, corredores de automóveis e outros personagens então famosos.

O mundo da Igreja

Este mundo centrava-se na Igreja Católica, a única referência religiosa dado que todas as outras  confissões eram ignoradas ou olhadas com desconfiança. Viva-se entre pecados veniais, mortais e pecados contra a Santa Madre Igreja. O  traje próprio para se ir à missa era véu, mangas compridas, meias e saias com o tamanho regulamentar. A mentalidade predominante é preconceituosa, a comunhão exige confissão prévia e jejum. O director espiritual “orientava o pensamento das meninas através de metáforas e instruções.” (p.42). A Leonor e grande parte das suas amigas pertenciam a um movimento religioso feminino, as noelistas, “destinado a pregar, divulgar, promover a piedade, a caridade e a formação espiritual dos bons cristãos.” (p. 80). Fátima e as aparições e aos pastorinhos ocupavam um papel central na vivência cristã dos portugueses. E Fátima foi uma referência na espiritualidade da Leonor adolescente que se comovia com os sacrifícios e as promessas, um olhar contestado pela escritora actual que recusa “o apelo ao sofrimento”e “a fé a disfarçar a indignidade.” (p. 109). Ao evocar  a  Fátima  contemporânea  a Leonor considera-a como “espaço de uma cultura de encontro e conciliação, unidade de mil modos diversos na expressão do sagrado” (p.83). Mas ao lembrar a sua adolescência recorda o 13 de Maio como celebração nacional. O universo em que viveu  era pautado pelos valores da Igreja e daí a sua surpresa perante um professor que na morte de Pio XII não se mostrou impressionado nem usou gravata preta.

O mundo dos pobres

Os pobres desempenharam um papel ambivalente  na adolescência  da Leonor que sobre eles escreveu: “Não sabíamos o que fazer por eles, o imediato era dar-lhes de comer, matar-lhes a sede. Separar uma roupa usada, tricotar um cachecol de lã.” (p. 39). Havia festas de chá canasta a favor dos pobres,  muito úteis para sossegar as almas caridosas que se organizavam para colher esmolas. E a Leonor percebeu o absurdo desta situação escrevendo:  “Eu compreendo agora porque é que muitos pobres odeiam os ricos” (p.130). Mergulhada na frase frequentemente repetida nesses tempos “pobres, sempre os teremos entre nós” a desigualdade é aceite como um destino que por sorte não nos coube. Alheia à realidade política do seu tempo a Leonor confessa: “(…) comentário sobre a luta de classes? De maneira nenhuma. Nunca tal me passaria pela cabeça.” (p. 131). O que não a impede de ficar perturbada com as desigualdades sociais com a qual é directamente confrontada ao visitar os ciganos que inclui no mundo dos pobres  (p. 101-104). O ostracismo e as injustiças a que são sujeitos perturbam a consciência cívica de uma Leonor de catorze  anos como sendo um atentado ao conceito de justiça. Recorda as suas escapadelas aos acampamentos perto da quinta e o respeito então experimentado pela diferença.

O mundo do corpo e o mundo interior

Como grande parte das adolescentes  a Leonor tem preocupações estéticas, interroga-se se é bonita, quer agradar,  preocupa-se com o peso. O primeiro parágrafo deste livro é dedicado às transformações do seu corpo – “(… a proporção das partes, o contorno de cintura, o desenho das costas.  (…) Tudo estranho e assustador.” (p.9). Mais para o fim lamenta-se de ter descoberto os mistérios da vida por experiência própria : “(…) a mãe não me explicou nada e ninguém me ligou quando comecei a crescer.” (p.155). Ao  perguntar “como nascem as crianças, pela cabeça ou pelos pés?” teve como  resposta  “não são coisas para a minha idade.” (p. 161). E   ao reler esta página do diário a própria Leonor adulta se interroga: “Será possível que aos 15 anos eu ainda não soubesse como nascem as crianças? (p. 163).

