O Bom Pastor em terras de Timor-Leste

P. João Felgueiras, jesuíta português missionário em Timor-Leste há 50 anos, comemora este dia 9 de junho100 anos. A sua vida é um testemunho de dedicação ao povo timorense, com quem partilhou as dores nos tempos da invasão indonésia.

P. João Felgueiras, jesuíta português missionário em Timor-Leste há 50 anos, comemora este dia 9 de junho100 anos. A sua vida é um testemunho de dedicação ao povo timorense, com quem partilhou as dores nos tempos da invasão indonésia.

Para uns é considerado um pai, para outros um companheiro fiel, que ficou ao lado do povo quando a guerra e a violência se instalaram. Há mesmo quem arrisque ver nele um herói, um santo, nascido em Portugal mas que é agora mais timorense do que português. Nas palavras do Superior Geral dos Jesuítas, o P. João Felgueiras é, sem dúvida, alguém que, “à semelhança do Bom Pastor, nunca abandonou as suas ovelhas ao longo de toda a sua vida”. Uma vida longa e com muitos frutos que completa amanhã, quarta-feira, 100 anos.

A data memorável assinala-se dia 9, em terras timorenses, com uma missa solene que será presidida pelo arcebispo de Díli, D. Virgílio do Carmo da Silva, na Igreja da Imaculada Conceição, em Díli, e que não poderá contar com a presença de todos os amigos que foi cultivando ao longo do tempo devido às restrições impostas pela pandemia e também pela fragilidade da sua saúde. Após a celebração eucarística, haverá um almoço de homenagem ao sacerdote jesuíta, também com caráter restrito, mas no qual marcarão presença figuras incontornáveis da história recente de Timor-Leste como Xanana Gusmão ou José Ramos Horta. Em Portugal, a vida do jesuíta que esteve pela última vez na sua terra natal em 2019 continua a ser lembrada e acompanhada através da oração, mesmo por muitos que só o conhecem do que ouviram contar. O Provincial, P. Miguel Almeida, que tencionava estar em Timor neste dia festivo, sublinha o “autêntico testemunho ambulante do Evangelho de Jesus” que o P. João Felgueira foi e continua a ser para tantos.

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Com os alunos da Escola Amigos de Jesus, por si fundada em 2016

O P. Joaquim Sarmento, superior regional dos jesuítas em Timor Leste, assegurou ao Ponto SJ que o P. João Felgueiras se mantém animado e lúcido, embora a sua saúde esteja fragilizada pela idade. Na impossibilidade de estar fisicamente com todos os que foram marcados pelo seu testemunho e pela sua amizade, em Portugal e em Timor-Leste, será homenageado através de um livro que lhe será oferecido e que recolhe testemunhos e contributos de ilustres personalidades como António Guterres, Jorge Sampaio, os bispos de Timor, o atual Presidente da República de Timor-Leste, entre outros companheiros jesuítas, como o P. Manuel Morujão que se refere a ele como um sacerdote de “saúde aparentemente franzina, mas uma saúde interior capaz de vencer todos os obstáculos”. Do Papa Francisco, o jesuíta receberá também uma bênção especial.

Em Portugal, a vida do jesuíta que esteve pela última vez na sua terra natal em 2019 continua a ser lembrada e acompanhada através da oração, mesmo por muitos que só o conhecem do que ouviram contar.

Formador de seminaristas, capelão de doentes e presos, professor, orientador de jovens e refúgio dos mais frágeis. É longa a lista de missões e ações em que se envolveu nos últimos 50 anos, desde o dia 21 de janeiro de 1971, quando aterrou em Timor-Leste para cumprir a missão que lhe fora confiada pelo Provincial da altura: ser vice-reitor no seminário diocesano. Mas foi no apoio direto à população que procurava sobreviver à ocupação indonésia, desencadeada em 1975, que se distinguiu, acolhendo os que fugiam da perseguição e violência, animando-os espiritualmente através da celebração dos sacramentos e acompanhando-os no seu sofrimento.

Refugiado nas montanhas com o povo ou celebrando nas comunidades religiosas na cidade, na clandestinidade ou junto dos mais poderosos, lutou por um povo que era perseguido, tornando-se, como seria de esperar, persona non grata entre as autoridades indonésias, que por várias vezes tentaram expulsá-lo do país e dificultar-lhe a ação pastoral. Nas suas missas havia sempre alguém ligado ao governo indonésio atento às mensagens que transmitia ao povo durante a homilia, recorda o jesuíta Isaías Caldas, padre timorense, numa entrevista ao Observador em 2017, e não foram poucas as vezes que viu barrada a sua entrada em solo timorense.

No fatídico dia 12 de novembro de 1991, quando se deu o massacre de Santa Cruz, onde foram assassinadas quase 400 pessoas, o também professor perdeu muitos dos seus alunos. Conta-se que ao ouvir os gritos dos jovens que se tinham deslocado ao cemitério para homenagear um rapaz timorense que havia sido morto uns dias antes, e sobre os quais o exército indonésio entrou a disparar, o sacerdote jesuíta acorreu ao local para ver o que se passava. Já no terreno consolava os feridos, ouvia em confissão os que estavam a morrer e escondia os que estavam vivos nas igrejas e nas comunidades dos religiosos.

