Leão XIV não é Francisco – Mas dele vem - Ponto SJ

Leão XIV não é Francisco – Mas dele vem

Tudo indica que Leão XIV deseja levar adiante o caminho de uma Igreja missionária, sinodal, atenta aos últimos e aberta à escuta, cooperando com a graça na fidelidade ao legado de Francisco e à Tradição viva da Igreja.

Tudo indica que Leão XIV deseja levar adiante o caminho de uma Igreja missionária, sinodal, atenta aos últimos e aberta à escuta, cooperando com a graça na fidelidade ao legado de Francisco e à Tradição viva da Igreja.

Foi com enorme surpresa que o mundo recebeu a notícia da eleição de Leão XIV. Robert Francis Prevost não figurava nas listas de papáveis mais amplamente difundidas pelos media. Também a rapidez da eleição foi desconcertante: quando muitos antecipavam um conclave prolongado, devido a supostas divisões internas com a consequente dificuldade em encontrar um nome capaz de unir as várias sensibilidades do colégio cardinalício, os fumos brancos elevaram-se ao céu desde a chaminé logo na tarde do segundo dia. Bastaram quatro escrutínios para o eleger. E eis-nos agora com um novo Papa: um norte-americano com cidadania peruana; cardeal apenas desde 30 de setembro de 2023.

Confesso que rapidamente senti uma diferença de estilo em relação a Francisco. Bastou vê-lo surgir na varanda da Basílica de São Pedro, paramentado com solenes hábitos papais, para que eu me lembrasse sobretudo das figuras de Bento XVI e de João Paulo II. Mas creio que não se trata de uma rutura com Francisco; talvez, sim, de um novo estilo, o que é normal.

Leão XIV não é – nem tem de ser – Francisco II. E quem, há poucos dias, chorou a morte de Francisco, escuta agora com alegria as palavras com que Leão XIV se apresenta ao mundo, numa clara continuidade com os seus predecessores. Para além de acolher o legado de Francisco, deixou ecos que nos recordam os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI. Por um lado, o seu apelo “Não tenham medo! Aceitem o convite de Cristo!” faz ecoar o célebre “Não tenhais medo! Abri, ou melhor, escancarai as portas a Cristo” que João Paulo II pronunciou naquela mesma varanda da Basílica de São Pedro. Por outro lado, na sua primeira homilia, citou Santo Inácio de Antioqua, expressando o desejo de “desaparecer para que Cristo permaneça”, o que fez recordar a afirmação com que Bento XVI se apresentou ao mundo: “Sou um humilde operário da vinha do Senhor”. Foi também na sua primeira missa enquanto Papa que ele mencionou o perigo do “ateísmo prático”, uma ameaça que paira sob os cristãos de hoje. Claramente senti nestas palavras um tom próximo ao dos discursos de João Paulo II e, sobretudo, de Bento XVI: mais preocupado em apelar à conversão dos que estão dentro da Igreja do que em confirmar um eventual cristianismo anónimo de quem vive assumidamente fora dela.

Leão XIV não é – nem tem de ser – Francisco II. E quem, há poucos dias, chorou a morte de Francisco, escuta agora com alegria as palavras com que Leão XIV se apresenta ao mundo, numa clara continuidade com os seus predecessores. Para além de acolher o legado de Francisco, deixou ecos que nos recordam os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI.

No entanto, sem copiar Francisco, Leão XIV acolhe o legado de quem, nem há dois anos, o elevou a cardeal. Com efeito, Prevost parece assumir uma clara continuidade com o pontificado de Francisco em vários aspetos, tendo sobretudo em conta o discurso proferido aos cardeais no passado 10 de maio. Retomando os pontos essenciais da Evangelii Gaudium (2013), a primeira Exortação Apostólica do seu predecessor, Leão XIV destacou: “o retorno ao primado de Cristo no anúncio; a conversão missionária de toda a comunidade cristã; o crescimento na colegialidade e na sinodalidade; a atenção ao sensus fidei, especialmente em suas formas mais próprias e inclusivas, como a piedade popular; o cuidado amoroso pelos últimos e pelos descartados; o diálogo corajoso e confiante com o mundo contemporâneo em suas diversas componentes e realidades”.

