Este ensaio é da autoria do P. Arturo Sosa, Superior Geral da Companhia de Jesus, e foi publicado originalmente pela America Magazine. Baseia-se numa comunicação apresentada na Conferência sobre Migração Global e o Estado de Direito, patrocinada pela Faculdade de Direito da Universidade Loyola de Chicago, realizada na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, a 11 de abril de 2025.
Em 1974, o Papa Paulo VI dirigiu-se aos delegados jesuítas reunidos na 32.ª Congregação Geral da Companhia de Jesus com as seguintes palavras: “Em qualquer parte da Igreja, mesmo nos campos mais difíceis e extremos, nas encruzilhadas das ideologias, na linha da frente do conflito social, onde quer que haja confronto entre os desejos mais profundos do ser humano e a mensagem perene do Evangelho, aí também estiveram e estão os jesuítas.”
Acredito que estas palavras continuam a aplicar-se hoje à Companhia de Jesus. Em particular, nós, jesuítas e colaboradores leigos, estamos na linha da frente do conflito social através do nosso cuidado pelos migrantes e deslocados. O Serviço Jesuíta aos Refugiados está presente em mais de 40 países, incluindo a Ucrânia, o Líbano, a Síria, o Afeganistão, o Chade e o Sudão do Sul, acompanhando, educando e defendendo os direitos das pessoas deslocadas. Mantemos ministérios em muitas fronteiras internacionais, em países como os Estados Unidos e o México, o Haiti e a República Dominicana, a Tailândia e Myanmar, a Venezuela e a Colômbia, entre outros. As nossas universidades jesuítas também estão na linha da frente do conflito social, desenvolvendo investigação, debate e análise sobre as causas profundas da migração, as condições sociais e as ideologias destrutivas que forçam as pessoas a deslocarem-se. A Companhia de Jesus continua na linha da frente do conflito social, procurando soluções e oferecendo esperança aos que já a parecem ter perdido.
Enquanto Companhia de Jesus e obras apostólicas ao serviço dos migrantes, damos o nosso melhor quando ligamos o trabalho no terreno ao trabalho intelectual; quando comunicamos as experiências daqueles que prestam serviço e acompanhamento direto — bem como as vozes dos próprios migrantes — com os que investigam, advogam e procuram soluções para o seu sofrimento. Parte essencial deste trabalho é estabelecer ligações com a rede de ministérios jesuítas em todo o mundo, de forma a que toda a investigação esteja informada pelas experiências reais dos que prestam serviço direto e dos próprios migrantes.
“Não somos animais”
Os Exercícios Espirituais de Santo Inácio começam com o Princípio e Fundamento, que nos exorta a louvar, reverenciar e servir a Deus. Este é o alicerce de tudo o que fazemos, individual e coletivamente, e é a base a que cada jesuíta regressa todos os anos ao fazer o seu retiro anual. A vitalidade da Companhia depende da sua fidelidade ao Princípio e Fundamento. De forma semelhante, o primeiro princípio da fé católica e da “Declaração Universal dos Direitos Humanos” das Nações Unidas é a crença de que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos — algo a que devemos regressar repetidamente para nos lembrarmos de que a nossa dignidade e direitos derivam do facto de sermos humanos e não dependem da nossa nacionalidade ou local de nascimento.
Um advogado jesuíta que trabalha em centros de detenção para imigrantes relatou que uma vez um cliente lhe disse: “No somos animales, Padre” (“Não somos animais, Padre”). A resposta imediata a tal afirmação é “claro que não”; e, no entanto, as evidências de como o mundo trata os migrantes indicam que não os vemos como plenamente humanos, nem como possuidores de direitos e dignidade iguais.
Na sua busca por uma vida melhor ou mais segura, são vítimas de predadores, comprados e vendidos, traficados, violados sexualmente e descartados. Se chegam ao seu destino, são tratados com desprezo e como criminosos.
Na sua busca por uma vida melhor ou mais segura, são vítimas de predadores, comprados e vendidos, traficados, violados sexualmente e descartados. Se chegam ao seu destino, são tratados com desprezo e como criminosos. Demasiadas vezes, os migrantes são separados dos seus entes queridos e enviados para centros de detenção remotos sem acesso a representação legal ou à possibilidade de contactar a família. Crianças imigrantes esperam na escola pelos pais que foram detidos numa rusga laboral sem qualquer oportunidade de organizar cuidados para os filhos. Ao fim do dia, ninguém aparece. Ouço histórias de imigrantes presos na rua, que não conseguem ir buscar a sua medicação para epilepsia ou outras doenças graves, sendo-lhes negado tratamento ou acesso a um médico enquanto estão detidos. Quando ouço estas histórias, percebo porque sentem necessidade de nos lembrar: “No somos animales, Padre.”