Refugiado nas montanhas com o povo ou celebrando nas comunidades religiosas na cidade, na clandestinidade ou junto dos mais poderosos, lutou por um povo que era perseguido, tornando-se, como seria de esperar, persona non grata entre as autoridades indonésias, que por várias vezes tentaram expulsá-lo do país e dificultar-lhe a ação pastoral.

Esta luta pela dignidade do povo e da causa timorense fez dele uma pessoa querida por muitos e levou o então Presidente da República, Jorge Sampaio, a condecorá-lo com a Ordem da Liberdade, em 2002, depois da oficialização da independência de Timor. Também o Presidente da República Democrática de Timor-Leste, Taur Matan Ruak, o distinguiu com a Medalha de Mérito, no dia 11 de maio de 2016.

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P. João Felgueiras foi distinguido pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio

Mais do que um padre e um professor, o P. João Felgueiras foi também um defensor da língua portuguesa, ao continuar a lecionar o português no Externato São José, a única escola onde tal era permitido pelas autoridades indonésias durante o período de invasão.

Nos últimos anos, tal como sempre ao longo da sua vida, a educação foi uma prioridade e uma preocupação sua, uma vez que permite garantir um futuro melhor às crianças e jovens timorenses. Foi por isso com imensa alegria que viu ganhar forma, em 2016, um sonho antigo: a construção da Escola dos Amigos de Jesus.

Mais do que um padre e um professor, o P. João Felgueiras foi também um defensor da língua portuguesa, ao continuar a lecionar o português no Externato São José, a única escola onde tal era permitido pelas autoridades indonésias durante o período de invasão.

Ao longo de grande parte desta segunda etapa da sua vida, iniciada em Timor aos 49 anos, o P. João Felgueiras tem partilhado a missão com outros jesuítas, em especial com o português P. José Alves Martins, atualmente com 79 anos, que viajou de Portugal no verão de 1974, para ser formador espiritual no seminário onde o companheiro já se encontrava. Pouco mais de um ano depois, a 13 de dezembro de 1975, estariam os dois a fugir para a floresta junto a Bare na sequência do bombardeamento do seminário. A missão partilhada de cinco décadas é resumida assim pelo P. José Alves Martins: “ser testemunhos de fé em Jesus Cristo junto dos nossos irmãos timorenses, nossa razão de viver, e procurar ser incentivos de coragem e força para a continuidade da Companhia de Jesus em Timor Leste”.

Metade da vida em Portugal e a outra metade em Timor

João Vasconcelos Batista Felgueiras nasceu na freguesia de S. Tomé de Caldelas (Caldas das Taipas), concelho de Guimarães, no dia 09 de junho de 1921, sendo o oitavo de nove filhos, 6 dos quais seguiram a vida religiosa. Perdeu o pai aos seis anos de idade, e foi criado numa família profundamente cristã e onde já florescia o espírito missionário.

Fez os estudos preparatórios no Seminário Diocesano de Serpa, em Beja, entre 1933 e 1938, de onde seguiu depois para dois anos de filosofia (1938 – 1940) e mais tarde para dois anos de teologia (1940 – 1942), no Seminário Maior de Évora.

Entrou na Companhia de Jesus no convento de Santa Marinha da Costa, Guimarães, no dia 19 de setembro de 1942. Depois do noviciado estudou humanidades, e em 1947, entrou na Faculdade de Filosofia de Braga. No ano seguinte foi para Oña, Burgos, Espanha, fazer mais três anos de Teologia (1948-1951). Foi ordenado sacerdote no dia 30 de julho de 1950, em Oña. Fez a terceira provação em Gandia, Valência, Espanha. Em 1952 iniciou a sua atividade apostólica em Braga, trabalhando com a juventude, onde foi diretor do Centro Académico de Braga, e ministro da comunidade da Faculdade de Filosofia.

Esteve, ainda, na Escola Apostólica de Macieira de Cambra, como diretor espiritual dos alunos e no Colégio de S. João de Brito, em Lisboa, entre 1958 e 1961, como ministro e professor. Promovia acampamentos através dos quais aprofundava a formação humana e cristã dos alunos.  De 1962 a 1967 foi superior do Lar da Imaculada Conceição, anexo ao Instituto Nun’Alvres (Caldas da Saúde, Santo Tirso). Em 1967 foi nomeado reitor do Colégio de Cernache, Coimbra.

Em 1970 recebeu a missão de ir para Timor onde, além de vice-Reitor do Seminário de Nª Sª de Fátima, em Díli, foi, também, professor e diretor pedagógico. Fez parte do Conselho Presbiteral; foi assistente de comunidades de religiosas; membro da Comissão Diocesana dos Leigos e visitador do hospital e das cadeias. Fundou e dirige o movimento “Amigos de Jesus” com uma escola a seu cargo.

 

Este texto foi escrito com a colaboração do P. Francisco Correia, arquivista da província, e o contributo de alguns testemunhos que foram sendo publicados sobre o P. João Felgueiras, ao longo dos tempos.

Foto em destaque: P. João Felgueiras nos começos do seu tempo em Timor com o Bispo D. José Joaquim Ribeiro.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.