Em dia de mesa sem pão, todos podemos sucumbir

Joana Garcia Fonseca lembra que as crianças são as principais vítimas da pobreza. Não apenas porque vivem sem condições materiais, mas porque são vítimas de violência e exclusão. Haverá maior pobreza do que a falta de amor?

Joana Garcia Fonseca lembra que as crianças são as principais vítimas da pobreza. Não apenas porque vivem sem condições materiais, mas porque são vítimas de violência e exclusão. Haverá maior pobreza do que a falta de amor?

Na mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial dos Pobres que se assinalará no dia 17 (próximo domingo), podemos compreender a dinâmica da pobreza com a injustiça, as desigualdades e o sofrimento humano. Famílias obrigadas a deixar as suas terras, por razões de subsistência ou de guerra, jovens que não conseguem encontrar emprego, pessoas sem abrigo, homens, mulheres e crianças que vivem em condições de privação material severa, migrantes e refugiados… Quantas vezes a nossa sociedade ignora estas pessoas? Quantos vezes a nossa arrogância afunda ainda mais a condição de vulnerabilidade do outro? Haverá maior pobreza do que a falta de amor?

As crianças merecem especial atenção nesta mensagem, porque, infelizmente, nem todas têm as mesmas oportunidades de concretização dos seus direitos humanos.

Os relatórios nacionais e internacionais sobre o risco de pobreza e de exclusão social são claros: as crianças continuam a ser as mais afetadas. Aumenta o risco quando integram famílias monoparentais ou quando são filhas de pais desempregados ou com empregos pouco qualificados. E a pobreza e a exclusão social têm influência direta na sua saúde física e mental, aumentando a probabilidade de adoecer.

Mas, a mensagem do Papa não nos fala apenas da pobreza enquanto conceito material, vai mais longe… Inclui todas as crianças que vivem desprotegidas ou fragilizadas e as que são vítimas de violência.

Os relatórios nacionais e internacionais sobre o risco de pobreza e de exclusão social são claros: as crianças continuam a ser as mais afetadas. Aumenta o risco quando integram famílias monoparentais ou quando são filhas de pais desempregados ou com empregos pouco qualificados. E a pobreza e a exclusão social têm influência direta na sua saúde física e mental, aumentando a probabilidade de adoecer.

Sabemos que os primeiros anos de vida são determinantes para a criança e que toda a violência afeta o seu desenvolvimento. É na família, como sublinhou Bowlby, onde se experimentam os vínculos relacionais mais significativos, onde se criam os primeiros padrões de adaptação e sobrevivência, e onde a criança aprende a desenhar o mapa com que mais tarde se vai orientar no mundo das relações.

As crianças precisam de crescer em ambientes seguros e afetivos, precisam de famílias onde o amor firme seja a regra lá de casa. Precisam também de comunidades com bons recursos, nomeadamente com serviços de saúde e educação de qualidade, com respeito pelas suas necessidades específicas. Precisam de ter acesso a uma alimentação saudável. Precisam que os seus bairros tenham espaços verdes e livres de poluição para brincar. Precisam de políticas de apoio às suas famílias, que incluam condições adequadas de conciliação da vida profissional e pessoal dos seus pais. Precisam de ter garantido o seu direito de viver de forma despreocupada e livre. Precisam de poder sonhar (sobre o que quer que seja)… Precisam de acreditar que podem contribuir para um mundo onde o bom trato e o bem sejam vencedores de todas as batalhas…

O sistema de promoção e proteção dos direitos da criança português é composto por diversos subsistemas, entre eles o da promoção e proteção, no qual se inclui a atividade das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) que está enquadrada na Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, cuja matriz é a aplicação da Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de setembro de 1990.

Lamentavelmente, por vezes, as famílias e os pais falham, alguns sem querer, outros porque não sabem. Para dar amor é preciso ter recebido, ainda que esse acolhimento caloroso de que se precisa, possa ser de outro cuidador que não o pai, a mãe ou outro elemento da família. O requisito, como nos afirma Bronfenbrenneré o de que a criança tenha pelo menos um adulto que seja louco por ela, isto é, que a ame incondicionalmente e que lhe dedique todo o cuidado e a proteção necessária. E é neste quadro, quando há violação de algum direito fundamental da criança, que há lugar à ação das CPCJ.

