Novembro, no calendário cristão-católico, é assinalado por dois grandes momentos litúrgicos, a Solenidade de Todos os Santos, no primeiro dia do mês, e a Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos, no dia seguinte. O sentido pleno da vida – a santidade – realizado na existência de uma “multidão imensa”, segundo a expressão do Livro do Apocalipse, é motivo bastante para que se interrompa o ritmo quotidiano do trabalho e se congregue a comunidade para o celebrar na alegria e na festa. A essa luz, a morte como passagem, e não como fatalidade, é razão para fazer memória de todos os que nos precederam e considerar, na responsabilidade e na esperança, a passagem última que também tocará a nós. Em quem nos tornamos, gratos pela herança recebida e implicados na tarefa que é viver, entre as promessas do nascimento e a passagem da morte, é o movimento posto no centro da ação litúrgica. A história de vida que é Jesus de Nazaré, reconhecido como o Filho encarnado, morto e ressuscitado, é a figura exemplar, verdade da humanidade realizada no oferecimento da própria vida.
A importação comercial do Halloween é só mais um fator de alteração, ainda que culturalmente artificial e simbolicamente superficial, do imaginário cristão em torno do dado humano que é nascer e morrer, do enigma existencial da vida e da morte, da palavra e da ritualidade em torno da eternidade e da finitude. Paralelamente, em muitas comunidades cristãs, o chamado “Dia dos Mortos” – a finitude e a morte – foi-se destacando, se não mesmo sobrepondo, ao “Dia dos Santos” – a plenitude da vida, a sua eternidade. Porém, a liturgia, que condensa e cultiva uma sabedoria narrativa e uma força performativa particulares, resiste, tanto à banalização e remoção da densidade humana e espiritual das duas celebrações, como à inversão da sua ordem. Valerá a pena destacá-la.
Paralelamente, em muitas comunidades cristãs, o chamado “Dia dos Mortos” – a finitude e a morte – foi-se destacando, se não mesmo sobrepondo, ao “Dia dos Santos” – a plenitude da vida, a sua eternidade.
Primeiro está a orientação e a realização plena da vida, dom pelo qual se é responsável. Depois, e só depois, a consideração da finitude e da morte. Se somos seres para a morte, como tanto insistiu a filosofia existencialista do século passado, pelo nascimento e pelo desejo que nos move, somos ainda mais radicalmente seres iniciados, orientados e afeiçoados à vida, elemento em que o pensamento contemporâneo talvez ainda não tenha investido suficientemente. É esta a ordem justa que cabe narrar e ritualizar, mas também explorar pelo pensamento. No início estão a bênção e a realização das promessas da vida: nascemos, não para morrer, mas para viver. Ainda que incontornável, a morte é segunda. Ser dado à luz, desejar viver e implicar-se responsavelmente na vida não dizem menos sobre ela do que saber que, um dia, inevitavelmente, se morrerá. Por isso, vem mais luz da singularidade de cada existência e do desejo de vida do que da inevitabilidade da morte. Esta expetativa em relação à vida como promessa é tão estrutural que gera o sentimento de profunda injustiça quando qualquer cegueira bruta da natureza ou arbitrariedade dos homens ferem gravemente ou atingem mortalmente a vida do ser humano, gerando tenaz resistência a que tenham a última palavra sobre o seu sentido. A radicalidade de tal expetativa, que é afetiva e racional, não pode deixar de ser questionada pelo pensamento. De onde vem, o que significa e para onde conduz este tão estruturante desejo humano de vida, que é infinitamente mais do que um mero instinto de sobrevivência? E o escândalo radical por toda a injustiça que o possa atingir?
O nascimento como iniciação e a consideração da morte como passagem são a matéria que o teólogo Pierangelo Sequeri explora no seu mais recente livro L’iniziazione. Dieci lezioni su nascere e morrire (Milão: Vita e Pensiero, 2022): A iniciação (título), na forma de dez lições sobre nascer e morrer (subtítulo). Pela relevância do tema para o pensamento atual sobre a condição humana que partilhamos e a sua qualidade afetiva-espiritual, pela originalidade e força da argumentação e pelo contributo específico que colhe da experiência religiosa universal, em geral, e da fé cristã, em particular, merece atenção.
