Joelho no chão

Um gesto de protesto de uma estrela de futebol americano, Jesus reconhecido como Deus, a doce ironia da literatura e um sermão do século XII que no põe no lugar.

Um gesto de protesto de uma estrela de futebol americano, Jesus reconhecido como Deus, a doce ironia da literatura e um sermão do século XII que no põe no lugar.

1. Como mel para a boca

 

Verão 2016. O gesto chocou o país do Tio Sam: em pleno hino nacional, Colin Kaepernick, na altura quarterback dos 49ers de São Francisco ,  colocou um joelho no chão em sinal de protesto contra a violência policial e a discriminação racial que se multiplicam pelo país. Nada que ver com um gesto de adoração… porque, na Bíblia, este gesto tem um sentido totalmente diferente…


2. Texto Bíblico 

Rebaixou-se a si mesmo,
tornando-se obediente até à morte
e morte de cruz.
Por isso mesmo é que Deus o elevou acima de tudo
e lhe concedeu o nome
que está acima de todo o nome,
para que, ao nome de Jesus
se dobrem todos os joelhos
os dos seres que estão no céu, 
na terra e debaixo da terra;
e toda a língua proclame:
«Jesus Cristo é o Senhor!»,
para glória de Deus Pai.
(Fl 2, 8–11)


3. O Esclarecimento

O nosso amigo François Friche oferece-nos hoje uma pequena reflexão sobre o gesto de levar um joelho ao chão.

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Nicolas Poussin (1594-1665), A adoração dos pastores (1633-1634, pintura a óleo), The National Gallery, Londres.

 

| Um texto bíblico para NÃO ser lido na diagonal |

Vindos adorar o recém-nascido, os pastores colocam espontaneamente um joelho no chão, como neste quadro de Poussin (admirem a decomposição do movimento de inclinação nos quatro personagens: um verdadeiro desenho animado!). É evidente que este gesto é a forma mais prática de ver uma criança de perto… mas é sobretudo o sinal visível de uma grande submissão e de um profundo respeito, como deixa entender o texto de hoje, da Epístola aos Filipenses.

Nesta Epístola Paulo revela uma sequência vertical:

A exaltação de Cristo é a resposta de Deus…

… à humilhação divina (Deus feito homem, morto na cruz), que conduz, por sua vez…

… à humildade humana, expressada no “joelho fletido” de toda a humanidade.

| Genuflexão e divindade |

Este dobrar de joelhos seria, à primeira vista, um gesto desprovido de sentido! Com efeito, o único ser digno de adoração é Deus. Na Bíblia (Esd 9,5, Sl 95,6, Is 45,23), esse movimento de genuflexão é-Lhe reservado exclusivamente. Por isso, no texto da carta aos Filipenses, Paulo atribui a Jesus o que é próprio de Deus: ajoelhar-se diante de Cristo é, acima de tudo, reconhecer a sua divindade.

 

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Vicente do Rego Monteiro (1899-1970), A adoração dos Reis Magos (1925, óleo sobre tela), Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro.

 

| Um gesto e uma fórmula constantemente retomados na Literatura |

1. Na Idade Média, os personagens da corte dobram constantemente o joelho diante da dama amada — como perante o seu soberano.

2. Em The Extravagant Shepherd (1627), o romancista Charles Sorel faz troça desse tipo de devoção humana: o seu pastor apaixonado coloca «um joelho no chão» quando vê a sua amada ou ouve o seu nome. Diante da amante tomada por deusa, o gesto é extravagante, como explica o autor nas «observações» do final do livro: «É atribuir ao poder de uma beleza mortal o que só se deve obter pela omnipotência de Deus.»

3. A mesma ironia pode encontrar-se no romance cómico (1651) de Paul Scarron: há um tenente da polícia chamado La Rappinière, «diante de cujo nome todos os joelhos se dobram


4. Uma palavra final 

Respeito, portanto:

«Ah! Se tivesses um encontro com um rei ou um grande magistrado para lhe fazer um pedido importante, não lho apresentarias certamente entre bocejos nem com excessiva desenvoltura; pelo contrário, manifestarias uma respeitosa reverência na sua presença e apresentarias a tua súplica com o rosto humildemente voltado para a terra. […] Se tal é a humildade diante de um homem que “é pó e ao pó há de voltar” (Gn 3, 19), qual não deve ser a tua atitude na presença daquele perante quem “se dobram todos os joelhos, os dos seres que estão no céu, na terra e debaixo da terra” (Fil 2,10)»

Julien de Vézelay (1085-1165), Sermões 27, Sources Chrétiennes 193, 643

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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