JMJ – O caminho do regresso

Para que estes dias não sejam “pão e circo” eclesial nem um intervalo no outono de uma igreja cansada, é importante que cada peregrino, ao voltar à sua igreja local, esteja disposto a “sujar as mãos”, a ser um cristão “todo-o-terreno”.

Para que estes dias não sejam “pão e circo” eclesial nem um intervalo no outono de uma igreja cansada, é importante que cada peregrino, ao voltar à sua igreja local, esteja disposto a “sujar as mãos”, a ser um cristão “todo-o-terreno”.

A JMJ terminou. Foi transbordante e incomensurável! A cidade voltou à quietude dos seus dias de agosto e os peregrinos regressaram cansados e reconfigurados aos seus múltiplos destinos.  A experiência de Lisboa fez-nos ver que um jovem católico peregrino não é um viajante sem rumo. É despojado, descomplexado, agradecido. Sabe chegar, sabe estar, sabe receber, sabe partir. Exemplar esta verdadeira onda de jovens peregrinos que se mostrou em Portugal como Igreja viva, divertida, profunda, urbana, crente e expectante.

Regressados a normalidade dos seus dias, os jovens JMJ procuram agora “guardar no coração” os frutos da “pressa” que os fez vir até nós, não para colecionar mais uma experiência de fé, como quem coleciona concertos de verão ou finais de futebol, mas para viver e partilhar uma pertença espiritual. Chegará o tempo favorável e o modo adequado para irradiar os efeitos transformadores deste encontro com Jesus e com uma Igreja de cara lavada e apetecível. Entretanto,  o tempo é de aterragem e consolidação.

Acredito que, nos últimos dias, em todo o mundo ouviram-se histórias de Lisboa. Milhões de pessoas seguiram os passos da JMJ e todos os que aqui estiveram devem ter contagiado amigos e familiares com tudo aquilo que não podem calar nem esconder. A JMJ 2023 já não é só de Lisboa e dos portugueses, irradiou-se pelo mundo inteiro, por milhares e milhares de casas,  igrejas, movimentos, grupos e paróquias, inundou, obviamente, os palcos de todas as redes sociais.  Foram muitos os que, ao longo da última semana, participantes e espectadores, viram o brilho sincero de tantos olhares, a força de uma fé renovada, a esperança de saber que não estão sozinhos na teimosia de viverem a vida, os estudos, os desejos, os amores, os sonhos, a partir de Jesus, num tempo e em tantos lugares onde são tantas vezes discriminados ou até mesmo eliminados por causa da sua fé.

Viveram-se muitas jornadas dentro da Jornada, segundo as proveniências, as expectativas, as referências teológicas, e espirituais. Como podemos resumir, para além do programa oficial e da presença santificadora e imponente do Papa Francisco, a oferta de mais de 600 atividades de formação, de oração, de encontro  ou de missão? As emoções fortes, os cansaços, as surpresas e aventuras, as selfies, os milhões de mensagens, os comentários nas redes sociais, a vontade espontânea de se relacionarem, as bandeiras, as t-shirts de mil cores, tudo foi convergindo para a construção de um mar de fraternidade onde, “milagre dos milagres”, os olhares puros só viam irmãos e não rivais ou adversários, por mais diferentes que fossem. O mesmo se diga dos mais de 10.000 sacerdotes presentes. Vimos tudo e de tudo: de batina, de calções, com ou sem clergyman, de kilt irlandês, de barrete, de terço ao pescoço, de óculos de sol. Mais plural, a JMJ não podia ter sido. Os pouquíssimos, quase nenhuns, que se entrincheiraram nas suas objeções, blindaram-se nas suas ilhas; no fundo nem estiveram cá, nem deixaram que ninguém entrasse nos seus territórios mentais. “Jovens ricos”, “bélicos”, a jogar à defesa, com medo de serem encontrados “em flagrante” por Jesus.

