No mês de setembro de 1902, saía o primeiro número da revista, que começou por ser de ciências naturais. Em janeiro de 2020, com o mesmo nome, relançava-se como projeto cultural maior. No Bairro Alto de Lisboa, junto à Igreja de S. Roque, que é lugar de memória afetiva para os jesuítas portugueses, passou a ser programação cultural e galeria de arte, revista e biblioteca. Realizando-se como comunidade de vida e de trabalho, formada por jesuítas e colaboradores com diferentes formações, bastante jovens na maioria, anima um edifício histórico, abrindo-o à cidade, a quem a habita ou simplesmente passa. Promover e implicar-se no encontro e no diálogo entre a fé cristã e as culturas urbanas contemporâneas é a missão que assume.
Passados dois anos, numa carta de 24 de junho de 2022, escreveu Rui Chafes que «[…] esta comunidade/instituição soube atualizar a relação entre a Igreja Católica e a sociedade contemporânea, criando novos laços com todas as gerações, nas mais diversas áreas da cultura e do pensamento teológico, filosófico, científico, sociológico, político, artístico entre outros. O mais admirável, quanto a mim, é a capacidade de chegar a tantos públicos diversificados tendo como base um sofisticado saber e um conhecimento sólido e de raízes profundas, mantendo sempre as portas abertas e acolhendo todos os interessados de braços abertos. É desta forma que se poderá questionar e refletir sobre a essência do Mundo em que vivemos». Sabe bem ler palavras tão generosas, é certo, que confirmam e responsabilizam. Mas se as trazemos aqui – o leitor perdoará a imodéstia – é, sobretudo, por acentuarem o modo de proceder, a “forma” – “é desta forma”, pode ler-se –, que é bem mais do que um qualquer embrulho exterior e dispensável para um conteúdo abstrato e estático. Ghislain Lafont, no prefácio ao livro de Stella Morra, Deus não se cansa. A misericórdia como forma eclesial, define “forma”, neste caso eclesial, como «um conjunto, o mais possível unificado, de convicções, de ações, de sensibilidades, de leis, através das quais seja possível viver autenticamente o Evangelho». A “forma” realiza e dá uma fisionomia particular à “força” inesgotável do Evangelho, de alcance universal. Se a “força” evangélica não se identifica totalmente nem se esgota definitivamente em nenhuma “forma” cultural, que é sempre particular e contingente, também não se diz e não age sem formas culturais.
Se a “força” evangélica não se identifica totalmente nem se esgota definitivamente em nenhuma “forma” cultural, que é sempre particular e contingente, também não se diz e não age sem formas culturais.
É como presença humana que, antes de mais, a Brotéria procura realizar-se. É com pessoas concretas e realidades particulares, a partir da humanidade real, das suas buscas, linguagens e realizações, que cultiva a densidade espiritual. Continua, depois, a fazer seu o compromisso com o estudo paciente, o pensamento honesto, sem ceder demasiado à vertigem do tempo, o discernimento crítico dos movimentos de vida e de morte que assinalam a nossa humanidade comum. Deseja a disponibilidade para a liberdade do espírito profético que seja capaz, não só de compreender e de denunciar o mal, mas de pressentir o bem, não só o maior, mas o possível, e de conspirar promessas de futuro, dispondo-se a assumir o custo de tal tensão. Desta “forma”, espera dar corpo à sua identidade cristã e testemunhar, de algum modo, a “força” do Evangelho de Jesus.
A Brotéria que faz 120 anos é a realização, diversamente conseguida, do duplo propósito que vem desde os inícios «de servir a ciência e a cultura» e, através deste serviço, «de dar testemunho da verdade», segundo a formulação do P. Manuel Antunes – de outro modo, são as mesmas “formas” e “forças” que evoca. É memória grata de muitos protagonistas e vicissitudes, interpretações e realizações, etapas e reformulações. Dessa história centenária já muito foi estudado. Recorde-se, a título de exemplo, o volume coordenado por José Eduardo Franco e Hermínio Rico SJ, com prefácio de Eduardo Lourenço, por ocasião do 100º aniversário. Muito mais há para estudar. O trabalho sobre o grafismo é um dos contributos que o presente número oferece.
A celebração não quer, porém, virar-nos para o passado e para glórias que se possam destacar. Quer, antes, situar no presente e orientar para o futuro. A Brotéria assume, por isso, o desejo de empatia e de atenção ao presente. Consciente do seu avesso áspero, procura assumi-lo essencialmente como tempo favorável e promissor. Não nos parece ser ingenuidade, mas, antes, confiança evangélica no futuro da inesgotável promessa dos inícios. Quando se insinua a tentação de vacilar diante dos dramas do mundo, cabe reafirmar aquela reserva escatológica que, sem alienar, mas antes comprometendo, resgata do peso da finitude e do presente. «O Evangelho possui um critério de totalidade que lhe é intrínseco», afirma o Papa Francisco. «O todo é superior à parte» (Evangelii gaudium n.237).