Diante do nascimento e da morte, da origem e do destino da vida, a cultura secular moderna tende a esvaziar o “encanto” espiritual do mundo e a desconsiderar a eternidade do sujeito humano, trazendo a totalidade das coisas e da existência para o campo exclusivo do mensurável. A “física” retira alcance de conhecimento credível a tudo o que seja “meta-físico”, na medida em que transcenda o “físico”, que esteja para lá dos dados, métodos e instrumentos de medição da ciência. Neste registo, nascer e morrer são facilmente reduzidos a questão médica e legal: fertilidade e cuidados paliativos, natalidade e esperança de vida, aborto e eutanásia. Se nascer e morrer são essencialmente questão “técnica”, o sentido da vida e, portanto, da morte, tende a não gozar e a não poder gozar de “interesse público”. A densidade espiritual será toda e apenas assunto subjetivo – dizer “subjetivo”, hoje, equivale a dizer inatendível – e privado. No “espaço público” secular, vimos de lado nenhum e vamos para nenhum lado. «A nossa singularidade é reduzível a uma variamente combinatória de fatores materiais-orgânicos» que vão criando estruturas biológicas sempre mais complexas: não se concebe «uma reserva de sentido que seja superior e que transcenda as funções elementares de um qualquer organismo vivo: afirmar-se, conservar-se, reproduzir-se», sublinha Sequeri (p. 29). Nascemos por acaso e, quando morremos, extinguimo-nos inexoravelmente.
Já a experiência da morte é, hoje, tendencialmente coberta por formas de escondimento – começamos por esconder a morte às crianças – e de silêncio embaraçado. Mesmo a sua exibição permanente e quase sem filtros – a cobertura da guerra em curso na Ucrânia tem sido a mais recente exibição quotidiana do espetáculo da morte – tende a removê-la por banalização: anestesia os sentidos, neutraliza a comoção, normaliza o pensamento.
Já a experiência da morte é, hoje, tendencialmente coberta por formas de escondimento – começamos por esconder a morte às crianças – e de silêncio embaraçado. Mesmo a sua exibição permanente e quase sem filtros – a cobertura da guerra em curso na Ucrânia tem sido a mais recente exibição quotidiana do espetáculo da morte – tende a removê-la por banalização: anestesia os sentidos, neutraliza a comoção, normaliza o pensamento. A exaltação do útil e do que pode ser consumido, e a quase obsessão com a diversão, de que a paródia de muitos videojogos e filmes de guerra é só um exemplo, têm poderes exorcistas. Sobre a eternidade nada temos a dizer. Sobre a morte preferimos não falar. Entretanto, decorre a vida que “há que aproveitar ao máximo enquanto dura”, tendencialmente no registo da autorreferencialidade do próprio projeto de vida, da defesa do direito de propriedade sobre nós próprios – também sobre o corpo como coisa que simplesmente se tem, que gera ou que se recursa a gerar, que se cansa de viver e que, por isso, pede para que se lhe dê a morte –, da reivindicação da tutela legal de cada particularidade pessoal ou de grupo.
Porém, se pensarmos bem, o enigma da origem, que é mais do que início – somos precedidos e espiritualmente abertos –, confere ao nascimento o estatuto de iniciação: o dom que a vida é deve ser acolhido, desenvolvido, aprofundado, modelado em liberdade e responsabilidade; o enigma do destino, que é mais do que fim – estamos orientados para uma plenitude que, no fundo, desejamos intimamente que venha a ser reconhecida, senão mesmo garantida –, ritualiza a morte como momento de passagem. Este enigma vem de muito longe. Encontramo-lo já na sensibilidade religiosa das primeiríssimas formas de cuidado do corpo nas sepulturas dos nossos antepassados mais remotos. É antiquíssima a resistência humana ao destino niilista da vida, ao nada como origem e ao nada como destino. Na verdade, resistimos a aceitar que aquilo que interrompe a vida, ainda que de forma acidental ou dramática, tenha simplesmente o poder de decidir o seu sentido. Se assim fosse, é «como se tivéssemos de confiar o seu sentido, os seus afetos, as suas promessas, as suas expetativas e os seus desejos a um ato de arresto que num ápice os anula: sem discutir connosco, sem uma lógica precisa, sem um conteúdo plausível que esteja à altura daquilo que perdemos». Mas «o milagre do nascimento do eu», que se possa afogar ou dissipar «num instante em que tudo se torna nada, continua a aparecer ao género humano uma contradição insensata, à qual a consciência humana e a sensibilidade resistem espontaneamente, mesmo sem terem meios para a resolver» (p. 8).
