Nos próximos três domingos e no dia 31 de julho (sábado), a memória festiva de Santo Inácio de Loyola, irei expor (através da escrita e da imagem) aquilo que poderá ter estado na origem do fenómeno de conversão operado na vida deste homem, aguardando que alguma luz daqui se possa trazer para o processo das nossas demoradas conversões.
Em Santo Inácio, este processo de conversão, empreendido para a vida toda, apresenta-se em três etapas: uma primeira, a que podemos chamar-lhe “força de vontade de quem pretende ter a vida na mão”; uma segunda ocasionada por uma “crise inesperada”, e finalmente a terceira, a vida rendida de um homem colocado nas mãos do Senhor, admitindo tornar-se em “sabiamente ignorante”.
Acredito que no nosso imaginário, a palavra “conversão” possa sugerir de imediato um aparato revolucionário e definitivo que, com espanto e sobressalto, se indicia uma modificação radical de hábitos ou costumes na vida de uma determinada pessoa: o vício levaria à prática das virtudes, a dúvida seria remediada pela fé, a pergunta daria lugar ao esclarecimento doutrinal e a comodidade da vida seria substituída pelo exercício da penitência e da prática do rigor.
Ao celebrarmos os 500 anos de uma ferida ocorrida em Santo Inácio na batalha de Pamplona, e antes de espreitarmos os seus efeitos, diria que ela, a ferida, não é forçosamente sinónimo de fracasso. Um cavaleiro ferido naquelas circunstâncias – dos poucos a permanecerem até ao fim do combate com “bravura e esforço” (Autobiografia 1) – não tem por que se envergonhar seja da derrota, seja do estilhaço por ela provocada. Aliás, a sua ferida até poderia ter sido para Santo Inácio um sinal contrário: em vez de fracasso, o aumento de coragem, valentia e de admiração e, por isso, crescimento do orgulho próprio. E isto pouco ou nada tem de fracasso.
Acredito que no nosso imaginário, a palavra “conversão” possa sugerir de imediato um aparato revolucionário e definitivo que, com espanto e sobressalto, se indicia uma modificação radical de hábitos ou costumes na vida de uma determinada pessoa.
Nesse sentido, eu atrever-me-ia a dizer que o fracasso de Santo Inácio pode não estar tanto na sua ferida, mas eventualmente na realidade agressiva que lhe veio a suceder: a paragem forçada (aproximadamente oito meses), acompanhada de um profundo e quase destrutivo aborrecimento. E este aborrecimento, diria eu, se não for contornado nem ocupado pelo mero entretenimento, pode ser das mais privilegiadas e benéficas ocasiões para um encontro consigo próprio e com Deus.
Uma vez surpreendido e contrariado por esta inesperada e lenta convalescença mas, sobretudo, pela ausência de distrações (os esperados romances e as novelas de cavalaria) Inácio de Loyola vê-se, agora, obrigado a ler o que não queria: a Vida dos Santos e a Vida de Cristo.
E este aborrecimento, diria eu, se não for contornado nem ocupado pelo mero entretenimento, pode ser das mais privilegiadas e benéficas ocasiões para um encontro consigo próprio e com Deus.
E aqui parece-me estarmos diante de um dos maiores aborrecimentos de todos os tempos: quando a realidade nos impõe a sua “vontade”, sem nosso consentimento, e diante dela, pouco ou muito pouco podemos fazer.
Mas, ainda assim e sob o efeito de uma imaginação lendária e gloriosa, movido gradualmente por uma devoção, este aborrecimento dá lugar a um fascínio que agora se vê orientado e convertido, já não para o orgulho dos méritos humanos, mas para a honra e glória das coisas de Deus.
Talvez o desejo se mantenha o mesmo – a heroicidade de quem quer ter mão sobre a vida – embora o objeto do seu desejo se tenha agora modificado: a imitação perfeita e irrepreensível da santidade (Ibid 7)
Nesta primeira etapa da sua “conversão”, Inácio de Loyola virá a conhecer um período necessário e incontrolável a que poderíamos chamar de vida ascética assente numa admirável e heroica força de vontade, como se ele pudesse dispor inteiramente da vida, do seu futuro, da imagem e prestígio social e até, inclusive das moções experimentadas no seu coração.
O tempo da devoção, das promessas, do ardor e do entusiasmo, da entrega inigualável de generosidade, da luta e do empenho, da alegria e do fascínio, da esperança impaciente, da força de vontade e do voluntarismo. Pela prática da extrema penitência e de uma inabalável força de vontade capaz de suportar e aguentar tudo quanto de si dependesse, nasce um seguimento eloquente, irrepreensível e exímio do Senhor, diante de si e diante de todos: quero ser santo.
Os santos fazem-se à força de vontade e se não há vontade, não há santidade, nem conversão que se lhe pareça, poderíamos dizer.
No próximo domingo, veremos como esta etapa e este modelo de aspiração à santidade se revela profundamente incapaz de gerar sinais de conversão.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.