Na primavera de 2004, fazia já três anos que eu trabalhava na baixa do Porto e que muitas vezes à hora do almoço era interpelado por pessoas Sem-Abrigo que me inquietavam interiormente e que me faziam pensar em como ajudá-las. Umas pediam comida para si, outras algum dinheiro para pagar uma conta da luz, outras para os filhos, todas histórias que me tocavam e para as quais não vislumbrava forma de prestar verdadeira ajuda que mudasse algo nas suas vidas, sentindo-me impotente para ajudar tantos.
Nesse período fui percebendo nas minhas dúvidas que, pelo menos, algo fazia maior sentido do que apenas dar uma moeda, e isso era o parar e ouvi-los, fazer-me próximo.
Andava eu nesta inquietude interior, e até angústia de ver tantas pessoas, ainda mais que comecei a pensar que ao virar a cara a estas pessoas podia estar a virar cara a Jesus, quando na Páscoa desse ano fui a Palmela participar com um grupo num retiro pascal. Falei desta angústia e encontrei lá pessoas que estavam no Porto a começar a fazer rondas pelos Sem-Abrigo. Juntei-me a eles e pouco tempo depois éramos 5 amigos num carro, com uma grande termos de café, pacotes de leite e pão de forma, queijo e fiambre para fazer sandes.
Por um ano dedicamos as noites de domingo a estar com as pessoas, a ouvi-las, a minimizar a sua solidão. Vimos que podíamos ajudar mais e melhor se nos organizássemos e assim foi, rapidamente passamos a 35 voluntários a fazer rondas por 5 trajetos diferentes, projeto este que perdura desde 2005, com o nome de FASrondas.
Aprendemos muito, e percebemos que havia algum apoio para encontrar um teto para as pessoas da rua e um local onde comer. As pessoas em situação de sem abrigo não são apenas as que dormem ao relento, mas todas as que dormem em condições precárias. Assim em Portugal considera-se que há cerca de 5 mil, sendo que Lisboa tem mais de 3 mil. No Porto cerca de 1200, das quais 175 dormem em instituições de apoio, 150 a 200 dorme ao relento ou em casas ocupadas e o restante dorme em quartos de pensão pagos pela Segurança Social. Para estas, o álcool é problema para a maioria e a toxicodependência para um terço delas, ainda cerca de um quinto sofre de doenças passíveis de internamento psiquiátrico.
O mais difícil de tudo era conseguir que se tornem autónomas, donas da sua vida e capazes de seguir os seus sonhos. Durante alguns anos eu tinha um lembrete no telemóvel a dizer “Planear FASpadarias”, que era um sonho de criar padarias para dar emprego a estas pessoas, que eu já tinha visto com algumas semelhanças em Vila Verde.
Numa das muitas conversas sobre isto, compreendi que não percebo nada do negócio do pão! Muito maior potencial haveria em criar um conceito que levasse os principais criadores de emprego a contratar estas pessoas! Tentei então criar, passo a passo, um projeto que credibilizasse estas pessoas e as suas competências e percursos. O nome era: “Confiar para Trabalhar”. Após muitas reuniões, com múltiplas entidades, reuni com a Segurança Social que me indicou: “É mesmo isto que estamos a tentar fazer mas ainda não chegamos a este detalhe. Junta-te a nós!”
Desisti de fazer o conceito como o imaginava e fundi as ideias com outras entidades do sector social, público e privado, para juntos criarmos a Plataforma+Emprego (P+E), com o objetivo de sinalizar, triar, credibilizar as competências da pessoas e colocá-las nas empresas.
O Estado não pode simplesmente despejar dinheiro no problema, tem a obrigação moral de o fazer da forma mais eficaz e eficiente, em primeiro lugar pelos beneficiários e em segundo pelos contribuintes.
A P+E funciona seguindo os seguintes passos. Avalia e seleciona os potenciais candidatos com perfil de empregabilidade, ou seja, com passos demonstrados no seu caminho de reinserção social. Uma empresa parceira de recursos humanos entrevista e entrega um relatório com as competências profissionais e comportamentais da pessoa. Pode haver necessidade de fazer formação básica. Em seguida a pessoa é integrada no mercado de trabalho junto de uma empresa parceira, e se necessário é promovida a formação adequada à função desempenhada. Este processo é realizado com acompanhamento social pela P+E.