Ao longo  do livro deparamos com as  inseguranças e contradições da adolescência: “pertencia-me estar triste a mando da natureza” (p. 35). Embora se reconheça privilegiada, a experiência da solidão é recorrente: “Para  mim, a vida não é difícil, embora muitas vezes me sinta muito só.” (p. 45). “Eu sou feliz e não sou. É as duas coisas ao mesmo tempo.” (p.75). O reconhecimento de si mesma como adolescente respondona é uma constante: “eu era insolente. Insuportável.” (p. 180). O ideal de pureza é  aparece muitas vezes: “Na aula de Moral  a professora falou-nos sobre a campanha da pureza e eu vou-me dedicar a essa campanha com todo o meu coração.” (p.37). A Leonor adulta comenta este desiderato, tomando como referência os dias de hoje – “Para os adolescentes, parece que pureza como objectivo é raridade, castidade é impensável. O corpo é livre na manifestação do desejo, a consciência vale, a preservar e a proteger.” (p. 49).

O cruzamento dos diferentes mundos com o mundo da história

Note-se que este relato de uma vida não fica circunscrito à história pessoal da Leonor. Nele estão presentes acontecimentos históricos a que assistiu e que a marcaram como é o caso da invasão da Hungria pela União Soviética ( p. 43). A propósito do cão da quinta, chamado Nehru por ser feroz, a Leonor recorda o clima que se viveu em Portugal com a invasão de Goa pela União Indiana. Também no que concerne  à vida política portuguesa durante o Estado Novo há relatos significativos como o do  lançamento de uma Companhia de Pesca na Figueira da Foz com as personagens importantes  da época  – Ministros da Marinha e do Interior, e figuras gradas da Igreja. Registando este episódio no seu diário a Leonor adolescente escreveu:  “Passei um dia em cheio e saí de casa.” (p. 95). Na realidade, nessa altura apreciou o programa que quebrava o ritmo sempre igual dos seus dias. Anos mais tarde, a Leonor adulta comenta estas impressões que descrevera em 1957:  “hoje diria que era uma seca”.

A greve dos trabalhadores do sal em 1957 revela o despertar da sua consciência política, o que a leva a  perguntar:  “Porque não há justiça? Quando será que os homens se considerarão iguais uns aos outros?” (p.114). Mas partilhando a ideologia dos bem pensantes da época a Leonor adolescente escreve: “Imagino aqueles cristãos que estão entre os comunistas. Rezo para que sejam fortes e morram sem renegar a sua fé. Posso imaginar as torturas que lhes fazem.” (p. 118). A ignorância do que se passava no país e a aceitação tácita da censura levavam-na  a rejeitar os que  pensavam diferentemente. Tudo o que era diferente  se  encarava como ameaça à ordem estabelecida. O comunismo era uma anátema. E, como escreve a Leonor adulta: “A realidade era pintada a duas cores (…) Eu não fazia ideia do que fosse ser comunista. Sentia uma ameaça, sabia que nem a palavra se podia dizer. ” (p.122).  A justiça aparece como tema recorrente embora encarada num plano exclusivamente ético e não político.


Quase no fim do seu Diário a Leonor fala da morte do Padre Veiga e da sua primeira ida a um cemitério. Citando Frei Bento Domingues lembra que “no mais fundo do amor humano existe o desejo de eternidade.” (p. 189).Penso que a escrita é uma das formas de manter viva a imagem das pessoas que amámos. Este legado que a Leonor nos deixa com a sua Adolescência, é a melhor  forma que encontrou para se despedir da família e dos amigos. Ao ler este livro póstumo manteremos viva a sua imagem, não se interrompendo  a conversa que durante anos mantivemos  com esta nossa amiga de infância.

A autora escreve de acordo com a anterior norma ortográfica.

© Fotografias do arquivo da família de Leonor Xavier.

[1] Simone de Beauvoir, Mémoires d’une Jeune Fille Rangée, Paris, Gallimard, 1958.
[2] Leonor Xavier, Adolescência, Lisboa, Temas e Debates, 2022.
[3] Maria Filomena Mónica, Bilhete de Identidade, Lisboa, Alêtheia, 2005.
[4] Ob. cit., p. 15. Uma vivência semelhante da  mesma escola (o  Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho)  está patente numa crónica  por mim publicada no Jornal on line 7margens (Vj. Maria Luísa Ribeiro Ferreira, “Memórias divertidas de uma escola do antigamente”, Fevereiro 2022).
[5] Yma Sumac foi uma cantora lírica peruana com uma notável extensão de voz que lhe permitia entoar notas numa escala de soprano a barítono.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.