Os abusos de menores e/ou adultos vulneráveis, em contexto da vida da Igreja, ocuparam a atenção mediática a nível mundial e provocaram autênticos terramotos em realidades distintas, desde grandes dioceses até pequenas e aparentemente pacatas paróquias. A “tolerância zero”, que o Papa Francisco imprimiu a esta realidade, foi desejada e acarinhada por muitos e desdenhada e criticada por muitos outros.
Na base da crítica à decisão do Papa estavam enraizadas as certezas de que estas eram histórias inventadas, inexistentes, fruto de uma perseguição à Instituição; mais tarde, e perante denúncias não confirmadas, surgiu a revolta das vidas estragadas de sacerdotes, que nunca mais conseguiriam viver, sem o anátema da suspeita de um crime hediondo.
Na base das palmas à coragem do Papa Francisco, muitos viram a possibilidade do exercício da justiça, o fim do caráter de exceção no tratamento dos homens de Deus e, certamente também para muitos, aquele sentimento de desforra, que não se verbaliza facilmente, mas que tantos sentem em relação à Igreja: “agora é que vão ver” …
Cada sociedade tem a sua história, repleta de verdades conhecidas e de segredos guardados, de pecados e de virtudes. E se a verdade nos valoriza, encontramos formas de a anunciar. Mas se o segredo nos incomoda, encontramos formas de o esconder o melhor possível ou de o desvalorizar, mesmo que publicamente.
Cada sociedade tem a sua história, repleta de verdades conhecidas e de segredos guardados, de pecados e de virtudes. E se a verdade nos valoriza, encontramos formas de a anunciar. Mas se o segredo nos incomoda, encontramos formas de o esconder o melhor possível ou de o desvalorizar, mesmo que publicamente. Não é uma fatalidade, mas antes a contestação da realidade.
Também acredito que para uma imensa maioria, o desejo verdadeiro foi sempre o de que tudo terminasse depressa, porque este é um tema em relação ao qual ninguém gosta de falar. Ao mesmo tempo, existe a consciência de que a prevenção dos abusos só conseguirá ser eficaz se o tema não cair no esquecimento e, assim, conseguir chegar à vida das famílias e de tantas estruturas que compõem a nossa vida social, onde – todos o sabemos – acontece a larguíssima maioria dos casos de abusos sexuais.
No nosso país, tranquilo, de bons costumes e tradições, a questão dos abusos no contexto da vida da Igreja teve consequências tão diversas como a constituição de Comissões Diocesanas ou o aparecimento de formações de prevenção, como não havia memória em Portugal. Mas o carácter de urgência, que a tantos permitiu acalentar a esperança de conseguirmos atingir a tolerância zero que o Papa traçou, precisa de não se esvanecer… é verdade que aconteceram primeiras páginas nos jornais, trabalhos de investigação em diferentes órgãos de comunicação social, mais ou menos fundamentados. Surgiram acusações, decisões de afastamento, julgamentos, processos arquivados por culpas não provadas. Poucos. Muitos de nós queremos acreditar que estes «poucos» podem traduzir a pouca relevância deste drama no seio da Igreja Católica Portuguesa, nomeadamente no contexto da vida dos seus sacerdotes e leigos empenhados na vida da Igreja.
Mas. Aparecem sempre os, «mas» quando mexemos nas areias movediças dos fundos lamacentos de tudo o que se faz às escondidas. E nestes ganha forma e força a questão dos comportamentos.
Falo da realidade dos comportamentos que escapam às linhas da moralidade que permite a construção de uma sociedade que distingue o bem do mal. A realidade dos comportamentos que escapam à moral da Igreja, assente nas palavras de Jesus, dos seus Apóstolos e dos documentos que a Igreja produziu ao longo dos séculos. A realidade dos comportamentos que escapam à listagem de virtudes que somos convidados a alcançar, acreditando no encontro pessoal com Deus, numa eternidade que sendo mistério, é certeza para milhões de crentes.
E se muitos casos de possíveis abusos são arquivados – em função da falta de provas – já não se pode dizer o mesmo sobre determinados comportamentos, no contexto da vida em Igreja. Quando se encontram sinais padronizados, traços de personalidade ou linhas de comportamento desta ou daquela pessoa, sacerdote, leigo ou consagrado, homem ou mulher, a obrigação da denúncia deveria ser igualmente urgente.
Quando se encontram sinais padronizados, traços de personalidade ou linhas de comportamento desta ou daquela pessoa, sacerdote, leigo ou consagrado, homem ou mulher, a obrigação da denúncia deveria ser igualmente urgente.
Estou cada vez mais convicta de que a tolerância zero não se deve aplicar apenas a atos provados de abuso sexual. A tolerância zero deve ter uma amplitude de atitudes e comportamentos que nos devem interrogar e exigir alguma forma de intervenção. Há imoralidades que não configuram «abusos» no campo da sexualidade e do poder, mas que precisam igualmente de ser levadas a sério porque a moral cristã nos pede para irmos mais longe. Precisamos de ir à raiz dos comportamentos que ofendem a dignidade de uma pessoa e que desacreditam a dimensão da fidelidade, da castidade e da humanidade que a condição de cristão propõe com carácter identitário.
É verdade que no caso da graça do sacramento da Reconciliação existe uma realidade que em tudo nos ultrapassa. A confissão sincera e arrependida de determinado comportamento acontece, na certeza do perdão extraordinário e amoroso de um Deus que é Pai e que não impõe limites ao Seu perdão.
Acreditando neste mistério de que Deus perdoa os nossos pecados, dando-nos uma renovada capacidade de recomeçar e recomeçar, pode acontecer que determinados comportamentos repetidamente perdoados, permitam a muitos, andar de cabeça erguida por entre a vida de outros. Até porque «que atire a primeira pedra quem nunca pecou» quase conseguimos ouvir dentro de nós, quando paramos para pensar neste tipo de questões. Mas para quem não tem Fé, perante esta ou aquela história imoral, este e aquele vício escondido, tudo segue para a soma da lista das hipocrisias que tantos apontam à Igreja Católica.
Bem sabemos que no direito civil se defende a presunção de inocência em qualquer situação de acusação, assim como existe a convicção de que é preferível um criminoso à solta a um inocente na prisão. Mas enquanto crente e sem qualquer sentimento de superioridade ou de falsa moralidade, quero acreditar que possam existir outras convicções, igualmente legítimas e que nos questionem. Uma das que mais me faz pensar é a do encontro pessoal, face a face com Deus, na eternidade anunciada por Jesus. Qual será o valor de uma acusação errada ou um perdão imerecido, em relação a comportamentos que temos ou que conhecemos? Pensamentos que me inquietam, na minha tão frágil humanidade. Só sei que precisamos da verdade. A verdade no testemunho de vida que todos damos e somos, a verdade nas consequências que resultam desse mesmo testemunho.
Sem Amor não somos nada. Mas sem verdade seremos sempre muito pouco, quase nada.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.