Nestes dias tão duros e ao mesmo tempo tão bonitos, tenho-me recordado várias vezes de um episódio a que assisti há uns anos. Uma senhora já de idade avançada queixava-se ao pároco das inúmeras coisas que tinha para fazer. Com uma enorme sabedoria e alguma graça, este respondeu-lhe: “Dê graças a Deus e aproveite ter muitas coisas para fazer. Porque, se um dia, Nosso Senhor vir que já não tem nada para fazer cá leva-a.”
Esta história tem-me vindo à oração nesta despedida do Zé Maria e, confesso, trazido alguma consolação. Pode até parecer ofensivo dizê-lo assim, depois de tantos testemunhos sobre a forma como tocou a vida de tanta gente e dos lamentos sobre a enorme falta que nos irá fazer. Sentimos que o Zé Maria tinha ainda imenso para dar ao mundo, à Companhia, à Igreja, a cada um de nós, com as suas palavras tantas vezes proféticas, o seu olhar crítico e esperançoso sobre o mundo e a Igreja, a sua escuta atenta e calorosa, a sua gargalhada sentida e alegre, o seu abraço apertado e acolhedor, onde todos parecíamos caber. Certamente que iria viver com a mesma intensidade todos os anos que Deus lhe desse, mas aos 48 anos, e vivida uma vida plena de entrega à missão, acho que podia dar-se ao luxo de dizer que tinha feito tudo aquilo que desejava fazer.
Acima de tudo, como já foi dito várias vezes nos últimos dias, creio que o Zé Maria morreu numa fase da vida particularmente feliz. Estava verdadeiramente animado com a sua missão em Évora, e falava da peregrinação que estava a organizar ou da GVX que acompanhava com o mesmo entusiasmo e responsabilidade com que anteriormente o vira ir à televisão falar para milhares de pessoas. Nas pequenas e nas grandes coisas, em tudo, amar e servir.
Sentia-se profundamente pacificado com a justiça que via surgindo de alguns dos temas internos à Companhia que mais sofrimento lhe causaram nos últimos anos. A saída do Gabinete de Comunicação também lhe permitira alcançar uma serenidade e paz das quais gozava agora plenamente. Apesar da pressão, do cansaço e da exigência do lugar da comunicação, o Zé Maria adorava o que fazia, sabia que o fazia bem – como ninguém – e foi com enorme desprendimento e abnegação que aceitou deixar de o fazer. Como já deixou escrito há dias o seu grande amigo João Paiva: “A humanidade de um criador que se permite deixar a obra criada é a mais explícita vivência da indiferença inaciana que, neste particular, encarnou com seriedade.”
Apesar de não ter sido o sonhador do Ponto SJ – isso devemo-lo a outros jesuítas – o Zé Maria foi o arquiteto deste sonho e coube a ele dar-lhe vida. Foram anos muito intensos de debate interno, de aprender fazendo, rezando, intuindo, ousando, sem medos e com muita criatividade, e o Zé Maria sentia um orgulho enorme na obra criada, mesmo quando esta lhe trazia dissabores. O mestre desta obra que o tempo viria a confirmar tão necessária ensinou-me a radicalidade e a coragem do diálogo e da moderação, a abertura de espírito e o pensamento crítico, a fecundidade de habitar um espaço em tensão, incompleto e inacabado. Éramos uma boa dupla, alguém me disse há dias, com todas as imperfeições e divergências que fomos aprendendo a acomodar, acrescento. Acima de tudo unia-nos uma profunda amizade. Com ele aprendi duas coisas essenciais: a liberdade interior e a tensão como lugar possível para edificar o Reino. E, claro, a dar a vida por uma boa conversa.
Recordo com particular alegria o entusiasmo com que participou no 5.º aniversário do Ponto SJ, em 2023. Ali estava a sua obra e, apesar de já não fazer diretamente parte dela, penso que o descansava saber que esta prosseguia a sua intuição.
O seu lugar único na comunicação da Igreja e, por conseguinte, o lugar da Igreja no espaço público ficou por preencher quando deixou de ser porta-voz da Companhia e de falar em conferências e nos órgãos de comunicação social, algo que fez sempre com moderação, abertura, simplicidade e profundo respeito pelos outros. Mas mesmo já longe da ribalta, soube fazer escola, inspirar outros e semear neles o desejo de continuar a levar o Evangelho às periferias. Prova disso foi o trabalho desenvolvido na Jornada Mundial da Juventude: preparou e orientou várias pessoas que estiveram a intervir no espaço mediático, além de ele próprio ter estado diariamente na CNN. Adorou fazê-lo e isso trouxe-lhe imensa esperança no futuro.
Outra tarefa menos visível era a disponibilidade para esclarecer, explicar e ajudar os jornalistas a pensar. Muitas vezes discordei destas conversas informais potencialmente perigosas. Dizia-lhe com frequência que os jornalistas não têm de ser nossos amigos e que estão sempre “em serviço” mesmo quando ligam só para conversar. Mas ele não queria saber, pois estava genuinamente empenhado em ajudar e, acima de tudo, em estabelecer uma relação pessoal com cada um, em falar-lhes de Jesus e em mostrar-lhes uma Igreja diferente daquela que, se calhar, muitos conheciam.
Ainda sobre a sua faceta mais pública, sublinho o contributo que deu para o tema dos abusos sexuais na Igreja. Não só pelas palavras que disse em privado e em público, e que ajudaram a formar consciências, mas também pelas muitas horas de reflexão e oração que dedicou ao assunto. Apesar de reconhecer que neste campo ainda não está tudo feito em Portugal, partiu, certamente, com a confiança no caminho já percorrido. Este foi um tema que o fez sofrer muito, mas que escolheu agarrar com coragem e responsabilidade. Recordo com especial comoção o dia em que foi à televisão comentar o relatório da Comissão Independente e colocou o cabeção. “Hoje quero ir vestido à senhor padre, para dar o corpo às balas”, disse, numa expressão de humildade extraordinária.
Amava a Igreja e a Companhia e soube promover a comunhão eclesial como ninguém. Reconhecia as diferenças, o lugar ocupado pela Companhia dentro da Igreja, mas sabia que temos de caminhar juntos. Foi incansável neste esforço de construção de pontes, de estabelecer relações e ligações, no espaço público, mas também dentro de portas. Era, para muitos, um ponto de unidade. Lutava por uma Igreja ao jeito do Papa Francisco: próxima, cuidadora, que reconhece a sua fragilidade, combate as injustiças e o clericalismo e confia plenamente no Senhor. A lucidez com que analisava os desafios da Igreja e antecipava soluções e caminhos era fruto do seu sentido crítico e de muita reflexão, mas, acima de tudo, de muita oração.
O Zé Maria não tinha medo de morrer, pois estava certo da misericórdia do Pai. Falámos disso várias vezes e, mesmo não esperando ir tão cedo, penso que a morte não o assustava. Talvez precisasse um pouco mais do que os cinco minutos que o P. António Vaz Pinto dizia precisar para se habituar à ideia, mas a serenidade com que olhava para o que já tinha vivido e a esperança com que encarava o que viria depois eram uma enorme fonte de alegria e confiança. Jesuíta há 25 anos, mas com uma fé profunda que foi alimentada desde a infância pela família, conhecia bem a bondade do Senhor e a sua misericórdia e experimentou como Ele nos ama (ainda mais) na fragilidade. Como diz a canção do seu companheiro jesuíta: “Não queiras a perfeição. Escolhe, antes, a bondade.” Assim fez o Zé Maria.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.