Deseja a disponibilidade para a liberdade do espírito profético que seja capaz, não só de compreender e de denunciar o mal, mas de pressentir o bem, não só o maior, mas o possível, e de conspirar promessas de futuro, dispondo-se a assumir o custo de tal tensão.
Recordávamos antes que promover o encontro e o diálogo entre a fé cristã e as culturas urbanas contemporâneas e implicar-se neles é a intencionalidade e o programa atual da Brotéria, portanto, também da revista. No editorial do número que abria este ano de celebração, o de janeiro de 2022 (vol. 194-1), a que demos o título “A graça supõe a cultura”, procurámos enunciar o essencial de como entendemos a relação fé-cultura. Aqui, queremos sublinhar como o encontro e o diálogo exprimem uma opção deliberada. Ao promovê-los, a Brotéria não tem como não implicar-se neles, assumindo a honra e o ónus.
Se é verdade que o encontro e o diálogo podem ser palavras fáceis de enunciar, acusadas de serem de tom político e religiosamente correto, em última instância, inconsequentes, a Brotéria assume-as como práticas que realizam o mais elementar da humanidade que partilhamos, mas também um traço íntimo da identidade cristã que professamos. Por isso, ao fazê-lo, não esconde ou baixa o nível da sua identidade, como se cedesse a modas culturais ou a caminhos supostamente menos exigentes. Compreende-as e abraça-as como lugares e processos de realização da graça e do custo da própria identidade cristã. Dito de outro modo, é porque se assume como lugar e projeto cristão que a Brotéria se expõe ao encontro e ao diálogo, umas vezes desejados e procurados, outras vezes imprevistos e desconfortáveis, tendo consciência e assumindo o risco que implica qualquer exposição. Quem se expõe, faz sair de si algo que põe diante de outrem. Por isso, como se diz vulgarmente, põe-se também a jeito. Pode ser ignorado, pode ser incompreendido, pode ser rejeitado. Na exposição que o encontro e o diálogo implicam, fruto e risco vão juntos. Não há como evitar o custo – a morte, se quisermos – dessa graça que eleva pela inclinação. Em linguagem teológica cristã, sabe, na verdade, que de um caminho pascal se trata, de vida, portanto, à qual se acede pelo caminho mais longo que é o outro: o outro diferente – nas Escrituras hebraicas e cristãs é o “estrangeiro”, em relação a quem há o dever da hospitalidade na própria casa; ainda mais radicalmente, o outro que se nos opõe, o “inimigo”, o confim mais extremo, a gratuidade mais radical do mandamento do amor.
Por ser assim, seria insuficiente que nos encontrássemos apenas com quem achamos que, à partida, é dos nossos ou que dialogássemos somente com quem pensa como nós, a quem sabemos que vamos confirmar e por quem seremos confirmados – quando a Brotéria se apresenta como casa de portas abertas, é para esta abertura arriscada que está a apontar. Rompendo a bolha fechada e protetora da autorreferencialidade e da autocelebração, a liberdade evangélica leva-nos forçosamente mais longe na hospitalidade, na disponibilidade para nos deixarmos interpelar e pôr em causa, na eleição de interlocutores, na implicação em encontros exigentes sobre temas difíceis. Encontrarmo-nos numa galaria de arte ou dialogarmos sobre literatura pode não ser garantidamente linear nem pacífico, reconhecendo que há tanto por redescobrir e refazer na relação entre criação artística contemporânea e Igreja. Ainda assim, expomo-nos ainda mais quando, assumindo convicções, mas com a abertura do “pensamento incompleto”, sem espírito de conquista nem diluição por desistência, nos encontramos em debates sobre temas como aqueles que dizem respeito, por exemplo, ao início e fim da vida, à moral sexual ou a políticas económicas. Promover e implicar-se no diálogo entre a fé cristã e as culturas coloca a identidade no campo honesto e, por isso, exigente e arriscado da exposição recíproca e do enriquecimento mútuo. Se há quem rejeite encontros sem garantias prévias e se furte a diálogos honestos, mesmo dentro da Igreja, não é dessa forma que queremos estar.
Rompendo a bolha fechada e protetora da autorreferencialidade e da autocelebração, a liberdade evangélica leva-nos forçosamente mais longe na hospitalidade, na disponibilidade para nos deixarmos interpelar e pôr em causa, na eleição de interlocutores, na implicação em encontros exigentes sobre temas difíceis.
