Em presença dos que sofrem de solidão

Talvez precisemos de mais introspeção, de menos solidão, de mais solitude. De abandonarmos a azáfama dos presentes para refletirmos no que realmente é é significativo. Naquilo de que realmente sentimos falta.

Talvez precisemos de mais introspeção, de menos solidão, de mais solitude. De abandonarmos a azáfama dos presentes para refletirmos no que realmente é é significativo. Naquilo de que realmente sentimos falta.

Corria o ano de 2005 e, na Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI) onde eu trabalhava, ainda como estagiária, entrámos no período natalício em ambiente acolhedor e festivo. Uma das residentes, finalmente, via um conjunto de poemas da sua autoria publicado em livro. Eram poemas que escrevera já depois de ter optado por viver neste local. Escrevia o que observava, escrevia o que vivenciava, escrevia de forma a dar voz aos sentimentos, os seus e os dos outros. Eram poemas sobre “um lar de velhinhos visto por dentro”, como descrito na sua biografia.

Próxima de iniciar a minha atividade profissional como assistente social, eu recebera uma das mais impactantes mensagens. Era Natal… Estávamos todos juntos, éramos muitos, os residentes, os colaboradores, os familiares, cujas visitas pareciam aumentar neste período. A preocupação é sempre a de prestação dos melhores serviços, de melhoria contínua dos mesmos, e fazia-se um bom trabalho. As famílias confiavam em nós, sentiam os seus familiares protegidos e seguros, tal como acredito que se sentiam os residentes.

A Sra. D. Mathilde Acciaiuoli ofereceu-me o seu livro. Corrijo! Ofereceu-me dois exemplares, em dois momentos diferentes. Nunca poderia esquecer, nem a própria me deixaria esquecer, a importância da sua mensagem. Esse livro, cujo título sugestivo era Já não cabemos lá em casa – edição da Livraria Ideal Editora, com o apoio da Fundação Joseph B. Fernandes Memorial Trust I (Nova Iorque) e do Centro de Estudos do Humanismo Crítico – foi, e continua a ser, impactante. Este título vinha precisamente de um dos seus poemas – “Visitas”. As visitas que chegam, enchem o espaço, estão, mas vão; e esse movimento era como um exercício simultâneo de felicidade e sofrimento: alegria, saudade, esperança e vazio.

A solidão também se reveste de diferentes formas: pode ser transitória (ocasional), situacional (desencadeada por uma mudança/perda) e crónica (um sentimento que persiste por longos períodos).

O que ensinavam aos colaboradores os poemas da Sra. D. Mathilde? O que ensinava aquele sorriso largo e olhar sábio e perspicaz? Que todo o verdadeiro cuidado é um ato de amor. O que ensina a cada um de nós? Que o amor é a cola que nos une e sustenta como sociedade. As suas palavras, lidas em época de Natal, são um hino à presença, ao encontro, à partilha. Para que não nos esqueçamos de ninguém, nem de nós.

No seu poema “Sozinha”, D. Mathilde reforçava todos os cuidados prestados aos residentes, nomeadamente, o conforto vivido: “Não me falta nada, Nada!”, mas “a minha alma está só”. Pode não ser um poema autobiográfico, mas aquele sentimento de solidão era cuidadosamente descrito como distinto e contrário ao espaço físico, agradavelmente quente, que habitava. Na alma existia um “frio!” que clamava pelo agasalho da “alma”: “Preciso de amor!”.

Este exercício poético reclama a nossa atenção. Com efeito, utilizando as palavras de Zygmunt Bauman, vivemos muitas vezes “sozinhos no meio da multidão”. E enquanto cidadãos não podemos ficar indiferentes. A solidão é carregada de um caráter subjetivo, pois prende-se, essencialmente, com a pessoa sentir-se só, com a sua perceção de não satisfação face aos relacionamentos ou contactos que estabelece. Desta forma, é diferente do isolamento social, cuja conotação é mais objetiva e que se prende com pessoas com um reduzido número de contactos ou vínculos significativos – não obstante este isolamento poder ser um fator de risco. A solidão também se reveste de diferentes formas: pode ser transitória (ocasional), situacional (desencadeada por uma mudança/perda) e crónica (um sentimento que persiste por longos períodos).

Hoje, em meados de dezembro de 2022, as palavras dos poemas da Sra. D. Mathilde mantêm-se vivas, ecoam, multiplicam-se agudizadas com a pandemia de Covid-19. Os impactos desta ainda não são realmente conhecidos. Por exemplo, trouxe mais sentimentos de solidão transitória ou crónica?

No Natal de 2022, é neste contexto de incerteza, de virar de página, que a solidão se mantém no coração de muitos. Mas é Natal! É o nascimento que queremos anunciado diariamente e que pode não ser sentido, concretizado ou vivido.

No Natal de 2022, é neste contexto de incerteza, de virar de página, que a solidão se mantém no coração de muitos. Mas é Natal! É o nascimento que queremos anunciado diariamente e que pode não ser sentido, concretizado ou vivido.

É necessário mudar e ajudar a mudar. É necessário agir e cuidar. O caminho não é, nem pode ser, apenas individual. É de uma sociedade que se inquieta e que procura respostas, serviços e políticas sociais e de saúde promotoras de bem-estar. Uma sociedade humanizada e humanizante, de paz, respeito e justiça. Uma sociedade atenta e que se faz presente. Uma sociedade sensibilizada, onde os média têm um papel muito importante, como veículos de informação e de desocultação da solidão “esquecida” e “envergonhada”.

Dados do relatório Loneliness in the EU insights from surveys and online media data referem que duplicaram em média a quantidade de reportagens e notícias sobre a solidão e o isolamento social entre 1 de janeiro de 2018 e 15 de janeiro de 2021, nos Estados-membros da EU. E uma das principais razões apontadas está associada com os temas que se foram discutindo no âmbito das consequências trazidas pela pandemia de covid-19, nomeadamente as consequências da solidão na saúde das pessoas, no seu bem-estar físico e emocional, e, particularmente, na saúde mental. A mediatização ajuda e estimula na procura de soluções, seja a partir de iniciativas que se exigem do Estado, seja, também, da sociedade civil.

Além das notícias, a publicidade tem abordado múltiplas questões e problemas sociais, e a época natalícia é fecunda nestes exercícios. Assistimos a anúncios publicitários de calorosa união nas famílias, uns sérios, outros humorísticos e outros que parecem mais voltados para a transmissão de mensagens que nos inquietam e emocionam (e.g. “O Carrossel” – NOS). Confesso, apenas, um gosto pessoal e preferência por estes últimos que nos trazem um equilíbrio (sempre que o há) entre a promoção legítima dos seus produtos ou serviços, e o cumprimento dos preceitos da responsabilidade social.

Uma expressão comumente utilizada, diria que há muito tempo, pela publicidade é: “(N)este Natal”. Como se nos reportássemos todos os anos a um momento único e quiçá decisivo no nosso ímpeto, tendencialmente, consumista.

“(N)este Natal” estaremos juntos, é “(n)este natal” que viveremos de determinada forma, “(n)este natal” ainda poderemos usufruir de um conjunto de bens, mais ou menos essenciais, que sentimos como “úteis”, “necessários” ou “desejáveis”. Talvez precisemos de mais introspeção, de menos solidão, de mais solitude. De abandonarmos a azáfama dos presentes – organizados, junto da árvore de Natal, numa disposição esteticamente irrepreensível – para refletirmos no que realmente é significativo. Naquilo de que realmente sentimos falta.

Cairei, também eu, na tentação de terminar este texto com a expressão mais mediatizada “(N)este Natal”? Sim!

(N)este Natal que se agasalhe a alma, para que ninguém sinta o frio do poema.

Estejamos presentes!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.