Elvis e Pedro

Elvis Presley, o sempre surpreendente Rembrandt, Seghers, Bernanos e o amigo Pedro a quem fizeram três perguntas.

Elvis Presley, o sempre surpreendente Rembrandt, Seghers, Bernanos e o amigo Pedro a quem fizeram três perguntas.

1. Como mel para a boca

O tema deste PRIXM é a misericórdia. E que bem a cantou Elvis Presley em Take My Hand, