Harry Potter, Frodo e Jesus

A angústia dos heróis da literatura ocidental perante a morte e a angústia de Jesus no Getsémani: simples coincidência?

A angústia dos heróis da literatura ocidental perante a morte e a angústia de Jesus no Getsémani: simples coincidência?

1. Como mel para a boca

O que é que o trailer do Senhor dos Anéis: a Irmandade do Anel faz aqui? Vê-o, lê o texto do Evangelho e depois damos-te a explicação…

 


2. Um texto bíblico

Nestes quatro domingos antes da festa da Páscoa, propomos-vos um pequeno itinerário através de quatro dos passos da Paixão. Hoje exploramos a agonia do Horto das Oliveiras.

Chegaram a uma propriedade chamada Getsémani, e Jesus disse aos discípulos:

“Ficai aqui enquanto Eu vou rezar”.

Tomando consigo Pedro, Tiago e João, começou a sentir pavor e a angustiar-se. E disse-lhes:

“A minha alma está numa tristeza mortal; ficai aqui e vigiai”.

Adiantando-se um pouco, caiu por terra e rezou para que, se possível, passasse dele aquela hora. E dizia: “Abba, Pai, tudo te é possível; afasta de mim este cálice! Mas não se faça o que Eu quero, e sim o que Tu queres”. Depois, foi ter com os discípulos, encontrou-os a dormir e disse a Pedro:

“Simão, dormes? Nem uma hora pudeste vigiar! Vigiai e orai, para não entrardes em tentação; o espírito está preparado, mas a carne é fraca”.

Retirou-se de novo e rezou com as mesmas palavras. E, voltando de novo, encontrou-os a dormir, pois os seus olhos estavam pesados; e não sabiam que responder-lhe. Voltou pela terceira vez e disse-lhes:

“Dormi agora e descansai! Basta, chegou a hora! Eis que o Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos pecadores. Levantai-vos! Vamos! Eis que chega aquele que me vai entregar”.

Evangelho segundo São Marcos, 14,32-42


3. O esclarecimento

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El Greco (Doménikos Theotokópoulos), A agonia no horto (1590), Museu de Arte de Toledo, Ohio, EUA

A figura do eleito angustiado perante o sacrifício da sua vida atravessa a história da literatura e chega até aos heróis mais famosos do nosso tempo.

Em O Senhor dos Anéis, Tolkien construiu uma narrativa propositadamente tecida de referências bíblicas. De seu nome completo John Ronald Reuel Tolkien (1892-1973), o autor foi também um importante crítico literário, especialmente da Bíblia: dirigiu a primeira edição da Jerusalem Bible, inspirando-se no trabalho dos frades dominicanos da École Biblique de Jerusalém!

O personagem Frodo tem todas as características do herói desarmado, impotente, angustiado perante a missão salvadora que tem de cumprir, contrariando o príncipe das trevas. Apesar da sua reputação, este herói é profundamente humano. Tudo isso recorda, evidentemente, a figura de Jesus…

 

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Francisco Goya, Cristo no Monte das Oliveiras (1819), Escuelas Pías de San Antón, Madrid, Espanha

Harry Potter encarna os mesmos traços: para vencer Voldemort, o príncipe das trevas, ele deve aceitar morrer, e fica angustiado perante essa ideia.

É a figura de Jesus angustiado no Getsémani, Deus desarmado, o Todo-poderoso que se torna impotente, que serve de modelo para estes heróis. A literatura nasce sempre numa terra, lança as suas raízes numa cultura, e os maiores heróis da literatura ocidental têm uma evidente base bíblica.

 

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Carl Heinrich Bloch, Getsémani (1873), Museu de História Nacional do Castelo de Frederiksborg, Frederiksborg Slotskirke, Dinamarca

4. E ainda uma palavra final…

Esta experiência da angústia perante a morte, este medo do nada, habita toda a humanidade e cada um pode rever-se na experiência que Olivier Clément contou numa emissão de rádio:

“Maravilhava-me ainda mais com as estrelas, esses cachos de estrelas extraordinários que Van Gogh conseguiu pintar. E depois, ao mesmo tempo, vinha a angústia. Eu tinha perguntado:

– O que são as estrelas? E o que é que há depois das estrelas?

E tinham-me dito:

– Depois não há nada, há o vazio, e mais vazio, sempre o vazio, não é? Sabes, há estrelas que morreram há muito tempo, há milhares de anos, e a sua luz ainda chega até nós.

Então, quando olhava para as estrelas, conjugavam-se nesse momento em mim a angústia e a admiração. Sentia, por um lado, uma espécie de alegria intensa pela beleza cósmica: estas estrelas são como que uma celebração, uma dança no céu. Por outro, havia essa ideia de que talvez elas já estivessem mortas, e que no fim todos nós iríamos morrer. O que somos nós, comparados com estrelas? Um instante à superfície no nada. Tudo é absurdo, para quê existir?

[…]

Para mim, a chave desta relação entre angústia e admiração é o mistério da cruz. Na verdade, na cruz a própria angústia tornou-se lugar da admiração. Em lugar de fugir da angústia, em lugar de fugir da morte, Deus, na cruz, transforma a profundidade da angústia em profundidade de confiança, pelo ato de descer ele mesmo ao fundo da sua própria ausência.”

Radioscopie, emissão de 16 de janeiro de 1976, conversa entre Jacques Chancel e Olivier Clément

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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