Há cinco anos, o Papa Francisco publicou a encíclica Fratelli Tutti, que apela ao renascimento do amor fraterno e da amizade social, reconhecendo que esse renascimento só pode acontecer através do reconhecimento autêntico e sincero da dignidade humana. Lembra-nos que “somos irmãos e irmãs” e “não somos animais”. Devemos, por isso, perguntar: como se manifesta um reconhecimento autêntico e sincero da dignidade humana no contexto da migração e do Estado de direito?
Há muitas respostas possíveis a esta questão complexa, e não sou especialista na matéria. No entanto, argumentaria que há três princípios essenciais, inegociáveis, que devem fazer parte de qualquer resposta à questão migratória:
O direito de permanecer
O primeiro princípio é o de que uma pessoa tem o direito a uma vida digna no seu país de origem. Isto significa que tem o direito de não migrar. Um reconhecimento autêntico da dignidade humana deve, por isso, priorizar o desenvolvimento humano integral em vez da ajuda militar. Falamos frequentemente do direito a procurar uma vida melhor noutro país, mas pouco ou nada se diz sobre o direito de permanecer e procurar essa vida melhor no seu país natal, criando família, vivendo com os pais, desfrutando da sua cultura e dos ritmos da terra onde nasceu.
Um reconhecimento autêntico da dignidade humana deve, por isso, priorizar o desenvolvimento humano integral em vez da ajuda militar. Falamos frequentemente do direito a procurar uma vida melhor noutro país, mas pouco ou nada se diz sobre o direito de permanecer e procurar essa vida melhor no seu país natal.
Quando alguém fala sobre as prioridades da sua instituição, é útil perguntar pelo orçamento. Porquê? Porque aí se veem as verdadeiras prioridades. As nossas prioridades revelam-se onde colocamos os nossos recursos. Por exemplo, é difícil acreditar que uma instituição leve a sério a educação dos mais pobres se atribui pouco dinheiro a bolsas ou apoio financeiro. De forma semelhante, é difícil acreditar que o desenvolvimento humano integral e o direito de permanecer sejam prioridades quando a maioria da ajuda externa e do investimento privado dos países desenvolvidos se destina à ajuda militar e à extração mineral.
Se realmente acreditássemos no direito de permanecer, então os nossos orçamentos dariam muito mais prioridade ao desenvolvimento rural, à água potável, ao acesso à educação, aos cuidados de saúde adequados, entre outros. Um reconhecimento sincero e robusto da dignidade humana refletir-se-ia numa ajuda internacional e investimento estrangeiro que promovesse as condições sociais e económicas que permitissem viver com dignidade — e não em iniciativas que financiam forças armadas e polícias que frequentemente violam os direitos humanos dos pobres e alimentam os fluxos migratórios.
O direito de migrar
O segundo princípio é o de que cada pessoa tem o direito de viver com dignidade num país estrangeiro — o direito de migrar para sustentar a si própria e à sua família. Como escreve o Papa Francisco: “Todo o ser humano tem direito a viver com dignidade e a desenvolver-se integralmente; esse direito fundamental não pode ser negado por nenhum país” (Fratelli Tutti, n.º 107). Em muitos casos, mães e pais abandonam o seu país de origem para sustentar a família, pagar a educação dos filhos, comprar medicamentos para pais doentes, ou construir uma casa condigna — algo impossível com a agricultura de subsistência.
Assim, um reconhecimento autêntico da dignidade humana implicaria apoiar a reunificação familiar e criar vias legais de entrada e integração para os imigrantes. Significaria reconhecer e assumir o dever de ajudar outros a viver com dignidade.
Claro que aqui falamos sobretudo dos fatores de “expulsão” da migração — pobreza e privação que obrigam as pessoas a sair. Mas devemos reconhecer também os fatores de “atração” dos países que dependem da mão de obra migrante e que atraem pessoas para rotas perigosas e fronteiras militarizadas. Refiro-me a milhares de trabalhadores sazonais, diaristas, empregados com salários mínimos na agricultura, construção e trabalho doméstico. Nos últimos anos, quando países ricos foram atingidos por catástrofes — furacões, tornados, cheias, incêndios florestais — muitas comunidades foram reconstruídas com mão de obra migrante. A resposta autêntica e sincera seria reconhecer estes trabalhadores e não deportá-los nem rotulá-los como criminosos ou ameaças à segurança nacional.
Isto não invalida o direito dos países a manter fronteiras, mas as fronteiras não devem servir para manter sistemas económicos injustos que dependem de imigrantes indocumentados. As fronteiras tornam-se mais seguras quando existem vias legais adequadas e justas.