O Papa Francisco foi genuíno e arrebatador. Forte com os fortes e frágil com os frágeis. É muito bonito ver um Papa feliz a aterrar nas realidades juvenis! Bebeu das suas autenticidades, mostrou-lhes que conhece muito bem as suas ansiedades e feridas, as pressas, os seus amores “fast food”,  a precaridade dos seus futuros “low cost”, as ameaças e as suas esperanças. O Papa sabe que a juventude é muito mais do que um intervalo de aventuras entre a infância e a vida adulta e por isso, não hesitou em recomendar-lhes a audácia de um protagonismo luminoso, adverso “ao sucesso garantido” e aos malabarismos do poder e do orgulho.  Mostrou-lhes o caminho da verdade,  dos alegres e humildes, dos sem medo, dos “mestres- aprendizes” que não vivem para repetir passados, mas para inventar futuros e ensaiar, ensaiar a santidade de vida nos seus próprios contextos, como o fizeram os jovens bailarinos do “Ensemble 23”, até atingir a qualidade desejada.

Creio que a grande maioria dos jovens católicos que estiveram na JMJ conseguem distinguir modelos de uma santidade “imitada”, como modelo único, de uma verdadeira santidade original, fiel, mas não fanática, tradicional, mas não tradicionalista, contemporânea, mas não mundanizada; uma  santidade que não se improvisa nem se compra em nenhuma “lojinha” de artigos religiosos. Sai da alma, exige rigor,  disciplina, sacrifício, supera-se a si própria, inspira-se não no medo do inferno ou na culpa, mas na sublime redenção de Deus que se faz graça neste tempo de contrastes que hoje habitamos e numa JMJ que evidencia a certeza que nenhum jovem é um “esquecido” de Deus: não está só, não ficou abandonado e, na sua liberdade, pode encontra-se com um Deus que o faz viver, renascer, progredir, dançar sem nunca lhe pisar os pés.

Correu tudo muito bem, mesmo muito bem: tudo o que estava pensado e planificado até ao ínfimo pormenor por um “exército” de líderes e voluntários que se esgotaram, pelo bem de cada um de nós, por amor à Igreja e pelo bom nome de Portugal e, igualmente bem,  tudo aquilo que exigiu uma resposta mais “improvisada” que nenhum guião acharia razoável ter previsto. Senti à minha volta, eu que fui um simples peregrino entre milhares,  um espírito concreto de interajuda e uma infinita gratidão pelo tratamento quase vip com que todos fomos, em geral, mimados, que nos permitiu sentir a Igreja de Lisboa como casa própria.

Tantos se perguntavam, no final da missa de domingo, naquela missa que um certo Portugal não acreditava que pudesse alguma vez acontecer, a quem poderiam e deveriam agradecer. Ao Sr. D. Américo, aos órgãos sociais da Fundação JMJ, ao Duarte Ricciardi,  à Matilde Trocado, à Joana Carneiro, ao Peu, à “Inha”, ao Seminário dos Olivais, à Paróquia de Monte Abraão, ao Cupav, ao P. João Paulo Vaz, ao Ensemble 23 ? Ninguém pode ficar de fora deste laço de gratidão: os políticos, os patrocinadores, os arquitetos e engenheiros, os trabalhadores da construção civil, os arrumadores do lixo, os seguranças, os médicos e enfermeiros, os párocos e catequistas, as ordens religiosas e movimentos, as famílias, etc., etc. Foi muito bonito ver o abraço de tantos peregrinos aos voluntários, aos polícias, às famílias de acolhimento. E quantos “protagonistas” não decidiram ficar escondidos e deixar os seus contributos sem assinatura? Sem surfarem as ”ondas dos 30 minutos” da fama preferiram esconder-se na logística dos vários secretariados, nas músicas, nos textos, nas coreografias, nas pinturas, nos inúmeros serviços, à imagem de Jesus “escondido”, no pão comungado naquela eucaristia matinal. Uma enorme lição esta dos protagonistas escondidos no brilho dos bastidores da JMJ de Lisboa.

Lisboa 2023 foi terra da promissão para muitos jovens, bálsamo para uma geração minimizada pela pandemia e para uma Igreja que sofre a culpa de não ter protegido as vítimas da patologia de alguns dos seus sacerdotes; foi porto de abrigo para muitos sonhos e inspirações e cais de esperança para muitas comunidades e movimentos que precisam de um sopro de vida que os liberte da ameaça da morte; foi  lugar de encontro para todos os jovens que não desistem de procurar e de perguntar, de dar e receber, de recomeçar a partir de Deus.

