Grito de angústia

Mil mortos, 250 mil desalojados. Os números crescem todas as semanas. Cabo Delgado, no norte de Moçambique, vive tempos de insegurança desde 2017 quando grupos armados começaram a espalhar violência e morte. Ataques têm-se intensificado.

Mil mortos, 250 mil desalojados. Os números crescem todas as semanas. Cabo Delgado, no norte de Moçambique, vive tempos de insegurança desde 2017 quando grupos armados começaram a espalhar violência e morte. Ataques têm-se intensificado.

Completamente destruída pelas chamas. A Igreja de Mocímboa da Praia foi um dos alvos dos grupos armados que atacaram esta vila na província de Cabo Delgado nos dias 27 e 28 de junho. Esse ataque causou pânico geral e levou à fuga das populações. Dezenas e dezenas de casas, carros e lojas queimadas passaram a ser o retrato desta vila, capital distrital. Além da Igreja, a escola secundária Januário Pedro ou o Hospital Distrital também não escaparam à fúria terrorista.

Mocímboa da Praia é hoje um cenário dantesco. Esta povoação já por mais de uma vez assistiu à violência brutal dos grupos jihadistas que reivindicam pertencer ao Daesh, o Estado Islâmico. Em 23 de março, a vila foi ocupada pelos “insurgentes” – como localmente estes grupos são apelidados – que hastearam mesmo bandeiras negras com inscrições em árabe. Foi um ataque de envergadura. Praticamente sem oposição das forças da ordem, os jihadistas queimaram já então alguns edifícios, libertaram os detidos da prisão local e chegaram a patrulhar as ruas.

D. Luiz Lisboa, Bispo de Pemba, disse na ocasião à Fundação AIS que os terroristas tinham deixado o recado de que “iam voltar”. “As populações estão com medo” – acrescentou o prelado. “Se eles atacaram Mocímboa, que é a vila maior que existe naquela região, as populações de Palma, de Mueda, de Macomia, estão todas com medo. O pessoal está amedrontado. Já estavam antes, agora, piorou…”

Apesar da dimensão e brutalidade dos ataques – há relatos de pessoas decapitadas e mulheres e raparigas raptadas – o mundo parece continuar relativamente alheado ao que se passa no norte de Moçambique.

Reunião em Bruxelas

E voltaram mesmo a Mocímboa da Praia. Agora, no ataque à vila no último fim-de-semana de junho, os terroristas decidiram destruir alguns dos edifícios mais emblemáticos. Um deles foi a Igreja Paroquial. Empilharam todos os bancos da igreja como se fossem lenha e atearam fogo. A violência do ataque provocou a fuga das populações para as matas. A intervenção do exército moçambicano terá impedido, no entanto, uma destruição maior, mas há relatos de que os grupos armados continuavam na zona nos dias seguintes, fazendo aumentar o temor de novos incidentes.

Apesar da dimensão e brutalidade dos ataques – há relatos de pessoas decapitadas e mulheres e raparigas raptadas – o mundo parece continuar relativamente alheado ao que se passa no norte de Moçambique. A reunião, no dia 6 de julho, no Parlamento Europeu, fruto em grande parte da militância dos eurodeputados portugueses, nomeadamente de Paulo Rangel, acabou por ser uma excepção. Nessa reunião, antes das férias de verão do Comité das Relações Exteriores, o Parlamento Europeu debateu a questão da “ofensiva islamita” na província de Cabo Delgado. Todos os intervenientes sublinharam a “situação dramática” que se vive no norte de Moçambique, com centenas de mortos e mais de 250 mil deslocados. A reunião serviu para o Parlamento Europeu escutar da responsável regional pelo Serviço Europeu de Ação Externa, Notarangelo Erminia, as medidas que estão a ser planeadas no auxílio a este país africano. Erminia referiu mesmo que haverá, neste momento, “mais de 500 mil pessoas afetadas por esta tragédia humanitária”.

“Situação complexa”

Paulo Rangel, vice-presidente do PPE, o Partido Popular Europeu, eleito pelo PSD, sublinhou na sua intervenção que Cabo Delgado está perante “uma ofensiva islamita radical oportunista”, e que a União Europeia deveria equacionar o seu envolvimento nesta questão, auxiliando o Estado moçambicano. “É fundamental que a União Europeia se envolva neste conflito e possa apoiar algumas formas de pacificação militar, seja por forças africanas seja por forças das Nações Unidas.”

Isabel Santos, do Partido Socialista, referiu a “complexidade da situação” e deixou o alerta para o facto de esta violência terrorista ter “um forte potencial de alastramento no país e em toda a região”. Carlos Zorrinho, presidente da Delegação do Parlamento Europeu à Assembleia Parlamentar África-Caraíbas-Pacífico/União Europeia, também usou da palavra, defendendo que a questão da violência em Cabo Delgado deve ser debatida “no próximo plenário”, e que se trata de “uma situação muito complexa”. No entanto, deixou claro que é preciso passar das palavras aos atos. “Temos mesmo é que agir”, disse Zorrinho.

