Não sei bem o que pensar nestes dias, sinto o coração num tumulto. Como é que é possível uma pessoa que não conhecemos nos deixar assim uma marca tão profunda?
O primeiro sentimento que surgiu foi de alegria – chegou ao céu!
O segundo foi de gratidão – tanta vida para agradecer, tanta visão, tanto legado para a humanidade…
Por fim, chegou um vazio – e agora? É possível? Sem o seu sorriso? Sem a sua presença? Sem a sua força? Ainda não passei do terceiro dia… talvez também porque vou recebendo notícias de Trosly e do que se vai passando por lá nestes dias.
Jean Vanier morreu com 90 anos, depois de ser co-fundador de duas organizações internacionais para pessoas com deficiência intelectual – a Arca e o Movimento Fé e Luz – e de ser chamado de Profeta da Ternura e Nobel da Espiritualidade. O Papa Francisco disse no dia a seguir à sua morte: ‘Que Jean Vanier permaneça um exemplo para todos nós, que nos ajude do Céu’.
Depois de ser confrontada com a notícia da sua morte, fui buscar outra vez o primeiro livro que li seu, de todos os que escreveu, “Verdadeiramente Humanos” (Princípia) e que na verdade demorei dois anos a ler… Jean Vanier começa simplesmente por dizer que tem uma história – como todas as pessoas. Não nos diz que a sua história é extraordinária, mas diz-nos que se cruzou com pessoas extraordinárias. Conta sobre a solidão que encontrou em tantos corações e como os nossos medos nos podem levar a rejeitar e excluir os outros, sobre o quanto a solidão desorganiza… nos desorganiza.
Este homem que, como ouvi dizer na homilia do dia seguinte à sua morte, podia ter sido um grande marinheiro ou um grande professor de filosofia, resolveu viver com os mais excluídos da sociedade, sem uma pretensão caritativa, mas com uma pretensão comunitária. Escolheu formar um grupo de amigos, companheiros de caminho, de um caminho que ele escolheu como forma de crescimento pessoal, na convicção de que ‘só pela pertença podemos quebrar a capa do individualismo e do egocentrismo que nos protege e isola’.
‘Pertencer é o que significa ser família’, ‘É a confiança que nos une’, ‘nenhum de nós é o centro do mundo’, ‘Nós precisamos uns dos outros’… vou sublinhando todas estas frases no livro para depois perceber que o livro está todo sublinhado!
E Jean Vanier vai ainda mais longe, e faz afirmações como: ‘Comunhão significa ser vulnerável e afetuoso; significa abrir o coração aos outros e partilhar as nossas esperanças e dores, e até o que é fracasso ou sofrimento’. Jean Vanier fala de aceitação, de compaixão, de liberdade, e por fim de perdão. Perdão no sentido de libertar da ligação que nos fere, que significa também a remissão da dívida, da culpa ou do castigo. ‘Amar os nossos inimigos não se trata apenas de uma realidade espiritual, mas de um assunto essencialmente humano’. Assim, propõe como caminho para o perdão um último passo, que é a paciência.
Este livro acaba dizendo que se cada um de nós começar hoje esta viagem de nos tornarmos mais humanos, e que se tivermos a coragem de perdoar e de ser perdoados, então não seremos mais regidos por mágoas passadas.
Li de seguida tantos outros livros de Jean Vanier. Assim como li também o de Henri Nowen (Adam, o Amado de Deus), que vivendo numa comunidade Arca mudou a sua forma de olhar para os mais frágeis. A fonte é enorme!
Há um mundo tão distante, este mundo da deficiência, dos que lutam por um lugar, por respeito, por dignidade. E que gritam por amor, por relação, por amizade. Um mundo tão bonito e alegre! Em quase todas as imagens de Jean Vanier ele tem um sorriso, e as pessoas a seu lado também. A Madre Teresa de Calcutá viu esse sorriso, o Papa Francisco também!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.