Um oceano de jovens invadiu esta cidade em busca de autenticidade, alérgicos à falsidade e às palavras vazias; um oceano “pacífico” entrou pelo nosso Atlântico,  redesenhou os confins de uma igreja chamada a ser sem portas (tal como a Capelinha das Aparições), uma Igreja onde ninguém sobra, onde ninguém está a mais, onde há espaço para todos, onde não há condenados sem crime. Um “todos” bíblico, do qual nenhum grupo se poderá apropriar ou afunilar na parcialidade da sua ideologia ou ética.

Creio que o “todos” do Papa Francisco é profundamente eucarístico e sacrificial, em sintonia com a entrega que Jesus faz ao partir o pão: Tomai todos e comei …

Deixando a análise dos discursos e dos gestos do Papa para outra ocasião, até porque alguns, talvez os “melhores” foram feitos fora do contexto da Jornada, detenho-me em seis aspetos significativos da identidade desta JMJ e das sementes que lançadas à terra, no tempo e modo certo, crescerão e poderão dar muito fruto num tempo que continuará a ser problemático e desafiador.

1. A JMJ é sempre um Pentecostes

A JMJ foi e espera-se que continue a ser um verdadeiro Pentecostes na vida da Igreja. Assim tem sido em cada jornada mundial e foi também, obviamente, na JMJ de Lisboa. O que vimos,  ouvimos e vivemos extravasa a melhor das reportagens, o mais fino comentário digital ou transmissão televisiva. O movimento que o Espírito gerou em cada peregrino é, no mínimo, paradoxalmente, tão íntimo e tão vasto como as “ondas do mar da Nazaré”.  Os jovens de Portugal e de quase todos os países do mundo aderiram plenamente, de forma simples e contagiante, à proposta espiritual e cultural da JMJ e em particular às palavras do Papa. Foi impressionante o grau de recetividade e adesão. O Espírito Santo fez o seu trabalho e deixou marca: abriu, interpelou, confirmou e santificou.

A JMJ será sempre a proposta que a Igreja faz a cada geração de jovens para um encontro pessoal, profundo e missionário com Jesus. O resto é secundário, por mais convergente e necessário que seja, para que estruturalmente a JMJ possa acontecer. A alegria do encontro e a surpresa de sermos tantos, fez de lisboa uma Babilónia de línguas, lugares e culturas que unidas num rio de expectativas comuns encontrou o seu lugar no coração da Igreja que, neste evento, por graça e pelo esforço de uns tantos, se mostrou límpida, informal, genuína, descomplicada, despoluída, agregadora, quase pura, como não acreditávamos que existisse. Uma Igreja que se mostrou viva, bela e santa, a transbordar de pecadores bafejados pela misericórdia. Talvez, no palco mais longe dos holofotes mediáticos, na “cidade da alegria” perto dos jardins de Belém, naqueles confessionários a céu aberto, em contraste com as prisões onde foram feitos,  se tenha dado a maior “onda”  de graças. Sabe Deus!

2. Nenhuma JMJ se realizou sem polémicas (económicas, políticas e até religiosas)

Polémicas à parte, que é bom serem sempre esclarecidas (algumas serão justas, mas a maioria foram ruido, inveja, distância afetiva da Igreja e preconceitos ideológicos contra o religioso) a JMJ, por ser uma iniciativa tão ampla e grandiosa, obrigou a uma logística gigante e a uma planificação atempada capaz de agregar os mais diversíssimos fatores que a possibilitam: dos espaços celebrativos aos transportes, da alimentação à segurança e à saúde,  dos kits de identificação aos lugares e famílias de acolhimento.

Nem o tempo foi pouco para a preparar nem faltaram recursos disponíveis para erguer esta grande “empresa”, independentemente de todos os eventuais retornos económicos, culturais e espirituais que muitos querem ver numericamente quantificados o mais depressa possível. Depois dos entusiasmos originais não foi fácil provar a sua pertinência e justificar os investimentos que iam sendo feitos. A JMJ foi feita debaixo do fogo da suspeita, tida por alguns, como obra faraónica e injustificada, face às necessidades reais (e verdadeiras) de um país pequeno e pobre.

