Francisco, o perdoador

Como muçulmano, houve coisas que me alegraram e encheram o coração: o respeito que já sabia existir por parte dos muçulmanos pelo papa cuja simplicidade, bondade e abertura ao diálogo pude comprovar quando tive a honra de o cumprimentar.

Como muçulmano, houve coisas que me alegraram e encheram o coração: o respeito que já sabia existir por parte dos muçulmanos pelo papa cuja simplicidade, bondade e abertura ao diálogo pude comprovar quando tive a honra de o cumprimentar.

Há alturas em que se faz história no decurso da nossa humanidade. Não sei se de forma voluntária ou não, mas o que é facto é que há momentos que sabemos serem para sempre inolvidáveis e que se irão eternizar, ainda na tenra experiência e adrenalina própria da ocasião que estamos a presenciar.

Estou convicto pois, que no fim-de-semana passado estivémos perante um destes momentos, que marca uma jornada incrível do primeiro Papa da história a pisar o berço da civilização, e que prometeu levar o Iraque no coração.

A viagem é tão cheia e mágica, quanto difícil de reproduzir.

Sob o magno auspício de um lema ambicioso “somos todos irmãos” e que por vezes mais parece uma miragem no horizonte humano, a concretização deste antigo sonho esteve repleta de dúvidas e incertezas e, porque não dizê-lo, críticas, considerando a terrível enfermidade da Covid-19 e porventura o momento inoportuno escolhido por Deus para a referida visita.

Mas se não agora, quando? Francisco encheu-se de coragem e mesmo correndo riscos que alguns entenderiam como excessivos, mostrou que os atos devem superar as palavras e em plena pandemia, rumou à planície de Ur, outrora morada de Abraão, patriarca de judeus, cristãos e muçulmanos.

Num apelo incrível ao perdão, a viagem é carregada de simbolismos, tais como o roteiro e os encontros, e de um júbilo notável, como constatam os cânticos, flores dos cristãos mas não só – também dos muçulmanos xiitas e sunitas, e dos yazidis.

Num apelo incrível ao perdão, a viagem é carregada de simbolismos, tais como o roteiro e os encontros, e de um júbilo notável, como constatam os cânticos, flores dos cristãos mas não só – também dos muçulmanos xiitas e sunitas, e dos yazidis.

O Papa Francisco trazia na bagagem mensagens muito fortes, sobre temas quentes como as mulheres a quem aplaude pelo facto de continuarem a dar vida não obstante os abusos e as feridas ainda abertas, o dinheiro que para o mundo vale quem tem, mas para Deus é diferente, e a negação e o combate ao estado islâmico, indo à sua base – Mossul – e oferecendo a forma de superá-lo através do perdão, e evitando a vingança.

Houve ainda lugar para três encontros de não menos importância:

i) com o ayatollah Al Sistani – que apesar da enorme influência e respeito, é um líder ascético que leva uma vida simples e pobre e raramente sai de casa, não aparece em público, nem faz discursos.

ii) com o pai de Aylan Kurdi – o jovem que se tornou no símbolo da crise dos refugiados –  a quem o Papa expressou a sua solidariedade;

iii) com Doha Sabah Abdallah, uma mulher cristã da cidade de Qaraqosh que comoveu o papa ao anunciar que havia perdoado os assassinos do seu filho;

“Como é cruel que este país, berço de civilizações, tenha sido atingido por uma tempestade tão desumana” refere o papa, lamentando a trágica diminuição de cristãos no Iraque, que representou um “dano incalculável”.

Dei por mim a pensar que esta viagem se torna um marco precisamente para que esta história de terror não se volte a repetir. Nem aqui, nem em lugar nenhum do mundo.

Dei por mim a pensar que esta viagem se torna um marco precisamente para que esta história de terror não se volte a repetir. Nem aqui, nem em lugar nenhum do mundo.

E daí o impacto brutal de algumas atitudes que pretendem repor a justiça – tais como a devolução de Sidra (nota 1), ou o reconhecimento da festa de natal como feriado nacional – pretendem, notem – pois repô-la na totalidade somente cabe a Deus.

Continuando a passar das palavras aos atos, e para os mais pessimistas, nos quais não se inclui o autor do presente texto, é imperativo assinalar que a visita pôde ser acompanhada pela televisão oficial iraquiana – e quem diria ser possível esta visita há dois anos?

É pois, com justificada alegria, que presenciei, juntamente com um amigo e irmão católico – o Pedro Gil – aquilo que classifico como um notável partipris para que esta visita fosse possível: a declaração de Abu Dhabi. Aquela, de há dois, anos, mais institucional, pomposa e altiva – embelezada por um país com uma história recente e isenta de violações dos direitos humanos e da liberdade religiosa; esta, mais simples e modesta, em bruto e com os resquícios de um país delapidado pela guerra e por lutas fratricidas.

Diz-nos o papa que “a fraternidade é mais forte que o fratricídio, que a esperança é mais forte que a morte, que a paz é mais forte que a guerra”.

Para mim, como muçulmano, houve coisas que me alegraram e encheram o coração: o respeito que já sabia existir por parte dos muçulmanos pelo papa cuja simplicidade, bondade e abertura ao diálogo pude comprovar quando tive a honra de o cumprimentar em 2018.

Houve até um irmão sunita iraquiano que lançou a prece, certamente augurado de um bom presságio “queremos que a paz desça sobre nós com a sua vinda” – julgo que este é um dos méritos obtidos pelo longo caminho percorrido pelo magistério do papa Francisco.

Diz o sábio povo que uma imagem vale mais do que mil palavras. Apreciei especialmente ver a bandeira do Iraque – tendo no seu epicentro a inscrição em árabe kufic (nota 2) do takbir (nota 3), cuja expressão é um dos reflexos máximos da nossa crença em Deus – ao lado da da Santa Sé. Sentimento semelhante senti nos Emirados, mas agora com particular calor.

As imagens desta viagem são violentas, seja no sentido positivo ou negativo.

Desde a chegada do Sumo Pontífice a solo iraquiano em pleno deserto, às flores dadas pelos meninos trajados a rigor, passando pelo papa a rezar no meio dos escombros; mas aquela que é indubitavelmente a mais marcante é o reflexo da barbárie humana: a da virgem Maria sem mãos.

Que Maria, mãe de Jesus, um sinal dado por Deus ao universo, se torne um exemplo de fé e religiosidade para todos nós.

 

Notas:

  1. Sidra é o livro sagrado da liturgia, do século XIV-XV, da cidade santa para os cristãos iraquianos da Planície de Nínive. O Papa devolveu no Iraque este livro histórico da comunidade cristã local que escapou ao Estado Islâmico e foi restaurado em Roma.
  2. A escrita kufic é um estilo de escrita árabe que ganhou destaque desde o início como uma escrita preferida para a transcrição do Alcorão e decoração arquitetónica, e desde então se tornou uma referência e um arquétipo para uma série de outras escritas árabes.
  3. Takbir é uma palavra em árabe que significa “louvor, exaltação, glorificação, magnificação, celebração”. No uso religioso, o takbīr refere-se à expressão da frase Allahu Akbar que traduzida para o português significa “Deus é Grande”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.