Tropecei algures, não sei onde, com uma expressão feliz de crítica religiosa: “os empanturrados”. Olhando à minha volta e até na minha história pessoal, dentro da Igreja, reconheço com nitidez estas insinuações.
A dose, a intensidade e a colocação da “coisa religiosa” merece constante resignificação na vida de cada crente. Sem uma lucidez crítica apurada, facilmente caímos em dois lugares extremos que representam, ambos, um não encontro: ou nos desiludimos, ou nos empanturramos.
Convoco duas analogias que me foram trazidas pelo jesuíta Javier Melloni, não sei se em segunda, se em primeira mão, para explicitar a minha colocação: a analogia do copo e do vinho e a analogia do caminho e do veículo.
O copo e o vinho. Segundo esta analogia, o essencial espiritual representa o vinho. Note-se que o vinho é bom, perfumado, saboroso, valioso e dom (fruto do trabalho, também…). As religiões seriam o copo, por onde se pode tomar o vinho, com valor adicional de eficácia. Os copos, porém, valem pelo potencial de conter e partilhar o vinho, não por si. São diversos nas formas, feitios, cores, mas apresentam uma função em si própria louvável, que é a de serem disponbilizadores de vinho. Há uma certeza humilde que o copo deveria ter (perdoe-se-me a personificação): o copo não é nem a fonte nem o vinho!
O caminho e o veículo. Nesta analogia, o caminho, desde logo comum e não exclusivo de ninguém, é o trilho onde se pode progredir. Este caminho é feito de estações de encontro e constitui, em si mesmo, também teleologicamente, o Encontro. O veículo, mais uma vez com potencias de utilidade e favorecimento, ajuda a caminhar. As religiões, bem entendido, são veículo e não são caminho, não lhes cabendo, portanto, qualquer espaço nem tribal nem endogâmico. Se convém cuidar do veículo? Sim, fazer as revisões, estimar e não estragar desnecessariamente. Mudar o óleo, evitar a corrosão. Mas que se cuide do veículo para ele andar e, já agora, de forma inclusiva, para ser o veículo do nós e não o meu veículo. Todos conhecemos os endeusadores de automóveis, às vezes de coleção: estão polidos, expostos e protegidos… mas progridem pouco, valendo mais para serem vistos do que para caminhar. Há também carros que optaram por se preservar das agressões externas, quiseram ser defendidos e resguardados. Ficaram parados, não fazem caminho e mais parecem sucata…
O cerne do equívoco prende-se com a clarificação do que é central e do que é periférico. Com alguma clareza, observo na lide religiosa quem toma como central as formas, as normas, as roupagens e as exterioridades.
Ambos os cenários analógicos, como se vê, apresentam forte potencial ecuménico e inter-religioso mas são, simultaneamente, as estradas da própria identidade cristã, cuja marca tem em si própria a porosidade radical de quem não tem fronteiras. Quem coloca o tónus no copo escolhe lutar pela sua posse, enquanto o vinho é diálogo. Quem se polariza no veículo foca-se em defender(-se), enquanto o caminho é rasgada oferta.
Na linguagem analógica acima podemos perceber bem os dois extremos típicos já aludidos: os que com alguma ingenuidade optam por aceder ao vinho sem copo ou que caminham sem veículo (concedendo-se que algum vinho beberão e alguns passos andarão); e os que, em reduto fundamentalista, que não é nem fundamental nem radical, endeusam os copos e esquecem o vinho, puxam o lustro ao veículo, mas mantem-no estático.
O cerne do equívoco prende-se com a clarificação do que é central e do que é periférico. Com alguma clareza, observo na lide religiosa quem toma como central as formas, as normas, as roupagens e as exterioridades. Essa (pesudo)segurança fecha, enrijece e, não raras vezes, é bafienta a até apodrece. Se, pelo contrário, o centro for a fé, a crença vivida num Deus que só ama e cria e a misericórdia com que, também por nós, se verte no mundo, resulta em abertura, respiro, leveza… vinho e caminho.
O contrário do indesejável moralismo não é a amoralidade. Os que trabalham para se centrar e recentrar atenta e comunitariamente no núcleo amoroso da fé não desprezam as roupas com que nos precisamos de vestir, mas estão conscientes da secundariedade das formas, dos ritos e dos normativos. Estes só servem se colorirem o fundamento primeiro do amor a Deus e ao próximo. Jesus de Nazaré parece ser, a este nível, inspirador…
Perguntei-me, por simetria, se haveria “empanturrados de Deus”. A minha conclusão é que Deus não deixa que d’Ele nos empanturremos. Há um lado na relação com a transcendência que é da ordem do “quanto mais melhor”. Mas esse salto místico, paradoxalmente, deixa-nos sempre não possuidores e, pelo contrário, expostos com entusiasmo à novidade e à alegria interior, com as suas consequências relacionais soltas e promotoras. Mais ainda, essa overdose com o Totalmente Outro, dentro de nós e em toda a parte, alimenta-se da não palavra, num silêncio que não ocupa espaço de sobrelotação. A nossa religiosidade, portanto, ou serve essa mística aberta vivida… ou empanturra…
Fotografia de Paul Robert – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.