Hoje, encontramos um país “rendido” ao seu indesmentível “sucesso”.  Ficaram espaços renovados junto ao Tejo, é impagável o marketing gratuito de milhares e milhares de peregrinos visitantes, Lisboa esteve durante uma semana no foco mediático internacional.

Nos primeiros dias da JMJ, a defesa de uma laicidade restritiva e ironicamente promotora de ateísmos,  juntamente com a sombra terrível dos abusos sexuais que tiveram uma primeira resposta muito aquém do justo (assunto dramático, que pela profunda dor das vítimas, nunca poderá ser instrumentalizado por ninguém), foram os argumentos mais usados e abusados para desviar ou diminuir a evidência de uma realidade que não parava de crescer e já não era possível esconder: as ruas de Lisboa estavam cheias de milhares e milhares de jovens: católicos, felizes, civilizados, crentes, urbanos, em busca de Deus, de um mundo renovado e de uma Igreja que sofre com quem sofre; a juventude de um Papa sinodal, “vítima” do Espírito Santo, um Papa que não desiste de reconfigurar a Igreja e humanizar o mundo. Uma alegria contagiante, irritante, para todos os que em Portugal tentaram castrar culturalmente a fé ou julgavam impossível coexistir em jovens católicos, que tanto bebem um copo no Bairro Alto como se juntam nas igrejas para celebrar a fé.

3. A JMJ inclui grandes investimentos institucionais e poupanças e sacrifícios pessoais

A JMJ realiza-se sempre em dois tabuleiros “económicos”, distintos, mas complementares. Por um lado, há quase sempre, como houve na JMJ de Lisboa, um investimento económico e cultural brutal, comparticipado pelo Estado e pela sociedade civil, em espaços renovados ou transformados (como foi o caso do parque Tejo, junto à ponte Vasco da Gama) que depois da Jornada beneficiam o bem estar das populações locais; por outro lado, em contraste com todos os milhões investidos, há o precioso “mealheiro” das poupanças pessoais, que cada peregrino, com sacrifício e amor, conseguiu juntar para se poder inscrever e viajar (mesmo os voluntários tinham que pagar a inscrição) e assim viver uma experiência mundial de fé e de fraternidade. Cada peregrino sabe que, embora a JMJ não fique barata, o seu preço não se pode comparar ao “valor” daquilo que cada um vive e ganha gratuitamente.

Seria interessante conhecer o que tantos grupos de jovens católicos tiveram que fazer, com a ajuda das suas famílias, amigos, movimentos e paróquias, para tornar possível a sua participação no “sonho” da JMJ.

4. A JMJ é sempre um paradoxo entre a força da multidão e a experiência mais íntima da fé

Como sabemos, o número de participantes ultrapassou o improvável. A imagem de uma multidão de jovens crentes e felizes, reunidos junto ao rio Tejo e à ponte Vasco da Gama  comoveram o mundo com a sua beleza e grandeza.

Até hoje, que eu saiba, em nenhuma vigília da JMJ dormiram tantos peregrinos nos corredores ou nas estradas adjacentes. Houve jovens, ligados aos campos de férias da Companhia em Portugal, que dormiram em cima dos contentores de lixo, outros em muitas estradas adjacentes, inclusive na IC2. Ninguém sabia quantos se iriam inscrever ou quantos peregrinos de “última hora” se juntariam às celebrações finais. Sabemos que dos 800 mil jovens da Via Sacra passamos para um milhão e meio na Vigília e Missa Final.  As contas são difíceis de fazer quando se ultrapassa, e parece que em muitos, muitos mesmo, o milhão de peregrinos.

Se cada jovem é, por si mesmo, considerado na Igreja, um “sinal teológico”, na JMJ, a multidão incontável de jovens tem a força de se ter transformado num “sinal escatológico” de uma Igreja que se levanta, que caminha, em busca do terno e do eterno, do “já” e do “ainda não”, da verdade que liberta e da liberdade que redime.