Ao ler a Evangelii Gaudium, a partir destes “pontos” que considera serem “fundamentais”, Leão XIV acaba por nos propor uma certa visão do pontificado de Francisco. Em primeiro lugar, destaca-se o apelo ad intra, para que nós católicos anunciemos Cristo e o seu Evangelho. Esse apelo não receia usar a palavra “conversão”, entendida aqui como um convite constante à transformação missionária da Igreja. Com efeito, a missão não é uma tarefa acessória, mas a própria forma da vida cristã, que implica sair de si para se centrar no essencial – Cristo vivo que continua a falar e a agir através do seu povo. Na esteira do Concílio e acolhendo o legado de Francisco, esta leitura da Evangelii Gaudium, que Leão XIV nos propõe, revela um Papa que não se deixará influenciar pelas fortes pressões que querem que a Igreja mude, à força, as suas estruturas e a doutrina dos sacramentos. De facto, o que ele disse, enquanto cardeal, sobre a ordenação de mulheres ao diaconado está perfeitamente alinhado com a posição de Francisco: “Algo que também precisa ser dito é que ordenar mulheres – e algumas mulheres disseram isto de forma bastante interessante – ‘clericalizar mulheres’ não resolve necessariamente um problema, pode criar um novo problema”.

Em segundo lugar, Leão XIV parece não querer separar a sinodalidade – sem dúvida um dos grandes legados de Francisco – da colegialidade, tão promovida pelo Vaticano II. Desse modo, acaba por incentivar a escuta e o diálogo com todos, sem por isso romper com as estruturas fundamentais da Igreja; nomeadamente com as formas de governo ligadas ao múnus dos bispos em comunhão com o sucessor de Pedro. É neste horizonte que se compreende também a atenção dada ao sensus fidei, particularmente nas expressões da piedade popular. E aqui também se encontra uma proximidade grande com o pontificado de Francisco. Talvez isto o leva a tentar integrar, na vida da Igreja, diferentes espiritualidades ou sensibilidades litúrgicas. Mas é claro que a escuta própria ao processo sinodal – que há de ser, acima de tudo, escuta do Espírito Santo – implique uma abertura ao diálogo, “corajoso” – tal como Leão XIV, na esteira de Francisco,
sublinha –, com todos, todos, todos, habitando assim as questões mais prementes do mundo contemporâneo.

Por fim – e aqui também podemos entrever algo da escolha do nome Leão –, continua a reforçar a opção preferencial pelos mais pobres, na procura de uma maior proximidade com os excluídos, os migrantes, os marginalizados deste mundo. No passado domingo, dia 11 de maio, no seu primeiro Regina Caeli rezado com os fiéis na Praça de São Pedro, apelou à paz na Ucrânia e em Gaza, sem esquecer de suplicar pela libertação de todos os reféns detidos pelo Hamas. Está, portanto, a acompanhar os dramas deste mundo, a partir da lógica próprio à ordo amoris, uma ordem do amor que, começando por quem está mais próximo, como os familiares, se alarga a todos, recusando excluir uns em nome de outros. Talvez o Papa Leão XIV não recorra a declarações tão incisivas como algumas das que marcaram o pontificado de Francisco. Mas não parece haver dúvida de que partilha das mesmas preocupações essenciais. É provável que continue a defender com firmeza a vida humana, ainda que sem recorrer a expressões tão contundentes como as que Francisco utilizou na Bélgica, ao qualificar os médicos que praticam o aborto como “sicários”. A sua opção clara e determinada pelos mais pobres e marginalizados continuará certamente a promover a dignidade da vida humana em todas as suas fases, desde a conceção até à morte natural. Será também significativo observar de que modo o primeiro Papa norte-americano enfrentará a questão da pena de morte, ainda em vigor em diversos países, inclusive no seu de origem – e ele já se pronunciou veemente contra a pena de morte enquanto cardeal e em clara continuidade com o magistério dos papas que o precederam.