Isto não invalida o direito dos países a manter fronteiras, mas as fronteiras não devem servir para manter sistemas económicos injustos que dependem de imigrantes indocumentados. As fronteiras tornam-se mais seguras quando existem vias legais adequadas e justas. Acredito que soluções para os problemas migratórios podem ser encontradas se pessoas de boa vontade participarem no diálogo. Infelizmente, os meios de comunicação retratam os migrantes como traficantes de droga e terroristas, criando um clima de medo que leva os políticos a legislar contra os interesses tanto dos migrantes como das próprias nações.
O direito à paz
O terceiro princípio é o de que cada pessoa tem o direito a uma vida digna, livre da violência e da guerra. Isto implica que refugiados e requerentes de asilo que fogem de contextos de violência e guerra têm direito a abrigo e proteção — algo que a comunidade internacional há muito reconhece. Um reconhecimento sincero da dignidade humana acolheria refugiados respeitando os quadros legais existentes e fornecendo recursos adequados às agências de acolhimento, criando estruturas judiciais capazes de gerir os processos. Situações prolongadas de refugiados são desumanas e clamam aos países desenvolvidos como o pobre Lázaro clama ao homem rico (Lc 16,19-31), e, mesmo assim, os países ricos continuam a reduzir os seus programas de reinstalação — quando o número de refugiados ultrapassa já os 122 milhões em todo o mundo.
O processo de asilo em muitos países parece também estar falido. Quem chega à fronteira com receio de regressar ao seu país é muitas vezes recusado; ou, quando admitido, espera anos por uma audiência, sem poder trabalhar ou sustentar-se. Isto apesar das leis e tratados internacionais que visam proteger os requerentes de asilo.
Entrar no mundo dos migrantes
A esperança de que estes três princípios sejam respeitados depende de duas coisas: o Estado de direito e corações misericordiosos. Estes valores devem ser consagrados em leis que sejam aplicadas e respeitadas. Provavelmente não estou a dizer nada de novo ao leitor, mas o Estado de direito já não tem a importância que teve. Já não podemos dar por garantido que a soberania da lei — como garante de justiça, equidade e imparcialidade — é um objetivo inquestionável de uma sociedade saudável. Em muitos lugares, foi substituído pelo desejo de líderes autoritários e por leis severas que penalizam o que há de mais nobre na humanidade.
A parábola do bom samaritano, citada na passagem central da Fratelli Tutti, é uma referência essencial para os cristãos: exige que sejamos próximos de quem precisa. No entanto, há leis que criminalizam quem ajuda migrantes, quem oferece abrigo, comida ou água. Os nossos abrigos fronteiriços — obras de misericórdia — são condenados por políticos, incluindo alguns católicos, e acusados de facilitar o tráfico de seres humanos.
A missão contemporânea da Companhia de Jesus, articulada na 32.ª Congregação Geral como “o serviço da fé e a promoção da justiça”, está particularmente vocacionada para esta tarefa. A nossa rede de mais de 3.000 escolas em 80 países, com quase dois milhões de estudantes, deve ser um espaço onde se ensina a plenitude da fé, onde as crianças aprendem que todos possuem dignidade humana e que a compaixão e a misericórdia são louváveis — não criminosas. Ao mesmo tempo, as nossas escolas devem ensinar que fé e justiça estão entrelaçadas — e que a justiça é parte constitutiva do Evangelho. Devemos formar os líderes do futuro para serem homens e mulheres de justiça, com corações misericordiosos e um respeito sincero e autêntico pela dignidade humana.
Devemos formar os líderes do futuro para serem homens e mulheres de justiça, com corações misericordiosos e um respeito sincero e autêntico pela dignidade humana.
Logo no início dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola há uma meditação sobre a Encarnação que nos recorda que Deus, ao olhar para o mundo em sofrimento, decidiu entrar nele para trazer cura e salvação. Santo Inácio queria que os jesuítas e os seus companheiros olhassem para o mundo com os olhos de Deus — um olhar universal sobre a humanidade, nas suas riquezas e complexidades —, que vissem o sofrimento e a angústia do povo e depois decidissem “entrar” nesse mundo e discernir como responder.
Tantas pessoas que hoje trabalham com migrantes por todo o mundo viram uma família humana em movimento, a sofrer e perseguida — e decidiram entrar nesse sofrimento e tentar levar cura através das suas competências e áreas de conhecimento. Agradeço a todas essas pessoas por terem entrado no mundo dos migrantes. Que o Senhor abençoe a obra das vossas mãos, corações e mentes.
Tradução: Ponto SJ
O Ponto SJ agradece à America Magazine a possibilidade de traduzir e publicar este texto.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.