Pascual, é, desde há alguns meses, o postulador geral da Companhia. O que o significa isto? Qual é o seu trabalho?
“Postulador” significa “o que pede algo”. O que pedimos é que se abram, avancem e se terminem as causas de beatificação e canonização dos jesuítas e de alguns não jesuítas que acreditamos valerem a pena. Temos cerca de 80 causas em movimento, a maioria de jesuítas: uns relativamente recentes, outros de há 200, 300 anos. Eu coordeno o trabalho dos que trabalham nesses processos, tanto na fase diocesana, primeiro, como quando chegam à Congregação para as Causas dos Santos.
Em julho, o Padre Geral anunciou o início desse processo para o Padre Arrupe. O que se está a passar?
Começámos por fazer um inquérito, sobretudo entre a vida religiosa, para saber se o Padre Arrupe era considerado digno de se abrir uma causa. A resposta foi positiva. Portanto, a causa está iniciada, pois já nos foi dada luz verde no Vicariato de Roma, mas ainda não oficialmente aberta porque há uma “sessão de abertura”, geralmente pública, que queremos que aconteça junto à data da sua morte, 5 de fevereiro. Temos vários meses de trabalho pela frente para que em fevereiro se possa anunciar publicamente que o tribunal está pronto para receber declarações das testemunhas e, portanto, avançar o processo diocesano.
Como funciona? Recolhe-se informação, chamam-se testemunhas?
Numa causa há sempre dois elementos. Por um lado, temos as testemunhas, e neste caso pediram-nos cerca de 120 (normalmente são 40), por ser uma pessoa universal, que viveu em vários lugares e teve responsabilidades na Igreja. Devem ser 40 jesuítas, 40 leigos e 40 eclesiásticos, para que não haja uma maioria de jesuítas. A ideia é procurar, da maneira mais objectiva possível, a verdade da pessoa que acreditamos ser digna de ser beatificada. Por outro lado, temos os documentos. Vão ser recolhidos todos os escritos publicados, editados e assinados pelo Padre Arrupe: em particular todos os documentos dos 18 anos do seu generalato, todos os livros e artigos que tenha escrito. Estamos agora a elaborar uma bibliografia com mais de 60 páginas de títulos. Tudo isto terá de ser lido por uma comissão de censores teológicos, para verificar que o Padre Arrupe não escreveu nada contra a fé e os costumes. Além da documentação já publicada, ele escreveu muitas outras coisas, como cartas, diários, homilias, escritos pessoais. Tudo tem de ser visto, e no caso de Arrupe é muita coisa. Tudo vai ser lido por uma comissão histórica, formada por cinco historiadores e arquivistas, que escreverá um relatório que fale da espiritualidade, da personalidade do Padre Arrupe, bem como do contexto, sobretudo eclesial, em que viveu.
O que pedimos é que se abram, avancem e se terminem as causas de beatificação e canonização dos jesuítas e de alguns não jesuítas que acreditamos valerem a pena. Temos cerca de 80 causas em movimento, a maioria de jesuítas: uns relativamente recentes, outros de há 200, 300 anos.
Qual a expetativa para o desenvolvimento deste processo? O que é que o deixa mais animado e que dificuldades espera?
O único juiz do processo será o Papa. Nós fazemos a preparação para esse juízo que o Papa dará, assinando o decreto, primeiro de “venerável”, com o “decreto sobre as virtudes”, e depois de “beato” e “santo”.. Mas este é um caminho imprevisível, no tempo que possa durar, na documentação que possa ser encontrada… Também não controlamos as testemunhas! Temos que as escolher, incluindo quem teoricamente poderia dizer coisas críticas da sua figura, sobre o seu governo, o trato com a Santa Sé, etc. Nos anos 70 e 80, houve grandes tensões na Igreja, após o Concílio, também entre a Companhia e a Santa Sé. É previsível que, além de toda a documentação e informação, alguma coisa possa aparecer pela boca das testemunhas. A verdade é que, numa causa de beatificação, não é julgado o governo das pessoas que tiveram relevância política na Igreja. Papas como Pio IX ou Pio X, beatificados e canonizados, são, sem dúvida, questionáveis em aspetos do seu governo. Mas não é um julgamento sobre o governo, é sobre a pessoa e a sua santidade. Em relação ao Padre Arrupe, pode haver diferenças de critérios, de opinião, se num determinado momento agiu melhor ou pior… Mas o que se vai julgar é o centro humano e espiritual da pessoa. Estamos convencidos de que ele é tão extraordinário – não como figura social ou eclesial – na sua religiosidade, na sua santidade pessoal, que não temos medo do que virá. O que se vai redescobrir é a extraordinária qualidade da sua união com Deus, do seu amor a Jesus Cristo e à Igreja.