Desde 2013 já passaram pela P+E mais de 180 pessoas, colocamos 42 pessoas no mercado de trabalho, algumas deixaram o seu testemunho no Facebook da P+E:
“Tinha uma vida boa e depois encontrei-me na rua. Trabalhar agora foi uma oportunidade única para mim. Com o apoio da P+E consegui reingressar no mercado de trabalho e agora estou novamente a trabalhar para conseguir alcançar os meus sonhos, ter uma vida normal como toda a gente, ter dinheiro para pagar renda, ter uma casa onde dormir e comer… Acredito que a minha história deve ser vista como uma motivação para outras pessoas e também para outras empresas para que possam dar a pessoas como eu, honestas e trabalhadoras mas que estão na rua por necessidade, uma oportunidade.”
Ou ainda: “É muito muitíssimo importante para mim estar inserido no mercado de trabalho. É o começo de uma nova vida.”
Tinha uma vida boa e depois encontrei-me na rua. Trabalhar agora foi uma oportunidade única para mim. Com o apoio da P+E consegui reingressar no mercado de trabalho e agora estou novamente a trabalhar para conseguir alcançar os meus sonhos,
Além do incomensurável valor para as vidas destas pessoas, as poupanças acumuladas para o Estado Português ultrapassam mais de 200 mil €. Isto realizado por um projeto feito por técnicos e voluntários com um orçamento anual inferior a 50€! Ao processo inicial acrescentamos ainda a formação dos candidatos, criando-se com o IEFP a primeira formação específica para este público, indo já na 3ª edição.
Continuamos a tentar resolver as dificuldades de parte significativa dos contratos serem Contratos Emprego Inserção, que são na prática bolsas para apoiar emprego (sem direito a proteção na doença ou a férias) e não verdadeiros contratos de emprego. Defendemos a necessidade de haver um programa nacional consistente de emprego protegido e de apoios à empregabilidade para estas pessoas em que o Estado tanto investe apenas para as manter como estão, não potenciando a verdadeira integração social.
O Estado não pode simplesmente despejar dinheiro no problema, tem a obrigação moral de o fazer da forma mais eficaz e eficiente, em primeiro lugar pelos beneficiários e em segundo pelos contribuintes. É certo que estas pessoas normalmente são pouco qualificadas, e poderão ter produtividades inferiores à média, mas como sociedade que queremos cada vez mais fraterna, temos de valorizar o seu trabalho e potenciar a sua felicidade. Hoje ainda estamos longe disto, é claramente possível que com menos custos se consiga transformar a vida destas pessoas.
Neste longo caminho, o projeto recebeu um ofício de homenagem e apoio da presidência da assembleia da República, e um prémio do IAPMEI. Fomos à Assembleia da Republica em 2016 e 2017 para defender o tanto que mais podemos fazer pelas pessoas da rua, tendo havido algumas demonstrações de interesse em expandir para Lisboa a experiência da P+E.
Além disto, a P+E obteve há dias a aprovação de uma candidatura ao Portugal 2020. Este será um passo fundamental para ir mais longe e mobilizar mais meios para ajudar mais e melhor as cerca de 5 mil pessoas em situação de sem abrigo que há em Portugal. O caminho fez-se, e continua a fazer-se, com muitas pessoas que se entregaram por esta causa vendo o potencial em cada pessoa, desafiando para o seu desenvolvimento, credibilizando a sua vida, sonhando vidas maiores.
Passados estes anos, a angústia fez o seu caminho interior e converteu-se em empenho e organização para esta causa do emprego para os mais pobres. Olhando para trás dou graças por esses três anos em que andei inquieto, e hoje quando me sinto novamente inquieto, confio que essa perturbação pode ser um germinar de algo que construa mais um pedacinho de um mundo melhor ou, como gosto de pensar, de um grande Reino de verdade, justiça e fraternidade.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.