Leituras judaica e cristã

Vozes prodigiosas, o Gato de Philippe Geluck, os rabinos, os Padres da Igreja e, para concluir, São João Paulo II

Vozes prodigiosas, o Gato de Philippe Geluck, os rabinos, os Padres da Igreja e, para concluir, São João Paulo II

1. Como mel para a boca

Os Dei Amoris Cantores cantam O servo sofredor, com texto retirado do capítulo 42 do livro de Isaías (Música: Tanguy Dionis du Séjour). A beleza em estado puro…


2. Um texto bíblico

Ao longo dos 7 domingos do tempo pascal, propomos um mergulho nos relatos da Páscoa e em textos que ajudam a compreender este mistério. Hoje, propomo-vos a leitura de um texto do Antigo Testamento, mais precisamente, do livro do profeta Isaías.  

Mas ele foi ferido por causa dos nossos crimes,
esmagado por causa das nossas iniquidades.
O castigo que nos salva caiu sobre ele,
fomos curados pelas suas chagas.

Foi maltratado, mas humilhou-se e não abriu a boca,
como um cordeiro que é levado ao matadouro,
ou como uma ovelha emudecida nas mãos do tosquiador.

Sem defesa, nem justiça, levaram-no à força.
Quem é que se preocupou com o seu destino?
Foi suprimido da terra dos vivos,
mas por causa dos pecados do meu povo é que foi ferido.

Foi-lhe dada sepultura entre os ímpios,
e uma tumba entre os malfeitores,
embora não tenha cometido crime algum,
nem praticado qualquer fraude.

Mas aprouve ao Senhor esmagá-lo com sofrimento,
para que a sua vida fosse um sacrifício de reparação.
Terá uma posteridade duradoura e viverá longos dias,
e o desígnio do Senhor realizar-se-á por meio dele.

Por causa dos trabalhos da sua vida verá a luz.
O meu servo ficará satisfeito com a experiência que teve.
Ele, o justo, justificará a muitos,
porque carregou com o crime deles.

Por isso, ser-lhe-á dada uma multidão como herança,
há-de receber muita gente como despojos,
porque ele próprio entregou a sua vida à morte,
e foi contado entre os pecadores,
tomando sobre si os pecados de muitos,
e sofreu pelos culpados

Isaías 53,5.7-12


3. O esclarecimento

Neste texto esboça-se a figura enigmática de um servo chamado a sofrer, inclusive até à sepultura. No entanto, apesar deste fim, os seus dias serão prolongados, ser-lhe-á dada uma descendência. Quem é, então, este servo de quem Deus fala?

Os rabinos e os Padres da Igreja deram duas respostas diferentes, que não são, contudo, contraditórias.

O tema do servo sofredor em Isaías pouco ou nada inspirou os artistas… Já a eleição de um Povo por Deus não deixou o ilustrador Philippe Geluck indiferente. [Tradução do texto do cartoon: ‘Deus’: E eu decido que o povo eleito será… este aqui! Ovelha: Os belgas! Olha, já viste?]

 

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Philippe Geluck, La Bible selon le Chat (Paris, 2013)

Os rabinos reconhecem no texto a figura do povo judeu

Para os rabinos, o servo descrito por Isaías não é necessariamente uma pessoa individual: é, antes de mais, todo o povo eleito que está ali representado. Eis a sua interpretação do texto: ao atravessar a história, o povo eleito deverá passar pela perseguição, será deixado como morto, mas a sua posteridade será assegurada por Deus.

Para os rabinos, esta profecia é assim simultaneamente:

  • uma releitura do passado do povo eleito que foi deportado para a Babilónia depois da destruição de Jerusalém em 586 a. C.
  • e o anúncio, feito por Deus, das perseguições que povo judeu ainda deve sofrer. Não é, contudo, um anúncio desprovido de esperança pois, apesar das perseguições, subsiste a promessa de uma posteridade.

Com esta leitura, os rabinos exaltam a fidelidade de Deus através das provas. É uma leitura dita corporativa, a distinguir de uma leitura individualizante.

 

Os Padres da Igreja vislumbram a figura de Jesus Cristo

Isaías é um livro bastante importante no Antigo Testamento (e também um dos maiores, com os seus 66 capítulos). Foi escrito muito antes de Jesus Cristo.

Mesmo sendo conscientes da diferença temporal entre a redação do texto e a vida de Jesus, os Padres da Igreja percebem uma impressionante semelhança entre:

  • esta descrição de um servo sofredor que verá os seus dias prolongados depois de uma passagem pelo sepulcro;
  • e o relato do sofrimento de Jesus nos evangelhos: ele é “trespassado” na cruz, deposto no sepulcro e, em seguida, ressuscita.

Eles fazem, então, uma leitura não tanto corporativa, mas individualizante do texto, discernindo no servo sofredor a figura de Jesus Cristo que vai à Paixão.

 

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Andrea Mantegna, Lamentação sobre Cristo morto (c. 1480), Pinacoteca de Brera, Milão, Itália.

4. E ainda uma palavra final…

As duas interpretações tratam da questão do sofrimento. O servo de Deus – seja o povo de Deus, o seu Messias ou um simples crente – não deve esperar uma vida sem percalços. Ele é, contudo, chamado a esperar, apesar das provações.

João Paulo II descreve esta experiência bem melhor que nós, o que não é muito surpreendente, já que passou pelo que o século XX gerou de mais terrível:

  • na sua Polónia Natal, o terror nazi, seguido pelo veneno soviético com as suas muitas perseguições;
  • em Roma, uma tentativa de assassinato com uma arma de fogo e bastantes operações cirúrgicas…

Assim, é a partir de um íntimo conhecimento do sofrimento na carne, que ele nos dirigiu estas palavras:

“Poder-se-ia dizer que o sofrimento, presente no nosso mundo humano sob tantas formas diversas, também aí está presente para desencadear no homem o amor, precisamente esse dom desinteressado do próprio « eu » em favor dos outros homens, dos homens que sofrem. O mundo do sofrimento humano almeja sem cessar, por assim dizer, outro mundo diverso: o mundo do amor humano; e aquele amor desinteressado que vem do coração e transparece nas acções da pessoa que sofre; amor que esta deve, aliás, em certo sentido ao sofrimento.”

João Paulo II, Salvifici Doloris, 1984, n. 29.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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