Numerosos, ruidosos e quando necessário, absolutamente silenciosos, vestidos de festa, com t-shirts de mil símbolos e cores, portadores de bandeiras e estandartes, inseridos em paróquias e movimentos, por conta própria, em família ou com amigos, completamente digitalizados, abertos à novidade é a diferença, preocupados com a degradação ecológica e a guerra, capazes de dormir no chão, ao relento, a alimentarem-se pouco, os jovens peregrinos na JMJ de Lisboa vibraram com o facto de ter encontrado outros ”viajantes” que procuram a Deus com a mesma força e pertencem, sem vergonha, a uma Igreja sinodal,  deixando para outros fóruns, as teorias sobre o que isso pode significar ou implicar.

Da alegria transbordante experimentada em tantas catequeses, concertos, conversas, teatros, nas igrejas, praças e ruas da cidade, surgiu naturalmente em tantos, a necessidade de um recato silencioso para a possibilidade de um processo de adesão mais íntimo, escondido, calado, capaz de descer às raízes da alma inquieta e aí procurar a paz profunda, o espanto da oração contemplativa ou o louvor gratuito de Deus. Tantas conversas e discernimentos em aberto, tantas interrogações e perguntas… Tantos entusiasmos e entregas à espera da confirmação de Deus.

Impressionou-me ver como a sabedoria e a pedagogia da Igreja que promove o “caminho específico de cada um“ não exclui a vivência e a força agregadora da comunidade. Por ser uma experiência corporativa de batizados, por ser povo de Deus, a Igreja não permite que cada um construa para si mesmo um projeto particular de salvação. A Igreja, que vibra de alegria quando “dois ou três“ se reúnem em seu nome,  favorece através do acompanhamento personalizado, do discernimento e da escuta, as condições evangélicas para que, serenamente cada um se descubra a si mesmo como discípulo de Jesus e realize a sua vocação como missão eclesial. A JMJ de Lisboa, tecida na harmonia entre o “todos” e o “cada um”, entre o “global” e o “particular” tornou-se neste aspeto, um modelo exemplar e matriz inspiradora de muitas das nossas futuras atividades pastorais.

Talvez, sem forçar, dentro da inesquecível frase do Papa Francisco “todos, todos, todos” possamos incluir, nas suas entrelinhas, o paradigma “juntos, juntos, juntos”.

Para mim, a grande “páscoa” que está por fazer na Igreja em Portugal e que esta jornada, nalguns aspetos, começou a promover, será a passagem de uma “pastoral juvenil de animação” a uma “pastoral juvenil de missão”.

5. A JMJ conta sempre com um peregrino especial: o Papa

O Papa Francisco apresentou-se como o “mais jovem” de todos os peregrinos e a alma da Jornada. O Papa adorou estar em Lisboa, fez-se peregrino da escuta e tornou-se na garantia dos projetos dos jovens que não se resignam, que vencem medos.

Cada palavra, cada gesto, cada passo, foi uma constante surpresa e um sinal de comunhão. Se por todo o lado se ouvia gritar “esta é a juventude do Papa” num grito de pertença e comunhão, ninguém ficou com dúvidas de que o Papa Francisco viveu a JMJ como um aliado natural das preocupações e dos sonhos de uma geração que, tendo vencido a pandemia, não se revê numa economia que mata, em políticas que delapidam o planeta, numa Igreja clericalista que se reproduz em sacramentos, numa Igreja banal que se diluiu em mundanidades ou numa Igreja de puros que diabolizam a realidade e se engavetaram em liturgias onde o mistério de Deus é tanto mais sagrado quanto obtuso e incompreensível.

