Não, “eles” não mataram Jesus

O cantor de rap Booba, o teólogo Karl Rahner e um pouco de etimologia... Para desfazer mal-entendidos que ainda restam do passado.

O cantor de rap Booba, o teólogo Karl Rahner e um pouco de etimologia... Para desfazer mal-entendidos que ainda restam do passado.

1. Como mel para a boca

https://youtu.be/eeAQ3ZaUa2c

No final de um trecho de um clássico do rap francês (Boulbi), Booba, afirma: “Não é a rua mas o ser humano que me entristece. Como ter confiança neles, se eles mataram o Cristo.” Karl Rahner dá-lhe uma razão de esperança no esclarecimento… É de agradecer ao muito atento Amaury Perrachon por este pedaço de mel!


2. Um texto bíblico

«Os que tinham prendido Jesus conduziram-no à casa do Sumo Sacerdote Caifás, onde os doutores da Lei e os anciãos do povo se tinham reunido. Pedro seguiu-o de longe até ao palácio do Sumo Sacerdote. Aproximando-se, entrou e sentou-se entre os servos, para ver o desfecho de tudo aquilo. Os sumos sacerdotes e todo o Conselho procuravam um depoimento falso contra Jesus, a fim de o condenarem à morte. Mas não o encontraram, embora se tivessem apresentado muitas testemunhas falsas. Apresentaram-se finalmente duas, que declararam:
“Este homem disse: ‘Posso destruir o templo de Deus e reedificá-lo em três dias’.”
O Sumo Sacerdote ergueu-se, então, e disse-lhe:
“Não respondes nada? Que dizes aos que depõem contra ti?”
Mas Jesus continuava calado. O Sumo Sacerdote disse-lhe:
“Intimo-te, pelo Deus vivo, que nos digas se és o Messias, o Filho de Deus.”
Jesus respondeu-lhe:
“Tu o disseste. E Eu digo-vos: Vereis um dia o Filho do Homem sentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu.”
Então, o Sumo Sacerdote rasgou as vestes, dizendo: “Blasfemou! Que necessidade temos, ainda, de testemunhas? Acabais de ouvir a blasfémia. Que vos parece?” Eles responderam: “É réu de morte.”»

Mateus 26, 57-66


3. O esclarecimento

O povo judeu foi estigmatizado e perseguido durante muito, muito tempo, considerado como o povo “deicida” – literalmente: que “assassinou Deus” – tornando-se culpados da morte de Jesus, Deus feito homem.
Aqui ficam alguns elementos de resposta para contrabalançar este erro trágico…

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Mel Gibson, A Paixão de Cristo, 2004 (Quando saiu, este filme — amado e nada amado — foi classificado de antissemita, talvez um pouco apressadamente…)

| #1 Primeiro esclarecimento linguísto-histórico: |

A palavra grega Ioudaioi usada nos evangelhos, muitas vezes traduzida por “Judeus”, designa :

  • por vezes o conjunto do “povo judeu”;
  • por vezes apenas “Judeus”, em oposição aos Galileus (Jesus e os seus discípulos eram Galileus).

Parêntesis geográfico: os Judeus são os habitantes da região da Judeia (da qual Jerusalém faz parte). Os Galileus vivem na região da Galileia (onde se situa Nazaré), mais a norte. A Judeia e a Galileia ficam a menos de 100 km de distância, mas reconhecia-se a pronúncia dos Galileus, diferente da dos Judeus (Mateus 26,73). Essa oposição atravessa todo o evangelho!

Conclusão: 

A palavra grega loudaioi, traduzida em latim por Judaei, originou judeus, Jews, Juden, etc. nas línguas europeias, designando sistematicamente todo o povo de Jesus. Uma generalização abusiva que contribuiu ao crescendo do prejuízo erróneo de “judeus deicidas”.

E isto porque, em boa verdade:

  1. “Cristo” vem do grego Christos que por sua vez vem do hebreu MaShiaH, Messias. Ou seja, Cristo = Messias. Quando se fala de Jesus Cristo, fala-se então daquele ce é reconhecido pelos seus discípulos como o Messias de Israel. Ora, o primeiro círculo de Jesus é quase inteiramente judeu. Primeira conclusão: muitos judeus reconheceram Jesus como Messias, pelo que não podemos acusá-los de ter participado na Sua morte.
  2. Outros Judeus não o reconheceram como Messias: entre eles, alguns participaram na morte de Jesus e outro não. Segunda conclusão: nem todo o povo judeu participou na morte de Jesus. É absurdo atribuir-lhes esta responsabilidade total, quando a verdade é que só alguns dos responsáveis político-religiosos do povo participaram nesta decisão.
  3. Por fim, no modo de execução de Jesus, foi Pilatos, governador romano, que teve a última palavra. Os textos do Novo Testamento são claros a este respeito. Uma clarificação histórica ajuda a confirmar este ponto: a condenação à morte entre o povo judeu fazia-se por lapidação e não por crucifixão (método próprio dos romanos).
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Duccio du Buninsegna, Jesus ante Caifás. Detalhe do verso do retábulo da Maestà (têmpera e ouro sobre madeira, 1308-11), Museu da Opera del Duomo, Siena, Itália.

| #2 Para dar esperança a Booba |

Enfim, este argumento teológico é suficiente por si mesmo para anular a acusação: Jesus morreu por toda a humanidade, e por todos os nossos pecados. Na sua morte, alguns grandes sacerdotes (e não todo o povo) e o governador Pilatos foram os instrumentos da vontade divina para salvar a humanidade. Como disse o próprio Jesus:

— Tudo isto aconteceu para que se cumprissem as Escrituras dos profetas.

(Mateus 26,56)

🌟 Para fazer boa figura diante dos outros:  Isto é o que Karl Rahner, eminente teólogo do séc. XX, designa “necessidade inerente à história da salvação”…

🌟 Mais profundamente:  Quem crê em Jesus morto e ressuscitado, coloca apenas uma questão: Como CULPAR alguém pela morte de uma Pessoa que está plenamente viva?

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Antonio Ciseri (1821-1891), Ecce Homo - “Eis o Homem”: palavras de Pilatos quando apresenta Jesus aos habitantes de Jerusalém. Evangelho segundo são João, 19,5 - (óleo sobre tela, entre 1860 e 1880), Museu cantonal de arte de Lugano, Suíça.

E pronto… Karl Rahner volta a dar a Booba uma razão para confiar na humanidade!


4. E ainda uma palavra final…

Numa magnífica crónica em homenagem ao padre Hamel – assassinado em França por terroristas, enquanto celebrava missa, em julho de 2016 –  o escritor François Sureau recorda, num tom majestoso, o iníquo processo de Jesus. O texto começa por evocar o padre Hamel e a missa que celebrava no momento em que foi assassinado:

«Ele não estava apenas a rezar, ele celebrava, pelo mundo inteiro – representado pelo seu pequeno rebanho de cinco pessoas – o sacrifício voluntário de um judeu da Palestina, condenado à morte por um político estrangeiro, instigado pelos sacerdotes e com os aplausos da multidão: o sacrifício de uma vítima totalmente inocente, redimindo todos os crimes do passado e do futuro, privando para sempre o assassinato de qualquer justificação perante Deus.»

François Sureau, «En souvenir de Jacques Hamel»,

La Croix, 30 de Agosto 2016 (artigo disponível aqui)

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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