Já se falava há muito da possibilidade deste processo. Porque se iniciou agora?
Ao contrário do que alguns pensam, não vamos aproveitar o facto de o Papa ser jesuíta. Mas estamos num bom momento para iniciá-lo porque já passou algum tempo do Concílio, porque ele já morreu há quase 28 anos. É um momento para as coisas serenarem, para que se vejam com maior objetividade. E ainda estão vivas muitas pessoas que o conheceram, e que queremos entrevistar. Antes disto, devido à proximidade dos acontecimentos, não se quis avançar. A sondagem junto dos religiosos, de gente da vida religiosa que não é jesuíta, deu-nos a oportunidade de avançar. Por outro lado, o delegado do bispo com quem vamos trabalhar pediu-nos imediatamente as cartas postulatórias: breves textos, dirigidos ao Papa, geralmente escritos por bispos, cardeais, pessoas relevantes, eclesiásticas ou leigas, para pedir que se inicie uma causa. Fizemos um pedido a 30 pessoas de todo o mundo e estamos a aperceber-nos, com tudo o que há de elogios à pessoa de Arrupe, do papel que desempenhou no pós-Concílio. Por exemplo, como ele tratava as pessoas, como escutava, como confiava.O Padre Kolvenbach chamou-o “profeta da renovação conciliar”, pela forma como alinhou ao lado do Concílio Vaticano II e foi em frente, com todas as incertezas que isso podia causar, com grande valentia e coragem, confiado no Espírito Santo. Era uma pessoa extremamente espiritual, com um amor pela Trindade que lhe saía por todos os poros. Ao ver estas pessoas, não jesuítas, a elogiar o seu modo de proceder, isso encoraja-nos ainda mais. No fundo, todo o processo, desde que começa até ao fim, ao longo de vários anos, é um caminho de discernimento da Igreja para ver se o Padre Arrupe pode ser um bom mediador, como beato ou santo, entre nós e Deus.
Pode haver diferenças de critérios, de opinião, se num determinado momento agiu melhor ou pior… Mas o que se vai julgar é o centro humano e espiritual da pessoa. Estamos convencidos de que ele é tão extraordinário – não como figura social ou eclesial – na sua religiosidade, na sua santidade pessoal, que não temos medo do que virá.
Como é que os jesuítas e a Companhia vivem este processo?
Muito bem. As pessoas que conheceram Arrupe – eu tive a sorte de o ter visto algumas vezes – especialmente durante as suas viagens, as gerações mais velhas, estão realmente comovidas. Isto foi comprovado pelo Padre Geral quando, há uns meses, anunciou, em Bilbao, de um modo um pouco mais definitivo, que íamos começar a causa. A reação foi de uma alegria comovida pois o Padre Arrupe significou e continua a significar muito para elas. As gerações mais jovens também receberam essa herança do Padre Arrupe. Os mestres de noviços falaram dele, deram-lhes os seus textos a ler, os instrutores da terceira provação também. Por isso, também nestas gerações há uma reação muito positiva. Outro sinal que fala dessa continuidade, da fama que chamamos de santidade, desse odor de santidade, é a quantidade de comunidades, obras, centros, lugares e experiências (o mês Arrupe, por exemplo, aqui em Roma) que têm o seu nome. Vamos fazer uma lista e há centenas, estamos certos. Esta é uma prova de como, durante muitos anos, a pessoa do Padre Arrupe esteve presente e de que a ele se teve devoção.
Disse que o Papa Francisco não está implicado no processo, mas Arrupe era Geral quando Bergoglio foi Provincial e os dois coincidiram no governo da Companhia, num tempo difícil. Sabe-se como era a relação entre os dois? Como puderam influenciar-se um ao outro?
É curioso porque, a propósito disso, já me disseram: “Se o Papa conheceu o Padre Arrupe há muito tempo, por exemplo na Congregação 32, o Papa poderá prestar declarações como testemunha”. O Papa não pode fazer isso, porque é o último, o juiz, e não pode fazer as duas coisas. Seja como for, sabe que começámos esta causa e sabemos que concorda que a Companhia de Jesus possa iniciá-la. Na viagem que fez ao Chile e ao Perú, o Papa, de certo modo, falou sobre a sua relação com Arrupe, não no seu aspeto pessoal, mas no que representou o seu generalado. Aí falou aos jesuítas da graça do generalato do Padre Arrupe, explicou como este quis redescobrir, para os jesuítas, a espiritualidade inaciana: organizou em Roma o Centro de Espiritualidade Inaciana, fomentou o discernimento pessoal, o discernimento em comum. Algo que para nós hoje é “moeda corrente”, mas que não o era nos anos 60. Quis que se avançasse no estudo de outros textos inacianos, como as Constituições, o Diário Espiritual, etc. Essa graça do generalato de Arrupe de que fala o Papa significa que ele o considerou como alguém que, num dado momento, aceitou redescobrir para a Companhia uma fonte de vigor e identidade tão importante como são as principais fontes de Santo Inácio e dos primeiros companheiros.