A Igreja sinodal, de portas abertas, do Papa Francisco, teve o seu ensaio geral em Lisboa: com todos, para todos. A questão determinante já não é, para usar palavras inspiradas do seu discurso no CCB, a de saber para onde navegamos, mas que a barca da Igreja não está parada, sem rumo, perdida em alto mar, mas está capaz e disposta a atravessar tempestades para que a Igreja não seja apenas de alguns, com alguns ou para alguns. A barca da Igreja é a barca onde entram todos, sem que os que já cá estão precisem de sair. Não é a barca de uns sem os outros, de uns contra os outros, mas a barca de uns para os outros. A barca de todos: convergentes e divergentes, santos e pecadores, militantes e simpatizantes, convertidos ou em conversão. É a barca dos pecadores que choram, dos que levantam os caídos, dos que não desistem da exigência da misericórdia, dos que não se afogam no mundo, dos que testemunham “a alegria missionária”.

6. A JMJ tem, em síntese, a estrutura de um Tríduo Pascal 

Quinta feira do encontro:

Na cerimónia de boas vindas, deu-se o encontro entre o Papa e a juventude que o esperava. Tudo começou com uma coreografia de abraços e a leitura encenada de múltiplas cartas que retratavam o que habita no imaginário e define o perfil dos jovens crentes e inquietos. Um diagnóstico dos que desejam “sonhar em grande”, um encontro que lembrava as conversas dos discípulos com Jesus: Fica connosco, entra nas nossas vidas, diz-nos o que te vai na alma, abençoa as nossas histórias, desafia-nos à esperança de um futuro possível!

Depois do desfile das bandeiras, ao som do “hoje é um dia de sol”, dissemos ao Papa que povo somos e que cidade é esta que o acolheu: um povo que canta fatalmente o seu destino na voz divina da Marisa, que reza à Virgem do Carmo com o cante de Serpa enquanto cultiva as searas alentejanas, que espalha flores à porta das casas quando Deus se passeia em procissão, como acontece na terra onde nasci, que viaja por sítios “onde se lavam dores que se querem descansadas” na voz do Tiago Bettencourt, um povo que estremece no ribombar dos bombos do Fundão.

Diante do Papa, está uma Igreja jovem e viva que agradece e vibra com o Pastor que Deus lhe deu. Uma Igreja que se fez à estrada, que antes de chegar aqui, já se tinha organizado para receber a cruz e o ícone mariano nas suas terras, que se desdobrou em amabilidades para receber os milhares de peregrinos que chegaram para “viver os dias”, prévios à JMJ, nas suas dioceses; uma Igreja de jovens que percorreu o seu êxodo, para abraçar o seu Pastor fiel que agora está ali, próximo, disponível, em carne e osso, sentado na fragilidade de uma cadeira de rodas. As suas palavras correram o mundo,  ganharam a força de fazer tremer a Igreja e comoveram todos aqueles que não desistem de fazer perguntas.

Sexta feira da paixão:

Celebramos uma via sacra em altura, nos andaimes da vida contemporânea, onde nada parece estável e duradouro. Na Sexta-feira da JMJ, romperam-se os véus com que habitualmente celebramos a dor de Cristo. Vimos, em direto, o nascimento de uma inesperada estética religiosa, capaz de traduzir contemporaneamente a fé, o absurdo da dor, o espanto da vida, a cruz como sinal, a ressurreição como um domingo sem ocaso.

Rebentaram-se as escalas. Creio que nunca se viu nada assim em nenhuma JMJ. A cruz subiu cada escalão dos andaimes até tocar no azul do céu, Jesus encontrou-se com sua Mãe num precipício de amor,  as pétalas de flores caíram como bálsamo na dor dos condenados, os fumos evocaram prisões e labirintos, as faixas da Verónica estendiam-se à procura das vítimas e dos rostos feridos por limpar, as mulheres penduradas na vertigem dos fios evocavam os abismos do poder do mal, homens e mulheres embalaram nos seus braços o filho crucificado de Deus e os filhos das “Pietás” que o nosso tempo esconde. O grito de Cristo atravessou a cidade para redimir uma geração que tem que emigrar, fugir, adiar a vida, viver o absurdo das escolhas que não duram, esmagar os outros para se afirmarem,  resignada a viver de esmolas quando poderia estar a gerar riqueza; uma geração que se tornou mais descrente de si mesma do que do próprio Deus, que sofre de solidão mesmo estando em permanente “online”, que escava na noite catártica de cada bar a esperança de um amanhã que tarda sempre a chegar.