Reconhecemos à vida uma sua “verdade”, que decorre de um sentido de “justiça” íntimo à consciência humana. Trata-se de um “dever ser” para que a vida “seja como deve”, segundo as expressões de Sequeri. O que significa? Talvez o facto de sentirmos e de sabermos que a realidade nunca é simplesmente como deveria ser ajude a responder. Podemos conformar-nos com o que falta e com a nossa impotência para tornar presente o que parece faltar, tal como podemos ser impotentes para contrariar ofensas e injustiças, mas não renunciamos a sentir e a pensar que, no fundo, no fundo, não é justo que assim seja. Não é justo, por exemplo, que a vida de alguém seja ferida gratuitamente, que o indefeso não seja protegido, que a criança seja abusada. Tudo pode ser “inevitável”, “normal”, “insuperável”, mas não deixa de ser tido como injusto e, por isso, de gerar inconformismo e resistência. A nossa mente e a nossa sensibilidade não suportam que esta nossa expetativa de que haja coerência entre a realidade que experimentamos e o que consideramos ser ideal de justiça seja completamente frustrada. Tal resistência enraíza-se «nas fibras mais profundas e mais originárias do ser», enquanto convicção radical de que «existe uma justiça – seja ela ‘Deus’, ‘não Deus’, natureza ou destino – que exige que seja honrada como a única verdade do ser à altura da existência consciente e livre com que vivemos no mundo» (p. 106). A experiência crua da realidade não confirma nem pode garantir esse “dever ser”, mas o ser humano não renuncia a que, para “ser bem”, “seja como deve”.
O pensamento filosófico poderá sustentar que este juízo moral é só convenção e o método científico excluir-lhe-á qualquer fundamento natural. Nesse sentido, nascer para morrer, sim, é absurdo, mas é a realidade. Tudo o resto seriam invenções ou projeções, religiosas ou metafísicas, da sensibilidade ou da mente. Porém, o nó não é desatado. O sentido de um “dever ser para que a vida seja como deve” não é eliminado. Tanto nos acontecimentos como nas relações do quotidiano, esse sentido apresenta-se como condição elementar de reconhecimento da dignidade da vida humana e imperativo ético da sua defesa. Por isso, sustenta Sequeri, o fundamento da dignidade humana é essencialmente moral: «não é racial, biológico, social, económico, assistencial» (p. 182). Descobrimo-nos habitados por uma promessa e pela expetativa afetiva de um sentido justo da realidade e da existência. Tal expetativa torna-se exigência: constitui-se como nossa fisionomia. A realidade pode desmentir esse “dever ser para ser bem”, mas, se é injusta, o ser humano não se resigna a que “seja assim”, mesmo que fosse um deus a determiná-la. Esse avesso não consegue impor-se-nos como direito.
Por isso, a iniciação ao amor à vida e ao sentido da morte – em quem nos tornamos no decurso da vida – constitui um exercício de inconformismo do ser afetivo e espiritual que somos diante da redução a simples organismo vivo que se alimenta, protege e reproduz.
A ser assim, retirar força de iniciação ao nascer e considerar a morte como mero acidente que resolve a vida, são estratégias insatisfatórias, mesmo parecendo as mais “racionais”, quando se atende à densidade do desejo, dos afetos e dos laços a que o nascimento inicia e em que tanto se investe no decurso da existência humana – tantos custos e tantos sofrimentos, tantas expetativas e tantas alegrias. Por isso, a iniciação ao amor à vida e ao sentido da morte – em quem nos tornamos no decurso da vida – constitui um exercício de inconformismo do ser afetivo e espiritual que somos diante da redução a simples organismo vivo que se alimenta, protege e reproduz. Sim, claro, somos organismo vivo, é bom não esquecer, mas somos muito mais. Para nós, humanos, comer é bem mais do que ingerir alimentos para sobreviver, tal como o ato sexual é bem mais do que ação que garanta a reprodução para a continuidade da espécie. Mas essa iniciação é também ato de resistência humana, mesmo se inconsciente, a que a vida nada valha para lá do que vale aqui e agora, e a que tudo quanto a alimenta, a eleva e lhe dá sentido seja só desejo vazio e paixão inútil e esteja destinado à aniquilação na impassibilidade do nada ou na dispersão nos buracos negros do universo.
