Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.(…).
Eugénio de Andrade
O advento é um tempo de espera, de antecipação e de preparação para esta única noite em que somos chamados a recordar e viver: a noite de Natal. A proposta é viver a história de natal como a nossa história pessoal. Foi assim que nos desafiamos a preparar, recordar, (re)nascer, e, por fim, encontrar.
Preparar
Preparamos a mesa, este ano quase sem lugares, e refletimos como podemos atribuir sentido à ausência dos lugares. Como pode a solidão aproximar-nos neste tempo de distância? Como reconhecemos Jesus neste tempo? Este é o nosso desafio para esta noite em que nos sentimos, acima de tudo, sós. Inseguros. Ao assumirmos esta solidão, esta insegurança, procuramos recordar o que nos diz o evangelho que aconteceu nesta noite.
Recordar
Fechamos os olhos e surge a imagem de um Senhor, já com alguma idade e uma jovem, grávida. Sabemos que caminham há vários dias. Parecem fugidos, sós. Exaustos.
Aproveitamos para explicar aos filhos que caminhar, para uma grávida de 9 meses, é especialmente exigente e cansativo e relembramos a história de um casal, que conheci em Lesbos na Grécia, num campo de refugiados. Tinham fugido do Afeganistão depois de serem baleados, dentro de casa, durante um conflito na zona. O seu primeiro filho, de 2 meses, não resistiu e morreu, baleado, no colo da mãe. A Mãe ficou muito ferida mas recuperou. O Pai sobreviveu paralisado na zona esquerda do corpo. Ficaram à espera do segundo filho e não podiam continuar ali. Fugiram deixando para trás a família de ambos, tudo. A Mãe, cheia de dor, disse-me que não tinha fotografias do primeiro filho. Fechou os olhos. Quando os abriu, agarrou-me na mão e perguntou se me importava de ver as suas cicatrizes. Olhei para as suas cicatrizes de morte numa barriga que transporta vida como quem olha para o sagrado, para o divino. As cicatrizes desta Mãe habitam na nossa casa.
Regressando à noite do nascimento de Jesus: A certa altura há sinais que o parto pode estar iminente. O marido procura um local minimamente digno para o momento de dar à luz. Mas está tudo esgotado. Resta-lhes um estábulo, com animais e uma manjedoura.
Hoje, nesta noite, no presépio estamos todos representados, 7 mil milhões de Nós. A natividade diz-nos, docemente, que todos pertencemos, que todos somos amados e chamados a amar. E que, todos, podemos (re)nascer.
Nascer
Esta é a atmosfera de nascimento do nosso Salvador. Porque será que Deus escolheu o seu filho nascer neste clima, com tanto perigo e tantos obstáculos? Quem é este bebé Jesus?
Há parte de um poema da Mary Oliver, chamado I wake Close to Morning que questiona “ Why do people keep asking to see God’s identity papers when the darkness opening into morning is more than enough?”* . Esta pergunta feita por esta maravilhosa poeta norte americana, ajudou-nos a compreender, finalmente, o que esteve sempre diante de nós: Deus sabe que nós, humanos, precisamos de um Deus para protegermos. Um bebé frágil e indefeso para cuidar. Nós precisamos desta fragilidade para nos ligarmos, para nos tornarmos humanos. Precisamos deste amanhecer.
Por outro lado, Jesus nasceu, num mundo perigoso e também agora vivemos uma época de conflitos violentos, existem 79,4 milhões de pessoas refugiadas no mundo que correm risco de vida a todos os minutos, que vivem e morrem em condições desumanas. Existem mil milhões de pessoas com deficiência que vivem em risco de exclusão. Estamos a viver a pandemia COVID-19 que já nos fez perder tantas pessoas, que causa tanta solidão, desemprego e pobreza.
O bebé Jesus nasceu. Nasceu a sagrada família rodeada de solidão, insegurança e pessoas que eram marginalizadas à luz daquele e do nosso tempo. Hoje, nesta noite, no presépio estamos todos representados, 7 mil milhões de Nós. A natividade diz-nos, docemente, que todos pertencemos, que todos somos amados e chamados a amar. E que, todos, podemos (re)nascer.
Encontrar
A noite de Natal é noite de encontro com a nossa própria história. Com a humanidade.
O desafio maior não é viver a mesa “quase sem lugares”, é antes colocar todos os lugares à mesa e esperar com ação, compromisso e (com)paixão que serão todos preenchidos. Com as pessoas com quem nos cruzamos no dia-a-dia, com a família, com os amigos, com quem é diferente de nós. Tornar-nos locais de encontro, na subtileza, na ação e em qualquer circunstância.
O desafio é viver esta noite com a solenidade que a Sagrada Família nos ofereceu na sua máxima solidão, na sua máxima fragilidade. Assumir que, quando alguém nos mostra as suas cicatrizes, ficamos responsáveis por elas. Este é o encontro que nasce em Belém, a interdependência que nos torna humanos. Como Jesus nos ensina desde o dia do seu nascimento.
A nossa mesa de Natal, será um local de encontro, mesmo com os lugares não ocupados. Fica o convite. No centro estará a seriedade do compromisso de proteger o bebé Jesus, a Nossa Senhora e o S. José. Na certeza de que, nunca será o COVID-19 que nos afasta, mas será sempre o silêncio desta noite sagrada que nos une. Sem máscaras. Sem ausências. Esta é, a noite de silêncio. A noite de Deus.
Feliz Natal Mãe, Pai, Avó, Avô, Tio, Tia, Amigo, Amiga, Irmãos.
*Porque é que as pessoas continuam a pedir para ver os documentos de identidade de Deus quando a escuridão que se abre em manhã é mais do que suficiente?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.