Um tiro perfeito no peito, para que não haja dores inúteis ou desperdiçadas, um arrepio de esperança capaz de redimir o mundo e alcançar os que ainda jazem nos seus sepulcros. E os painéis que subiam, à medida que se percorriam as clássicas estações do caminho da cruz, mostravam, como no coração de cada jovem se encontra impresso o grito dos inocentes condenados que já se sabem libertados. Texto, coreografias, telas, músicas, testemunhos e orações, tudo em perfeita harmonia. Ali, naquele calvário urbano, todos fomos João e Madalena.

Sábado das expectativas e Domingo da alegria

O dia de Sábado cheira sempre a vésperas e a vigília.  Desta vez, nas margens do tejo, uma multidão de peregrinos ajoelha-se. Vive-se um silencio profundo capaz de parar o tempo. É tempo para adorar e confiar, enquanto humildemente, cada um, pela voz da Carminho,  reconhece que deixou de ser “cinza e desgaste”. Há um milagre interior que está a acontecer. O Senhor Jesus que não se deixa adormecer em nenhuma custodia, por mais bela que esta seja, emigra apressadamente para o coração de cada um para passar a noite em branco, na alegria do acampamento onde estão os seus amigos.

Os drones dançam e escrevem palavras performativas que brilham, as orações fazem-se nas mais diversas línguas,  criam-se pontes entre o altar e a multidão, aguardam-se e guardam-se as palavras do Papa que convidam a olhar como Cristo e a levantar os que estão caídos. Uma noite para procurar as raízes da alegria que não prescreve. Entretanto, o Duarte solta-se no grito de Isaías e o João marca o ritmo da pequena orquestra e do grupo dos amigos que o acompanham. Pouco ou nada se dorme, mas acorda-se com a beleza de um amanhecer solar inesquecível e uma inesperada batida: “Lisboa, casa da fraternidade e cidade dos sonhos”, ninguém te esquecerá.

A missa foi de envio na presença da Virgem de Fátima. A maior peregrina de Deus estava ali para nos recordar a “urgência” de Deus e da paz. Há pressa no ar, é preciso partir, levar Deus ao mundo e o mundo a Deus.  No meio de tanta roupa suja, as mochilas carregam agora muitas sementes de esperança que gemem  enquanto aguardam o tempo certo para serem lançadas.

7. A JMJ vive de muitos carismas, programas e propostas: 

Cada diocese, paróquia, ordem religiosa, movimento ou grupo de jovens encontrou a forma de dar o melhor de si nestes dias. Muitos inventaram iniciativas para cuidar dos seus próprios membros, reforçando a sua pertença e identidade espiritual; outros viraram-se mais para fora e procuraram oferecer razões aos que andam mais distantes e que viram na Jornada uma oportunidade para um reencontro com a Igreja, mesmo não a subscrevendo em todas as dimensões. Curaram-se feridas impensáveis, reforçaram-se carismas, consolidaram-se vocações, descobriram-se talentos e generosidades, revigoraram-se grupos. Viveu-se uma maré de oportunidades espirituais e uma descarada consolação.

Das inúmeras catequeses e conferências com bispos e personalidades convidadas ao encontro multitudinário do caminho neo-catecumenal em Algés; do júbilo carismático que abanou o Estádio do Benfica ao concerto dos Hakuna, a abarrotar o Terreiro do Paço de espanhóis ; das orações de Taizé em S. Domingos às arruadas dos Salesianos pela Baixa; do Colégio das Doroteias transformado em “casa dos italianos” ao FNO especial das Equipas de Jovens, no Coliseu dos Recreios; dos inúmeros franceses com as suas t-shirts às risquinhas a tentar evangelizar a noite do Bairro Alto ao nosso Laboratório, ao fado do Zézé Souto Moura, às canções do Cristóbal Fones; da força omnipresente do CNE a assegurar o check-in de todos os peregrinos à inesquecível canção “comment ne pas te louer”, a onda da JMJ com mais de 100 bandas a tocar, cavalgou toda a cidade e deixou lisboa rendida e agradecida.