Este trabalho não é fácil e contém desafios que podem pôr em risco os próprios profissionais. A sua responsabilidade técnica, humana e solidária merece da sociedade portuguesa o devido reconhecimento, sobretudo pelo impacto que este verdadeiro serviço público implica, não só traduzido em disponibilidade temporal, mas sobretudo pela abertura e gestão emocional que exige, já que se confrontam com a necessidade de tomar decisões críticas, tantas vezes num cenário de risco para a vida da criança.

Por essa razão, as CPCJ precisam de ter profissionais que, para além de possuírem uma preparação técnico-científica sólida, possuam uma capacidade empática de alto nível. Profissionais a quem não falte a qualidade na presença, na disponibilidade de escutar, compreender, comunicar e de partilhar confiança. Sem essa literacia emocional, todos os esforços para inspirar mudança nas famílias, serão em vão.

Podemos dizer que a essencialidade da missão das CPCJ não passa por resolver problemas e corrigir erros, mas por colocar em evidência a competência das famílias, ativando a sua participação na resolução dos problemas. Partindo da compreensão da complexidade do problema dos maus tratos, o trabalho das CPCJ testemunha o diálogo que se constrói e desenvolve com a criança/ jovem, a sua família e a sua comunidade, ajudando a (re) estabelecer pontes entre os diversos sistemas, numa lógica de intervenção em rede.

É neste contexto que a ética do cuidado se reveste da máxima importância na intervenção com as famílias, só podendo ser frutuosa se estiver ancorada na dinâmica da hospitalidade: ser capaz de estar junto e apoiar quem sofre, ajudar a restabelecer o seu mundo, ser transportador de esperança…

É neste contexto que a ética do cuidado se reveste da máxima importância na intervenção com as famílias, só podendo ser frutuosa se estiver ancorada na dinâmica da hospitalidade: ser capaz de estar junto e apoiar quem sofre, ajudar a restabelecer o seu mundo, ser transportador de esperança… Como nos diz Armando Leandro “diminuir o sofrimento do outro é um dever ético” e esse cuidado emerge quando o outro ganha importância no nosso coração.

Para alcançarmos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e a Agenda 2030, que foram adotados por quase todos os países do mundo, a concretização dos direitos da Criança é ainda, na atualidade, um desafio gigante que exige de cada um de nós uma atividade solidária e de cooperação na procura de respostas reparadoras e de prevenção. São necessárias intervenções integradas e sistémicas, onde o apoio às famílias inclua a dimensão da saúde, da educação, da segurança social, da cultura, do ambiente e da economia. A par, precisamos de políticas de apoio à família que corrijam as desigualdades desde os primeiros anos de vida e que minimizem a desvantagem das crianças que estão inseridas em famílias pobres ou que vivam em contexto de outras vulnerabilidades, nomeadamente ao nível da saúde mental/ psicológica.

Podemos dizer que a mensagem do Papa Francisco toca a todos. De algum modo, todo o ser-humano é portador de uma condição de pobreza, ora porque padece do que é essencial para a sua vida, ora por ser insuficiente para mudar a condição de vulnerabilidade do outro. Numa visão de incompletude, enquanto viajantes num caminho sempre em construção, todos padecemos de alguma falta. Nesse entendimento, o convite do Papa Francisco é o de nos aproximarmos, o de ficarmos próximos do outro, o de o conhecermos para ficarmos iguais a ele. Na radicalidade do ser-pessoa, não existe eu sem o outro, o outro é quem nos dá espelho, é quem nos faz ser. Só somos através da relação e é nessa geografia humana da interdependência, que podemos construir uma cultura que previna a indiferença e a apatia e concretizar uma verdadeira cultura da infância, onde toda a comunidade esteja comprometida.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.