E o Verbo fez-se homem
e veio habitar connosco. (Jo 1, 14)
O cinismo é para muitos a prova maior da inteligência, a argúcia de espíritos distantes e iluminados que denuncia a pobre alienação dos tolos e a hipocrisia daqueles que os enganam. Os cínicos gostam de desconstruir certezas, abalar ideias feitas, denunciar incoerências. Derrubam pedestais, mas olham o mundo a partir de um desdém altivo que apenas é capaz de nomear ingénuos, ficando cego a toda a esperança.
E assim, cada vez é mais fácil encontrar quem fale do Natal como o tempo da maior falsidade. Desse prisma, tudo são sorrisos amarelos, mentiras e afetos piedosos. E, claro, se o mais provável é que Jesus nem tenha nascido a 25 de dezembro, como não achar que os relatos do seu nascimento não passam de meras histórias?
No fundo, um cínico é um utópico que ficou sentado no sofá. É tão idealista e tão moralista que desiste da realidade.
Sim, há muito sofrimento escondido na época de Natal. Há quem experimente mais do que nunca a solidão e quem viva mais intensamente a ansiedade de uma vida dividida. Há ainda, em cada um de nós, inúmeras incoerências, muita aparência e pouca raiz. Mas o cinismo é incapaz de fazer alguma coisa por alguém e cruza sarcasticamente os braços diante da nossa miséria. O cinismo alimenta a desconfiança, corrói laços e torna-nos incapazes de compreender que é justamente no lugar da maior solidão e por dentro da nossa miséria que acontece a encarnação do Verbo, da Palavra de Deus. No fundo, um cínico é um utópico que ficou sentado no sofá. É tão idealista e tão moralista que desiste da realidade.
A alternativa a este desencanto não é transformar o Natal numa bolha dourada, numa cápsula imune ao concreto da vida. O Natal pode (e deve) ser tempo de celebração, mas não de fuga. Celebramos porque acreditamos que a promessa de Deus se cumpre. Não em casas ideais em que nenhuma lâmpada de funde ou em famílias perfeitas, sem acidentes nem feridas. Cumpre-se em cada casa e em cada família concreta habitando um tempo concreto da existência humana. Cumpre-se em lugares sem teto e onde os laços humanos são mais pobres. Cumpre-se no desejo de união que se mistura com o joio da má-língua. Não somos fofos, somos gente de carne e osso, há trevas na nossa vida e no nosso mundo. Mas é justamente a essas trevas que Jesus quer trazer a luz de Deus.
O Natal pode (e deve) ser tempo de celebração, mas não de fuga.
Ao assumir a nossa humanidade, Jesus mostra-nos que nada do que é humano pode ser estranho a Deus. Não temos, por isso, que temer as nossas divisões, as nossas hipocrisias ou mentiras. Já fomos salvos, nenhuma tem que ter a última palavra sobre o que somos. De tudo o que é humano se pode fazer caminho para os outros e para Deus. E como Ele é connosco não o faremos sozinhos.
O cínico desiste da humanidade. O fofo ignora-a. Ao nascer como um de nós, Deus arrisca tudo. Cura-nos da tentação de desistir. Ao iluminar as nossas trevas revela-nos quem é Ele e o que significa ser humano. O convite de cada Natal é o de não desistir, nem ignorar a nossa humanidade. É nela que nos encontramos, é nela que somos encontrados por Deus.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.