A fé cristã faz seu esse ato de cuidado e de resistência: «somos uma paixão de Deus, não uma anomalia do universo».
A fé cristã faz seu esse ato de cuidado e de resistência: «somos uma paixão de Deus, não uma anomalia do universo» (p. 15). «Ele enxugará as lágrimas dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem gritos, nem dor», como se entrevê e se antecipa no Apocalipse (21,4). Não passará de projeção ou de invenção a promessa bíblica, uma forma paliativa de contornar a crueza de que nascemos para morrer e de que esse fim seja todo o horizonte dos nossos desejos mais sinceros e dos nossos afetos mais caros? Sim, poderá argumentar-se que o seja, como vimos. E, porém, poderíamos renunciar a aspirar a esse “dever ser para ser bem”, à realização plena dessa “justiça devida” e continuarmos a ser inteiramente humanos? Continuaríamos a sê-lo se a morte fosse só dissolução no nada? Uma coisa é certa, seríamos certamente os seres vivos mais irrazoáveis, já que todo o investimento no afeto, no desejo, nos laços, na imaginação, no pensamento, nas artes, na narrativa e no rito religioso… teria como único destino o nada – mesmo a permanência na possível obra que se consiga deixar aos vindouros ou na memória de alguém por quem se foi amado parece demasiado frágil: por um lado, é recordação só de alguns e memória sem relação, já que não tem correspondência; por outro, mais tarde ou mais cedo, a usura do tempo acabara por impor o esquecimento. “Nada” seria, pois, o horizonte último dos nossos desejos, afetos, relações e fecundidade. “Nada” seria tudo e só aquilo em que nos tornaríamos.
O pensamento do nascimento como iniciação e da morte como passagem sustentam, pelo contrário, que «não somos nada e que não acabaremos no nada» – se pensarmos bem, «o nada não é sequer um tempo ou um lugar no qual as coisas possam acabar». E porque não nos podemos compreender «sem memória e sem imaginação, sem liberdade e sem acontecimentos, sem relações e sem criações, sem criatividade e sem beleza», no imaginário cristão «a inauguração final do Reino de Deus […] é um banquete de festa, não uma função religiosa; é uma intimidade com o Criador dos mundos da vida, não a imersão no rio Letes de uma anestesia perene» (p. 113). Dessa festa, farão parte também as feridas da paixão da nossa humanidade, tal como fazem parte do corpo do Ressuscitado, testemunhas que são da verdade da Sua vida. Então, «só teremos lágrimas de alegria, emocionados que seremos pela confirmação inesperada de uma passagem que não nos engoliu e de um nascimento que nos torna definitivamente felizes pelo cumprimento das suas promessas» (p. 180). Invenção e projeção religiosa? O desejo, os afetos, os laços em que investimos o melhor de nós mesmos e da humanidade que partilhamos parecem pressentir e fazer esperar que seja, antes, a verdade mais íntima da existência humana: sendo a força e o sentido da vida no tempo, alguém os deverá reconhecer na eternidade; nessa relação afetiva nos reconheceremos, por fim, verdadeiramente reconhecidos. A tal verdade nos inicia o nascimento – se não fossemos trazidos à vida, então, sim, nada é o que seríamos. Para a sua plenitude nos dá passagem a morte. Entretanto, reconhecemos a graça maior e implica-nos a tarefa custosa que é viver e viver humanamente. Cada um e em conjunto, cultivamos a gratidão, a paixão, a responsabilidade pela vida. É para viver que nascemos.
NOTA: Este texto é o editorial da edição da revista Brotéria que pode ser adquirida aqui.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.