O campo teórico dos Direitos Humanos (DH) sempre foi e é “um palco controverso” quer pelo desencontro de entendimentos sobre o seu alcance e significado, quer pela multiplicidade de perspetivas que intentam analisá-lo, oscilando estas frequentemente entre, por um lado, a sua rejeição ou a limitação dos seus limites e, por outro, a sua exaltação entusiástica e incondicionada, num intento claro de os tornar absolutos.
Na verdade, os DH sempre foram objeto de compreensões várias, baseadas em fundamentos substancialmente diferentes e, por vezes, até contraditórios.
Sobre a diversidade de olhares, alguns autores consideram os DH como verdades eternas de uma religião laica mundial. Com efeito, despidos das roupagens religiosas que a própria cultura onde nasceram necessariamente tende a veicular, os DH não passam de uma outra religião, mas que invoca outro deus, menos sobrenatural; outro ritual, menos litúrgico; outra bíblia, menos sagrada; outras verdades, menos transcendentes…
Uma outra focalização é a interpretação dos DH como uma ortodoxia moral, que deve orientar e guindar a humanidade para patamares mais elevados de decência. Negar ou criticar, neste sentido, os direitos equivaleria a uma espécie de heresia que alguns apóstatas reivindicariam a favor de uma desregulação moral. Por conseguinte, os DH erguem-se como princípios que revestem os seus seguidores de uma dignidade incomparável, distinguindo-os claramente dos que fazem da sua vida um percurso de mesquinhez, de indecência, de superficialidade, de barbárie.
Noutra linha, os DH são encarados como superstições do mundo moderno, como “excentricidades ocidentais”, resquícios abortados ou aparas da modelagem do homem culto, civilizado, racional, pelo que acreditar nos direitos na atual era dos mercados equivaleria a acreditar em “bruxas e unicórnios”, e que para mais não serviriam a não ser para entreter espíritos ingénuos, eventualmente bem intencionados e aspirantes a uma nova ordem social e paz perpétua.
Outros teóricos preferem ter em consideração o fato de os DH não se posicionarem exatamente do lado do razão e, por isso, porfiam em defendê-los como sendo apenas assuntos do coração ou do sentimento (prendem-se com a compaixão), que facilitam olhar o outro com dores de solidariedade. De certo modo os DH seriam uma utopia light, que nos permitiria viver levemente, solidários com o sofrimento alheio; ou seja, eles motivariam a minha revolta interior contra as opressões, a minha solidariedade contra os injustiçados, a minha comoção perante o sofrimento. Outra variante desta corrente do sentimento é aquela que afirma que a base real dos DH estaria no sentimento partilhado do perigo comum que poderíamos experienciar se eles não existissem. Ou seja, o medo tornar-nos-ia mais solidários, como tornaria também a responsabilidade pelos outros algo diluída, uma vez que não teríamos culpa pela infelicidade ou pela situação aflitiva em que muitos vivem.
Um largo setor de críticos aos Direitos Humanos preferem vê-los como verdadeiras mecanismos para sustentar a presente ordem mundial, uma vez que eles protegem os poderosos e acalmam os subjugados.
Um largo setor de críticos aos DH preferem vê-los como verdadeiras mecanismos para sustentar a presente ordem mundial, uma vez que eles protegem os poderosos e acalmam os subjugados. Neste sentido, os direitos seriam um autêntico cavalo de Tróia ao serviço de interesses imperialistas, neocolonizadores, ocidentais.
Em certo sentido, esta visão leva-nos a uma outra que acentua algo como se fosse uma constatação objetiva: os DH são meras tautologias, ou seja, são direitos dos que já têm direitos, o que aponta para uma certa inutilidade dos mesmos ou para uma mera redundância, em que tudo fica exatamente na mesma, com os direitos do lado dos que, teoricamente, já os possuem e que até poderiam prescindir deles. Já outros autores, mais condescendentes, reafirmam que os DH são meras ilusões, porquanto eles não passam de direitos do homem nu, do homem desprovido de poder para os impor e fazer respeitar. Assim sendo, os direitos são os direitos dos mais fracos que, muitas vezes por culpa própria, não conseguem impor-se, quer por falta de esforço, quer por falta de talento, quer mesmo por falta de ambição.
Mais sintonizados com as tendências atuais estão os pontos de vista daqueles que consideram que os DH não passam de axiomas de uma filosofia idolátrica do homem adorando-se a si mesmo. Ou seja, tal como aconteceu aquando da redação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, em que o contexto que a envolveu apontava para a centralidade do indivíduo, assim também hoje os direitos têm-se colocado do lado do homem autorreferencial, em que a sua primeira virtude é “pensar em si próprio”, é “ser fiel a si mesmo”. Então, nesta liturgia, os DH ajudam ao reforço do auto-enamoramento do eu, incensando-o como primeiro detentor de direitos.
Próximos dos ideais emancipatórios, outros teóricos defendem a ideia de que os DH são uma metanarrativa ou um discurso de emancipação, embora simultaneamente considerem que, por isso mesmo, eles são algo inúteis. Os DH podem, ainda, ser olhados como o referencial comum para um diálogo intercultural, capaz de aproximar as diferenças e de reconhecê-las na sua construção histórica. O diálogo intercultural visaria identificar, nas diferentes culturas, os traços de humanidade que dizem respeito à existência digna da pessoa, independentemente da religião, nação ou outro vínculo.
Finalmente, e do ponto de vista sociológico, os DH são fundamentalmente processos e práticas políticas, sociais e culturais, socialmente reconhecidos de luta pela dignidade humana. Por outras palavras, eles constituem “um conjunto distintivo de práticas sociais ligadas a noções particulares de dignidade humana” (Donnelly, 2003, p. 71).
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.