“Fratelli Tutti” [“Todos Irmãos.”] Assim começa em expressão italiana a mais recente Carta Encíclica do Papa Francisco, dando-lhe título, como todos os documentos principais do Magistério. Com a actualidade mundial em plena pandemia, a crescer em tensão política, eminente crise económica, o drama humanitário dos refugiados pelos conflitos entre as nações, o aumento da agressividade, Francisco, com a sua assertividade, simplicidade, sabedoria e lucidez, recorda-nos que “as questões relacionadas com a fraternidade e a amizade social sempre estiveram entre as minhas preocupações” [5]. Inspirado novamente por São Francisco, o Papa apresenta aos cristãos e pessoas de boa vontade esta “encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras” [6].
Farei o breve comentário de “Fratelli Tutti” [FT] numa evolução de três momentos desde conceitos muito presentes na encíclica: encontro, diálogo e conversão.
Encontro
Francisco convida mais uma vez aos gestos concretos, às acções que possam ser verdadeiramente transformadoras no mundo. Um importante gesto a considerar é o encontro. O Papa desde o início do seu pontificado quis alicerçar a força do encontro, em particular com quem tivesse perspectivas diferentes da sua. Vem-me à memória o encontro com os jornalistas presentes no conclave, com a delicadeza de não dar uma bênção, mas ficar em breves momentos de silêncio, por respeito aos que não eram crentes. Recebe em audiência privada pessoas de outros credos e realidades sociais diversas. Quando viaja, coloca na agenda encontros que marcam a escuta, como com as vítimas de abusos na Igreja, líderes de outras religiões, como recorda e dá destaque em FT, com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dabi, “para lembrar que Deus ‘criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade, e os chamou a conviver entre si como irmãos’” [5].
Francisco convida mais uma vez aos gestos concretos, às acções que possam ser verdadeiramente transformadoras no mundo. Um importante gesto a considerar é o encontro.
O encontro permite escutar o outro na sua realidade concreta. Mesmo que seja sombria. Francisco não foge, não encobre e não contorna nem as dores, nem as feridas, nem os males da humanidade, incluíndo a Igreja, já que “o facto de crer em Deus e O adorar não é garantia de viver como agrada a Deus” [74]. Ao seu estilo, antes de apresentar soluções, destaca o que considera serem os principais problemas que impedem a fraternidade. De forma directa e assertiva, assinala as injustiças políticas, económicas, sociais e religiosas que levam ao descarte humano nas quais “nega-se a outros o direito de existir e pensar e, para isso, recorre-se à estratégia de ridicularizá-los, insinuar suspeitas sobre eles e reprimi-los” [15], em que “partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício de uma selecção que favorece a um setor humano digno de viver sem limites. No fundo, as pessoas já não são vistas como valor primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se ‘ainda não servem’ (como os nascituros) ou ‘já não servem’ (como os idosos)” [18], e “de novo nos envergonham as expressões de racismo, demonstrando que os supostos avanços da sociedade não são tão reais nem estão garantidos de uma vez por todas” [20]. Afirma também com veemência que “como é inaceitável que uma pessoa tenha menos direitos pelo simples facto de ser mulher, de igual modo é inaceitável que o local de nascimento ou de residência determine, por si, menores oportunidades de vida digna e de desenvolvimento” [121]. Para avançar humanamente, em sentido de esperança, ante todas as sombras, é fundamental dialogar.
Diálogo
“O Verbo fez-se carne e habitou no meio de nós” (Jo 1,24): o diálogo entre humanidade e divindade. A consciência e o sentido profundo do mistério da encarnação está presente em Francisco. A recolha de muitas passagens, ao jeito de síntese do seu pensamento humanitário, retrata o seu foco no testemunhar Deus, a partir, não de ideias, mas de acções exemplares de bem, de cuidado, de respeito por todos. A humanidade que vive a plenitude do amor, nesse amar o próximo como a si mesmo, vive divindade. Assim, quanto mais humanos no gesto de atenção ao outro, em particular o mais pobre, o mais frágil, o que vive a injustiça, o desprezado, mais divinos nos tornamos. Desde a parábola do Bom Samaritano, o Papa recorda-nos que somos chamados a cuidar, independentemente das condições sociais, sexuais, culturais, religiosas, do irmão ou da irmã feridos, afinal “todos somos, ou fomos, como estas personagens: todos temos algo de ferido, do salteador, daqueles que passam ao largo e do bom samaritano” [69].
Francisco exorta ao diálogo necessário e multidisciplinar, nas várias perspectivas do “poliedro, onde ao mesmo tempo que cada um é respeitado no seu valor, ‘o todo é mais que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas’” [145]. Sempre no “amor capaz de aceitar as várias diferenças, a prioridade da dignidade de todo o ser humano sobre quaisquer ideias, sentimentos, atividades e até pecados que possa ter”(191). Para tal, é fundamental fazer caminho de conversão.
Conversão
Todos precisamos de encontrar a conversão que nos leve a ser “misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc 6,36). Francisco dá-nos o exemplo, quando sem problemas mostra-se pecador e ajoelha-se num confessionário em S. Pedro. É a verdade que nos salva. “Só da verdade histórica dos factos poderá nascer o esforço perseverante e duradouro para se compreenderem mutuamente e tentar uma nova síntese para o bem de todos” [226]. E para a paz que o mundo tanto necessita. “A paz ‘não é apenas uma ausência de guerra, mas o empenho incansável – especialmente daqueles que ocupamos um cargo de maior responsabilidade – de reconhecer, garantir e reconstruir concretamente a dignidade, tantas vezes esquecida ou ignorada, de irmãos nossos, para que possam sentir-se os principais protagonistas do destino da própria nação” [233].
A conversão de corações integra o caminho de perdão e de reconciliação, “temas de grande relevo no cristianismo e, com várias modalidades, noutras religiões” [237]. É por aqui, e não pela guerra ou pela “inadmissível pena de morte” – consideradas pelo Papa como “respostas falsas” que apenas acrescentam “novos fatores de destruição no tecido da soc
iedade nacional e mundial” [255] -, que somos convidados a seguir, em conjunto com o serviço, já que este “fixa sempre o rosto do irmão, toca a sua carne, sente a sua proximidade e, em alguns casos, até ‘padece’ com ela e procura a promoção do irmão. Por isso o serviço nunca é ideológico, dado que não servimos ideias, mas pessoas” [115]. A conversão abre-nos a novas perspectivas de relação desde o amor, reconhecendo a fraternidade universal. De modo a viver esta identidade de abertura, o Papa insiste que, à semelhança de “Maria, Mãe de Jesus, ‘queremos ser uma Igreja que serve, que sai de casa, que sai dos seus templos, que sai das suas sacristias, para acompanhar a vida, sustentar a esperança, ser sinal de unidade (…) para lançar pontes, abater muros, semear reconciliação’” [278].
Fratelli Tutti é uma bela carta à humanidade actual, para ser lida com o coração disponível à transformação, deixando-se guiar pela luz que, atravessando com honestidade as sombras individuais e comunitárias, orientará para o maior respeito, cuidado, atenção, carinho, ternura, em resumo, para o maior amor pelo outro, seja quem for, que é meu, nosso, irmão ou irmã.
O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.