Para além das suas primeiras palavras, o nome que escolheu diz muito. Ao apresentar-se ao mundo como Leão XIV, o novo Papa propõe-nos uma hermenêutica da continuidade da Tradição viva da Igreja, especialmente no complexo contexto pós-Vaticano II. A escolha de um nome que remete a um Papa pré-conciliar pode revelar a intenção de querer superar leituras marcadas por ruturas ou saltos radicais, preferindo, em vez disso, uma visão de unidade orgânica e desenvolvimento fiel da Tradição. Talvez seja precisamente aqui que Leão XIV pretenda construir pontes. É, aliás, significativo que não tenha recorrido, como Bento XVI, à figura de um santo da antiguidade cristã – no caso, o santo de Núrsia –, mas sim à memória de um Papa ainda não canonizado, Leão XIII, cuja ação foi profundamente marcada pelo diálogo com a modernidade.

Esta escolha desafia leituras que fragmentam a história da Igreja em blocos inconciliáveis e convida-nos a reconhecer, com humildade e esperança, os fios de continuidade que ligam os diversos tempos da sua vida. O lema gravado no seu brasão, que ele escolhera já enquanto cardeal, também mostra como Leão XIV procura a unidade da Igreja, entre as várias sensibilidades que nela hoje se vivem e entre os seus vários tempos. In Illo uno unum refere-se a um sermão de Santo Agostinho: “embora nós cristãos sejamos muitos, no único Cristo somos um”. Com efeito, quando teve a ocasião, em 2023, de explicar o sentido do seu lema episcopal, o então cardeal Prevost disse: “como agostiniano, para mim, promover a unidade e a comunhão é fundamental. Santo Agostinho fala muito sobre a unidade na Igreja e sobre a necessidade de vivê-la”. Fica, portanto, claro que Leão XIV procurará, provavelmente, lançar pontes também dentro da própria Igreja, para que, num mundo profundamente polarizado do ponto de vista ideológico e político, esta possa apresentar-se como um sinal profético de reconciliação e de paz.

Fica, portanto, claro que Leão XIV procurará, provavelmente, lançar pontes também dentro da própria Igreja, para que, num mundo profundamente polarizado do ponto de vista ideológico e político, esta possa apresentar-se como um sinal profético de reconciliação e de paz.

Muito embora ele seja agostiniano, Prevost deixou-se inspirar por Leão XIII cujo pontificado ficou marcado pela promoção da filosofia cristã em chave tomista e em diálogo lúcido com a modernidade. Mas o mais importante será mesmo a encíclica Rerum Novarum, de 1891, que marca o início da doutrina social da Igreja nos tempos modernos. Se, naquela época, as “coisas novas” eram os sindicatos e os problemas sociais da era industrial, hoje essas novidades têm outros rostos: a crise migratória global, as crises ecológicas e ambientais, os desafios ligados à inteligência artificial, o impacto ético e antropológico das tecnologias digitais. Creio que também podemos esperar deste pontificado uma atenção clara e determinada a estas questões atuais, onde se joga, de novas formas, a dignidade da pessoa humana.

Talvez o que mais profundamente ligue Leão XIII a Santo Agostinho seja, afinal, a virtude cristã da humildade. Enquanto o santo bispo de Hipona afirmava que a humildade era a virtude fundamental do cristão – o verdadeiro alicerce de toda a vida espiritual que os cismáticos não tinham, dividindo a Igreja com o seu orgulho –, Leão XIII, nascido Gioacchino Pecci, também é conhecido pelo breve Tratado que publicou, ainda como arcebispo de Perugia, com o título de: A Prática da Humildade. Esta obra é importante para compreender o seu pontificado. De facto, depois do longo pontificado de Pio IX, Leão XIII inaugurou um novo estilo no modo de a Igreja se posicionar perante o mundo moderno. Menos reativo e mais confiante na razão, ele conseguiu dialogar com um mundo, muitas vezes, hostil para com a Igreja. E isso só foi possível a partir da vivência dessa virtude que é a humilde cristã.

Esta atitude de escuta e de discernimento humilde – capaz de acolher uma Tradição que ultrapassa as construções meramente humanas, ao mesmo tempo que busca a comunhão com todos, todos, todos – poderá muito bem ser uma das chaves de leitura do novo pontificado que agora se inicia. Com efeito, a partir dos seus primeiros gestos e palavras, tudo indica que Leão XIV deseja levar adiante o caminho de uma Igreja missionária, sinodal, atenta aos últimos e aberta à escuta, cooperando com a graça na fidelidade ao legado de Francisco e à Tradição viva da Igreja.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.