Paulo Rangel tem-se destacado pela necessidade de colocar Cabo Delgado entre as prioridades da política externa da Europa comunitária. “Tive a sorte” – disse Paulo Rangel à Fundação AIS logo após a reunião do dia 6 de julho – “de receber todas as informações da Igreja Católica local.” O vice-Presidente do Partido Popular Europeu afirmou ainda iria ser convocado o Alto Representante para as Relações Exteriores, Josep Borrell, “para uma próxima reunião”.

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Bispo de Pemba, D. Luiz Lisboa, tem sido um dos que mais tem denunciado o problema.

“Verdadeira barbárie”

A situação é grave em Cabo Delgado e tem tendência para piorar. Esta onda de violência teve início em outubro de 2017 e agravou-nos nos tempos mais recentes. A Igreja Católica não tem escapado aos ataques terroristas. Além da destruição do templo de Mocímboa da Praia no final de junho, em dezembro do ano passado uma Igreja foi vandalizada em Chitunda; a 7 de abril, em plena Semana Santa, a centenária Igreja do Sagrado Coração de Jesus foi atacada em Nangololo… Esse foi, aliás, um mês crítico, pois os terroristas assassinaram a tiro mais de meia centena de jovens que se recusaram a integrar as suas fileiras. Essa notícia correu mundo. Ataque “cruel e diabólico”, “massacre” e “brutalidade” foram expressões usadas pelo The Guardian, BBC ou DW, por exemplo. O Bispo de Pemba afirmou, então, que esses jovens eram “mártires da paz”.

Em maio, a missão dos monges beneditinos, na aldeia de Auasse, foi atacada. Os monges tiveram de fugir, escondendo-se nas matas até conseguirem abandonar a região rumo à Tanzânia, onde existe um convento da congregação. Cristãos e muçulmanos moderados fogem de toda esta violência. A Igreja Católica está muito preocupada com esta imparável onda de violência e a consequente crise humanitária. Os bispos moçambicanos, reunidos em Conferência Episcopal entre os dias 9 e 13 de junho, expressaram a sua indignação face ao que chamam de “atos de verdadeira barbárie” e de “atrocidades” contra as populações, e pediram “uma resposta urgente a esta tragédia”.

A Igreja tem tentado nestes dias secar as lágrimas de um povo que perdeu tudo e que passa já fome.

Situação dramática

D. Luiz Fernando Lisboa, Bispo de Pemba, diocese que está no epicentro deste problema, tem procurado alertar o mundo para a realidade “cada vez mais dramática” que se vive na região. Em declarações sucessivas à Fundação AIS, o prelado tem sublinhado que a questão humanitária é premente. “O alojamento não é suficiente para todos porque aqui em Pemba, por exemplo – explicou recentemente D. Luiz Fernando Lisboa à AIS –, as famílias estão a receber [os desalojados], mas há também grandes acampamentos sem as condições necessárias. Não há tendas suficientes, não há comida que chegue, porque é muita gente.”

A agravar esta situação, e porque agora “é a época do frio”, faltam “mantas, e cobertores” para distribuir a todas as pessoas. Pode dizer-se que há um grito de angústia que chega de Moçambique. D. Luiz Fernando Lisboa fala mesmo em pessoas desesperadas. “São pessoas que estão a fugir de uma situação de insegurança total. Ninguém sabe o que vai acontecer. Por isso, estão a fugir.” A situação é dramática. Uma das consequências diretas desta violência por vezes com contornos brutais – aldeias reduzidas a cinza e pessoas, normalmente simples aldeões, decapitados num cenário de horror – é a fuga das populações.

Campanha da Fundação AIS

Que fazer com tanta gente aflita? Procurar ajudar. A Igreja tem tentado nestes dias secar as lágrimas de um povo que perdeu tudo e que passa já fome. “Há situações de fome desde há muito tempo”, esclarece o bispo. Fome por causa dos ataques que levaram ao abandono dos campos, as “machambas”, situação que se agravou também por causa da pandemia do coronavírus. “Estamos numa situação muito preocupante.”

O bispo reconhece que esta vai ser uma batalha muito difícil: “Vamos precisar mesmo de muita ajuda”. Face a esta situação dramática, a Fundação AIS lançou uma campanha de emergência para a Igreja que sofre em Moçambique. D. Luiz Fernando Lisboa, o Bispo de Pemba, escreveu a agradecer esta iniciativa. “Queridos amigos da Fundação AIS em Portugal: peço-vos orações e ajuda para o meu povo. Obrigado a cada um de vós!” Tal como na Síria, tal como no Iraque, também em Moçambique parece já ter chegado o longo braço do terror jihadista. A população de Cabo Delgado precisa muito da nossa ajuda. E precisa da nossa ajuda agora.

Fotografias: Fundação AIS

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.