A prática do encontro e o exercício do diálogo, como laboratórios performativos que são, fazem com que a verdade evangélica e a identidade cristã não se esgotem em determinados enunciados declarativos ou “valores identitários”, aliás, facilmente manipulados por interesses políticos estranhos às próprias razões da fé cristã. Como práticas que são, implicam a procura inteligente de instrumentos expressivos e performativos que ajudem a amadurecer significados e formas de pertença que estejam à altura de dizerem e de realizarem existencial e culturalmente a força do Evangelho. O encontro e o diálogo põem, por isso, a verdade evangélica mais do lado da ação do que da declaração, mais do lado da prática do que da definição. Pelo reconhecimento do outro, como caminho promissor para compreender mais plenamente quem se é, abrem espaços de respiro e de fecundidade entre quem se encontra. O que acontece – chamemos-lhe graça – não aconteceria sem aqueles que se encontram. Quando acontece, é bem mais do que o mínimo denominador comum ou a somas das partes.
Com algum temor e tremor, pela exigência da exposição, que, se é honesta, não pode controlar à partida os interlocutores, os processos e os frutos, é pelo caminho do encontro e do diálogo que a Brotéria se quer compreender e é por ele que procura realizar hoje a sua missão. Move-a a urgência epocal de cultivar empaticamente, de forma crítica e discernida, a verdade da nossa humanidade comum, de promover relações justas entre pessoas, comunidades, instituições e povos, e também modos justos de vida, também pelo dever ético de deixar em herança uma casa habitável às gerações vindouras.
Quando, no dia 19 de maio de 2022, o Papa Francisco se encontrou, em Roma, com os diretores das revistas culturais europeias da Companhia de Jesus começou por afirmar que «a missão de uma revista cultural é a de comunicar», mas a de comunicar, frisou, «com a realidade e com as pessoas, com o “face a face”». E explicou o sentido: «com isto quero dizer que não basta comunicar ideias: não é suficiente. Importa comunicar ideias que provenham da experiência. Isto, para mim, é muito importante. As ideias devem resultar da experiência». Depois, acrescentou: «as ideias podem discutir-se. A discussão é algo bom, mas, para mim, não é suficiente. É a realidade humana que pode ser discernida. O discernimento é o que realmente conta», o discernimento dos conteúdos e das linguagens e que se comprometa com a ação. Porque, «quando se entra no mundo das puras ideias e nos afastamos da realidade, acaba-se no ridículo». Importa, por isso, «trabalhar sobre a realidade, que é sempre superior à ideia». É ela que toca, que comove e que põe em movimento. E, «se a realidade é escandalosa, melhor ainda».
Dois anos antes, em janeiro de 2020, num bilhete escrito à revista italiana La Civiltà Cattolica, por ocasião do seu 170º aniversário, o Papa Francisco exortava: «fazei discernimento das linguagens, combatei o ódio, a mesquinhez e o preconceito. Sobretudo, não vos contenteis com fazer propostas de remendo ou sínteses abstratas: pelo contrário, aceitai o desafio das inquietações transbordantes do tempo presente, nas quais Deus está sempre a agir». Segundo a interpretação da redação da revista, Francisco estava a pedir que não se domesticassem as inquietações, mas, antes, se lhes desse respiro, se compreendessem e se discernissem, «sem optar por soluções fáceis e prêt-à-porter, que apaguem o Espírito, aquele mesmo que move e origina algumas dessas mesmas inquietações».
O que o Papa Francisco confiou à La Civiltà Cattolica, nossa irmã mais velha, a revista Brotéria acolhe-o como dito a si mesma, neste momento em que faz memória grata de 120 anos e, dentro do que lhe é específico, se relança na missão de favorecer encontros e de se implicar no diálogo entre a fé cristã e as culturas contemporâneas.
TRÊS DIAS DE PROGRAMAÇÃO ESPECIAL
Para celebrar este aniversário em tom de festa e de respeito pelo passado, a Brotéria preparou uma programação especial para 15, 16 e 17 de setembro, na qual espera poder juntar amigos novos e antigos. Todos são bem-vindos! Conheça aqui a programação dos três dias de festa. Nos dias 15, 16 e 17 de setembro, nesta casa no Bairro Alto, celebra-se a muitas vozes: uma oficina com a escritora Djaimilia Pereira de Almeida, uma conversa com moderada por Paula Moura Pinheiro com Fernanda Fragateiro, a partir do seu ensaio visual no número comemorativo da Revista Brotéria e um almoço em conversa com Sara do Ó, fundadora do grupo YOUR, que junta economia e cultura.
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* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.