Uma semana depois, talvez se possam contabilizar melhor os peregrinos, os voluntários, os bispos e os sacerdotes presentes. Talvez possamos vibrar com pormenores, tão significativos como o facto de adolescentes com necessidades especiais terem sido acólitos na missa. Talvez se conheçam já os custos e os investimentos, as horas de transmissão televisiva, o número de refeições, de mensagens, de viagens, de autocarros ou de aviões. No entanto, ninguém saberá contabilizar os efeitos da graça, os corações transformados, as decisões tomadas, os compromissos assumidos, as relações perdoadas.

A JMJ não morre quando termina. Como todas as experiências eclesiais, é limitada, tem defeitos e o seu modelo que não é isento de críticas, pode ser completamente transformado. Para os mais céticos, a JMJ é episódica, inconsistente, pouco profunda e inútil. Para os seus indefectíveis, é brilhante, necessária, configuradora, universal. É verdade que ninguém espera pouco de uma experiência tão grandiosa, mas também é certo que não se lhe pode pedir que, independentemente da sua abrangência, seja a solução para tudo. Como uma verdadeira experiência pascal a JMJ propaga-se, irradia-se, reinventa-se nas comunidades cristãs.

A JMJ não se reproduz sem mais. Não é nem um mega festival de verão nem a fórmula para restaurar  magicamente as comunidades, movimentos e pastorais. Para que estes dias não sejam “pão e circo” eclesial nem um intervalo no outono de uma igreja cansada, é importante que cada peregrino da JMJ, ao regressar à sua igreja local, esteja disposto a “sujar as mãos”, a ser um cristão “todo-o-terreno”, a diluir-se como o fermento na massa,  a servir com um entusiasmo renovado.

P.S. Uma nota final, muito reconhecida a todos os meus irmãos jesuítas (incluindo aos que vieram do estrangeiro) obreiros nesta JMJ: aos que colaboraram com o programa oficial da JM, que tiveram responsabilidades, em particular na Via Sacra,  na Vigília, nas Celebrações Eucarísticas; aos que com tanta dedicação, durante dois anos, construíram o MAGIS (o MAGIS contou com a presença de 2000 jovens, de todo o mundo, ligados à Companhia de Jesus), todas as experiências apostólicas (espirituais, culturais, ecológicas e sociais) e momentos que lhe estão associados, em particular, a missa e cerimónia de abertura e a missa de S. Inácio, presidida pelo P. Geral da Companhia; aos que inventaram a proposta inaciana do Largo da Misericórdia, feita em colaboração com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e que abrangeu, para além do próprio Largo Trindade Coelho, a Igreja de S. Roque, a Brotéria, a Igreja da Encarnação e o Convento de S. Pedro de Alcântara; aos que motivaram tantos leigos ligados à Companhia de Jesus a serem voluntários na JMJ; aos que acompanharam espiritualmente tantos universitários e jovens profissionais; aos que animaram diversos campos de férias, permitindo que centenas de adolescentes e jovens tivessem participado na JMJ; aos que trabalharam incansavelmente no gabinete de comunicação ou deram a cara nos meios de comunicação social; a todos os que encontrei a celebrar missas, a confessar, a animar grupos e a colaborar nos bastidores de tantas iniciativas. Obrigado também aos que abriram as portas das obras e comunidades jesuíticas para que todos tivéssemos um lugar onde ficar; Obrigado ao meu Provincial por ser “lugar de encontro” e tantas vezes, um “no meio de todos nós”.

Enquanto alguns desmontavam as últimas coisas da Vila MAGIS e o Papa aterrava em Figo Maduro, chegava ao Colégio S. João de Brito, pendurada na enorme grua de um camião, uma estátua de S. João de Brito que o Papa Francisco teve a amabilidade de abençoar. Que pequenino me senti quando vi o trabalho escondido de quem, através da arte, foi capaz de nos oferecer o rosto de um mártir que sorri. Ali encontrei a alma de um irmão, para quem obedecer foi esculpir o santo, nas oficinas do silêncio, dia após dia, longe das redes sociais ou da espuma da fama.

Fotografias: Rúben Marques, Sara Moinhos e Fundação JMJ.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.