Em 1988, frei Bento Domingues publicava o livro A religião dos portugueses, condensando em parte as notas do seu Curso de Pastoral, no Instituto Superior de Estudos Teológicos (ISET), em Lisboa (1967-1975). Então, o autor apelava para a necessidade de se estudar em profundidade o fenómeno religioso português, tendo Fátima como objecto de análise simultaneamente concreto e simbólico. O livro que agora nos chega recupera esses textos e problemática, somando uma selecção de artigos posteriores do autor, uns provindos da sua coluna semanal no jornal Público, outros de colaborações suas em diferentes obras. Agora, como na versão original, o livro tem total cabimento e pertinência.
O título que envelopa o livro é, antes de mais, uma interrogação: quais os contornos da religiosidade portuguesa? Com sabor ensaístico, o autor problematiza a articulação «identidade nacional» e «religiosidade» contrastando perspectivas.
O título que envelopa o livro é, antes de mais, uma interrogação: quais os contornos da religiosidade portuguesa? Com sabor ensaístico, o autor problematiza a articulação «identidade nacional» e «religiosidade» contrastando perspectivas. Recorda-se, e bem, o passado plural do país, em povos, culturas e pertenças religiosas; mostram-se divergências e matizes na forma de pensar a relação entre nação e catolicismo, da justaposição patente no silogismo de Salazar («português, logo católico») até ao desejo de superação do deus bíblico (José Saramago) e de regresso a um novo paganismo (Fernando Pessoa), passando pela afirmação de um cristianismo lusitano criativo e autónomo (Teixeira de Pascoaes); evocam-se alguns temas recorrentes na descrição da «arte de ser português», como o messianismo, o sebastianismo e o quinto império, enquanto apropriações portuguesas da intuição judaica de eleição e de missão universal; avançam-se algumas notas distintivas de uma certa religiosidade portuguesa, nomeadamente a sua concentração em torno ao coração (compassivo, ternurento, maternal, afectivo). Ao proceder deste modo, o autor evita reducionismos fáceis, sublinhando a complexidade do fenómeno: Portugal é múltiplo, e isso reflecte-se também nas expressões religiosas dos portugueses. Assim concebida, a religião é resgatada da concepção moderna e das suas oposições razão-sentimento, público-privado, para ser vista desde logo enquanto realidade antropológica, social e cultural. O autor inscreve-se assim na longa lista de sociólogos da religião, com Durkheim à cabeça, que analisam este fenómeno a partir das suas funções sociológicas, sem perder de vista, porém, o horizonte de transcendência. A religião aparece então num cruzamento de eixos, social-político (religare) e existencial-hermenêutico (relegere). É aí que se joga a relação entre Igreja e Estado, por um lado, e entre fundamentos e fundamentalismos, por outro.
Ao proceder deste modo, o autor evita reducionismos fáceis, sublinhando a complexidade do fenómeno: Portugal é múltiplo, e isso reflecte-se também nas expressões religiosas dos portugueses.
Fátima aparece como ícone do fenómeno religioso português contemporâneo, inclusive nas suas ambiguidades. Quando as academias previam o fim da religião, Fátima aparece como imprevisto: sociologicamente, é impossível ignorar o movimento que Fátima gera e isto, só por si, mereceria análise. Por outro lado, do ponto de vista eclesial, Fátima preserva também uma certa originalidade, na medida em que permite uma religiosidade democrática, acessível e plural, ou uma religiosidade «ao ar livre». Ainda no campo eclesial, Fátima impõe-se cada vez mais não apenas como fenómeno nacional, mas global. A prová-lo estão as visitas papais, muito concretamente a mais recente, do papa Francisco, à qual o livro dedica particular atenção.
Ao mesmo tempo, Fátima pode servir também de caixa de ressonância da relação entre a Igreja e a sociedade portuguesas. Ouve-se, nas páginas do autor, uma pergunta importante: de que modo Fátima agitou/ agita não apenas os crentes, mas a sociedade? A pergunta ganha tanto mais relevo se tivermos em conta a história recente. Fátima reverberou as lágrimas da população quando esta chorava perdas, guerras e crises. Terá ela servido para testemunhar o mal-estar social perante a ditadura? Ou como espelhou ela o sentimento popular do pós 25 de Abril, por exemplo?
Este livro lança-nos vários desafios. À Igreja Católica, este livro pede seriedade teológica. A escassez de estudos críticos sobre o fenómeno de Fátima – seja ao nível da história e da teologia, mas também da própria estética – ilustram a precariedade da teologia nacional. Neste sentido, Fátima é também o nome de um campo de trabalho
Este livro lança-nos vários desafios. À Igreja Católica, este livro pede seriedade teológica. A escassez de estudos críticos sobre o fenómeno de Fátima – seja ao nível da história e da teologia, mas também da própria estética – ilustram a precariedade da teologia nacional. Neste sentido, Fátima é também o nome de um campo de trabalho. Às universidades e aos intelectuais, este livro pede interesse. A experiência religiosa deve ser encarada como fazendo parte do real e, como tal, deve ser estudada com rigor. Se Fátima deveria interessar aos teólogos, não deveria interessar menos a sociólogos e antropólogos. Finalmente, este livro lança-nos, a todos, um desafio cultural. A religião dos portugueses é, fundamentalmente, um convite a um exercício colectivo de avaliação, de reflexão e de empenho. Afinal, o que diz e mostra a religião acerca dos portugueses? E o que dizem e mostram eles da religião? De que espaços precisamos para começar esta conversa?
Nota: Esta recensão será publicada no Caderno Cultural da Revista Brotéria de Julho
Ficha do livro:
Frei Bento,Domingues, O.P.
Organizadores: António Marujo; Maria Julieta Mendes Dias
A religião dos portugueses. Testemunhos do tempo presente.
144 págs., Lisboa, Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2018.
Preço: 17,70€ – Comprar o Livro
Foto de capa: Joaquin Osório Castillio/Shutterstock
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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