Guardiões da Terra

Neste Dia da Terra, e no meio da tragédia da pandemia, podemos alegrar-nos com um pouco menos de poluição atmosférica e sonora, mas temos de exigir uma nova economia que não nos mate, com diz o Papa Francisco.

Neste Dia da Terra, e no meio da tragédia da pandemia, podemos alegrar-nos com um pouco menos de poluição atmosférica e sonora, mas temos de exigir uma nova economia que não nos mate, com diz o Papa Francisco.

Um mergulhador está prestes a ser engolido por um tubarão, a COVID-19, que por sua vez está prestes a ser comido por um tubarão maior, a grande crise económica. A imagem tem circulado por aí, mas está incompleta. O maior tubarão de todos, já pronto para depredar os outros três, é a crise climática.

Um relatório recente do McKinsey Global Institute, Climate Risk and Response (Janeiro 2020), mostra de forma clara os danos socioeconómicos causados pelas alterações climáticas, que serão sempre crescentes, não-estacionários, não-lineares e sistémicos: nas condições de vida e de trabalho; nas cadeias de valor; nos sistemas alimentares; no capital natural; nas infra-estruturas e ativos físicos, etc. Um exemplo deste relatório são os sistemas alimentares atuais, que confiam mais de 60% da produção dos principais cereais a cinco regiões especialmente vulneráveis à seca ou à precipitação intensa, o que afeta o mercado global – e, portanto, milhões de pessoas. Outro exemplo é o de como as horas de trabalho na Índia e na região Mediterrânica poderão diminuir devido às ondas de calor mais frequentes. No entanto, o mais injusto neste relatório, como já o relatório do IPCC de 2018 notou e o Papa Francisco tem vindo a sublinhar, é que os países que menos contribuíram até hoje para a crise climática, com escassas emissões de gases de efeito de estufa (GEE), são e serão os mais afetados.

O mais injusto neste relatório, como já o relatório do IPCC de 2018 notou e o Papa Francisco tem vindo a sublinhar, é que os países que menos contribuíram até hoje para a crise climática, com escassas emissões de gases de efeito de estufa (GEE), são e serão os mais afetados.

A anormal ocorrência de dois ciclones mortíferos na mesma estação, o ano passado, afectou 2.5 milhões de pessoas apenas em Moçambique, muitas ainda a precisar de assistência. Este não é um caso isolado, nem inexplicável. Também Portugal está numa das regiões mais vulneráveis às alterações climáticas. Além de já termos um nível elevado de stress hídrico (tenho em mente a imagem trágica da barragem de Odeleite), uma parte considerável da população nacional vive em zonas costeiras, particularmente vulneráveis à erosão. Por isso, o Plano de Adaptação às Alterações Climáticas da Área Metropolitana de Lisboa já prevê o realojamento dos habitantes da Cova do Vapor, no concelho de Almada, que sofrem frequentemente com galgamentos e inundações. No mesmo lugar, prevê-se uma subida de dois metros do nível do mar, até 2070. Isto tudo para não falar do aumento do risco de incêndios.

Num contexto de pandemia, poderíamos considerar legítima a tendência de relegar a ação climática para o fim da nossa lista de prioridades. No entanto, como mostram relatórios como o da McKinsey ou mesmo o Conselho de Estabilidade Financeira, cuidar do clima é cuidar da economia, que deve servir as pessoas; é acautelar a boa gestão da nossa casa comum, através de uma regulação económica que tem em conta os limites do planeta; é tentar mitigar os efeitos das alterações climáticas e adaptar a vida das pessoas àqueles que já se revelam inevitáveis.

Infelizmente, os impactos da COVID-19 não chegam para a Terra se regenerar. A atual queda de emissões de CO2, estimada em 4% pelo Carbon Brief, não é suficiente: segundo o IPCC, até 2030, as emissões terão de cair anualmente em 7,6%. A pandemia está, aliás, a atrasar a ação climática: a investigação científica estagna; as cadeias de produção de baterias de lítio, painéis solares e turbinas eólicas, dependentes da China, estão a meio gás; a descida descontrolada do preço do petróleo não nos garante um uso mais eficiente a médio prazo; até a Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP26), em Glasgow, cujas negociações são determinantes e urgentes, foi adiada para 2021.

Recentemente, 100 organizações e personalidades portuguesas pediram que a recuperação económica portuguesa se comprometa com o Pacto Verde Europeu. Também alguns Estados-Membros na União Europeia, Portugal incluído, exigiram o mesmo do plano de recuperação económica da UE. No entanto, o Pacto Verde Europeu não é satisfatório. As suas metas de redução de emissões ficam aquém das do IPCC e o bilião de euros prometido pela Presidente da Comissão Europeia é ambíguo, porque depende de fundos privados não garantidos e consome fundos europeus pré-existentes. Além disso, ficam bastante atrás dos esforços envidados para tratar a crise financeira das dívidas da EU, em 2011.

Não podemos tratar de uma crise sem reconhecer que estamos diante de uma. Aquilo de que precisamos, como também nota o Secretário Geral das Nações Unidas, hoje, é de parar as subvenções à indústria fóssil, responsável por 89% de emissões de CO2 e canalizar esses investimentos para a indústria limpa e verde. Precisamos também de uma transição justa, que requalifique os trabalhadores para a nova economia verde, como será necessário na Central Termoeléctrica de Sines. Justiça ambiental é justiça social, não é uma abstração.

No meio da tragédia da pandemia, podemos alegrar-nos com um pouco menos de poluição atmosférica e sonora, mas temos de exigir uma nova economia que não nos mate, para usar a expressão da exortação apostólica do Papa Francisco Evangelii Gaudium, de 2013. O Papa Francisco lembra-nos na catequese de hoje, Dia da Terra, que não temos sido os seus guardiões. Temos agora uma ocasião para repensar o nosso modelo económico global, para uma proteção mais eficaz do planeta, para lá das belas palavras e da apropriação dos slogans dos activistas climáticos.

Este será o quinto ano do Acordo de Paris, da Agenda 2030 das Nações Unidas, que tem a ação climática como prioridade, e da encíclica Laudato Si, que diagnosticou a grande crise socioambiental que vivemos e propôs caminhos para uma mudança de paradigma. Se tudo correr bem, terá ainda lugar este ano o encontro dos jovens da Economia de Francisco. Está na hora de reconhecer que “[p]ara se resolver uma situação tão complexa como esta que enfrenta o mundo atual, não basta que cada um seja melhor. A conversão ecológica, que se requer para criar um dinamismo de mudança duradoura, é também uma conversão comunitária.” (LS 219) Em tempos de isolamento, precisamos de nos juntar, refletir e agir. Todos em defesa de cada um.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.