No próximo ano, o Papa irá ao Japão. Crê que possa influenciar a causa do Padre Arrupe? Que impacto pode ter na Igreja japonesa?
As testemunhas que teremos, bem como a documentação, estão basicamente em três lugares: em Espanha, onde nasceu e viveu os primeiros anos; no Japão, onde viveu os seus anos como missionário; e na Itália. No Japão, há muito tempo que existe uma associação de não jesuítas que rezam pela sua beatificação. Até publicaram vários volumes de livros com textos seus, em favor da beatificação. Ainda agora, uma religiosa da Companhia de Maria, Maria Dolores Lasheras, que foi Superiora Geral do instituto e viveu no Japão, escreveu um livro que o provincial de Espanha ofereceu às comunidades jesuíticas do país. Ou seja, no Japão estão as suas pegadas, não as do Geral, mas do Provincial. Alguém que se movia pelo mundo à procura de fundos, de pessoas, de jesuítas, para irem trabalhar na Província.
Vamos ajudar a que esta devoção ao Padre Arrupe, que já existe, possa crescer e difundir-se. E recolher os testemunhos de pessoas – que até agora, quase não o tinham feito em público – que tenham pedido favores, graças, há até mesmo quem fale de um possível milagre pedido há tempos ao Padre Arrupe.
Um Papa nunca se pode manifestar, de modo especial e espontâneo, sobre este tipo de situações porque, no final, é ele que vai julgar o processo. Mas tal como o fez na América do Sul, é muito provável que tenha algumas palavras sobre o Padre Arrupe. Especialmente sobre o tempo da bomba atómica de Hiroshima, em que Arrupe acolheu tantos feridos no noviciado e – uma vez que tinha estudado medicina – os operou com os instrumentos de que dispunha e com a ajuda dos noviços, muitos quase a morrer. Ele transformou o noviciado num hospital, precisamente esse hospital de campanha de que tanto fala Bergoglio, e que podemos ver nesse episódio tão doloroso e duro. A partir daí, o Padre Arrupe viveu muitas situações difíceis, nos Estados Unidos, por exemplo, onde foi acusado e preso por alguns dias. Foi nessa altura que, consciente da dor do mundo, do seu sofrimento e injustiça, fundou o Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS), para lutar pela justiça, a defesa e promoção de uma vida boa para os refugiados. Por tudo isto, se o Papa vai lá, é muito provável que o recorde com gosto e carinho. E isso será também um estímulo para a própria causa.
Para terminar, uma pequena provocação: o que podemos fazer nós, jesuítas e amigos dos jesuítas, para ajudar a causa do Padre Arrupe?
Em geral, nós jesuítas, para fazermos coisas muito pequenas e quotidianas de tipo devocional, somos bastante sóbrios…Quando há uma congregação religiosa feminina que vai canonizar ou beatificar o seu fundador, desde o início que move tudo, cria um site muito organizado, publica pagelas em todos os lugares, para difundi-lo… Nisso vamos um pouco mais devagar. Além de que o trabalho que temos de fazer é muito grande, com os textos, as testemunhas. Mas obviamente, vamos ajudar a que esta devoção ao Padre Arrupe, que já existe, possa crescer e difundir-se. E recolher os testemunhos de pessoas – que até agora, quase não o tinham feito em público – que tenham pedido favores, graças, há até mesmo quem fale de um possível milagre pedido há tempos ao Padre Arrupe. Pedimos, portanto, para nos enviarem qualquer indício que haja. O que podemos fazer é encorajar esta devoção. Isto supõe que, também para nós, seja uma ocasião para reler os seus textos, rever a sua vida, rezar as suas orações. A figura do Padre Arrupe, da sua atividade no Japão até à sua passividade em Roma, pode animar e revigorar-nos, tanto os jesuítas como os não jesuítas.
Entrevista editada por Ponto SJ.
Tradução de P. António Santana, sj
Fotografias de P. António Ary, sj
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.