Uma missão aqui e agora com marcas para sempre

Francisca Onofre esteve no apoio às populações atingidas pelo fogo desde a primeira hora. Uma entrega que começou em Castanheira de Pera, no verão, e se estendeu a outros concelhos. Diz que Deus lhe trocou as voltas e que, após esta experiência, a sua vida nunca mais será igual.

Francisca Onofre esteve no apoio às populações atingidas pelo fogo desde a primeira hora. Uma entrega que começou em Castanheira de Pera, no verão, e se estendeu a outros concelhos. Diz que Deus lhe trocou as voltas e que, após esta experiência, a sua vida nunca mais será igual.

Castanheira de Pera, agosto de 2017: “Vi o fogo ao longe, mas não imaginei a sua força… Assim fui-me deitar, até que acordei com uma vizinha a chamar-me, o fogo tinha chegado com uma força enorme e destruidora, não queria largar a minha casa mas só havia uma coisa a fazer: fugir! Não tive tempo para nada, peguei na chave do carro e fugi.“ – conta de olhos húmidos o Sr. Alcides ao olhar para a sua casa destruída pelo fogo, enquanto uma equipa de voluntários da Missão Aqui e Agora se prepara para limpar os escombros. Fugiu como estava, de pijama… e ficou sem nada. Agora está numa casa provisória até que a sua seja reconstruída.

Oliveira de Frades, novembro de 2017: “Estava aqui”, – diz apontando para uma cadeira numa mesa da cozinha. “Estava cá também o meu primo. E foi quando ouvimos um barulho estranho, fomos à janela e não queríamos acreditar que era provocado pelo fogo que se aproximava a uma velocidade imensa. Ainda tentei ir buscar algumas coisas mas não havia tempo, peguei no computador e saímos, tínhamos de fugir. Esta foi a casa onde me casei, criei os meus filhos e cuidei da minha mulher quando adoeceu”. Enquanto ouvia o Sr. Zeferino a contar a sua história, olhei ao redor. Vivia num solar lindíssimo, que ardeu, restando uma pequena parte da casa. Ficou sem nada. Agora vive numa casa emprestada no centro de Oliveira de Frades.

É difícil explicar a minha vida depois de 15 de junho de 2017.

No início, sabia que não podia ficar parada, tinha de fazer alguma coisa! Não conseguia pensar que havia pessoas a precisar de ajuda e muito trabalho para fazer e eu estava parada a assistir desde o “quentinho do meu mundinho”. Durante dias, vieram-me várias vezes à memória os projetos de voluntariado em que estou envolvida e tantos outros que já havia feito. Na altura da faculdade tive a graça de viver várias experiências de voluntariado, inclusive missões noutros países… e foi com estes pensamentos que vi que estava na hora de ser eu a proporcionar aos universitários uma experiência de missão, no nosso país, e no momento em que Portugal precisava tanto de nós. Assim, juntamente com o Pedro Mendonça (que sentia algo parecido) e com o Centro Universitário Padre António Vieira (CUPAV, em Lisboa), surgiu a Missão Aqui e Agora, para, durante duas semanas no verão, ir ajudar no que fosse necessário e colaborar com a associação Médicos do Mundo que estava a trabalhar em Castanheira de Pera. Quando a mesma acabou, vimos a necessidade de continuar o trabalho iniciado, passando a Missão a ser de continuidade, (Missão Esperança) marcando agora presença em Castanheira dois fins-de-semana por mês.

Quando a Missão Aqui e Agora terminou, em agosto, já eu estava demasiado envolvida… as pessoas em Castanheira de Pera, a paisagem de uma beleza dura, o cheiro a queimado, os braços a doer por dias seguidos a remover escombros, o coração apertado com as histórias que ouvia, tinham-me mudado sem eu perceber. No meio das cinzas, também eu estava a renascer, mesmo sem me aperceber. Deus mostrava-me onde desejava que eu estivesse. Através de uma Missão que tinha preparado para os outros viverem, Deus tinha preparado algo para eu voltar a sentir o que era viver em missão, como Ele quer que eu viva. Assim, depois de uma semana de férias com a família, peguei na mochila e voltei para Castanheira o resto das férias, e quando lá cheguei, estranhamente, foi um chegar a casa! Mais tarde, quando comecei a trabalhar, à sexta-feira pegava na mochila, enchia o carro de voluntários e voltava a Castanheira para dois dias de serviço.

Mas os fogos em 2017 não deram tréguas, e em outubro Portugal voltou a arder. Já estava demasiado envolvida, não tinha como adiar! Por isso, ofereci-me à Cáritas de Coimbra e à Médicos do Mundo para ir em Missão de Emergência para onde precisassem. Pedi dois meses no meu trabalho – que mais tarde resultou em despedimento -, e no dia 21 de outubro (uma semana depois do fogo) cheguei a Santa Comba Dão, acompanhada por mais três elementos da equipa de emergência da Médicos do Mundo, todos voluntários. Apoiámos esse concelho na logística e coordenação do voluntariado: montámos um centro logístico para receber, organizar e armazenar os bens recebidos, e acolhemos um número enorme de voluntários que nos chegavam todos os dias com um desejo imenso de ajudar. As missões de emergência têm pouca duração, assim, após onze dias e depois de formarmos pessoas da comunidade para ficarem nos nossos lugares, saímos. Havia outro concelho a precisar da nossa ajuda: Oliveira de Frades, onde, apesar de os objetivos serem os mesmos, nos envolveram de tal modo nas suas necessidades que acabámos por ficar de 13 de novembro a 21 de dezembro.

Ainda não encontro palavras para descrever o que foi este tempo. A palavra talvez seja gratidão! Por tantas pessoas que me foram confiadas, pelas lições que fui tendo: humildade, alegria, agradecimento, simplicidade, força, esperança; por assistir a tanta solidariedade dos portugueses, nos bens que deram e na vontade em ajudar; mas, principalmente, pelas vidas partilhadas e histórias contadas (de pessoas, das comunidades e de voluntários).

Numa altura em que se fala tanto de refugiados, em que tantas pessoas não sabem se gostam ou não que recebamos em Portugal pessoas refugiadas – que têm de fugir dos seus países para se salvarem -, assistimos, no nosso país, a portugueses que têm de fugir de suas casas, de largar tudo o que tinham para se salvarem. Nestes meses, tenho aprendido o que é perder tudo – ficar sem muita coisa e o que é ficar sem nada – ficar apenas com o que se tinha no corpo na hora de fugir. No meu país, tenho-me sentido perto e unida à quantidade de deslocados que há nos países de onde vêm tantos refugiados.

Deus, que sabe o quanto gosto de ter a minha vida organizada e controlada, de um momento para o outro trocou-me as voltas… arrisquei tudo e não mudava nada! Engraçado que agora trabalho numa instituição (a fazer uma substituição, daqui a seis meses Deus me dirá onde me quer) que acolhe mulheres em situação de vulnerabilidade social. Chegam aqui as que já não têm nada e querem recomeçar, muitas trazem apenas o que têm vestido, nem documentação têm… não têm nada! Durante a semana continuo perto da realidade em que tenho estado desde julho – pessoas sem nada-, e aos fins-de-semana, continuo a partir para Castanheira de Pera onde ainda há imenso trabalho, imensas pessoas para abraçar, ouvir e cuidar.

Deus trocou-me as voltas, e no meio de tanto sofrimento, de tanta destruição, mostrou-me onde sou mais eu, onde sou mais para Ele … qual a minha missão e onde deseja que eu esteja: perto dos que perderam tudo e mais perto ainda dos que ficaram sem nada!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.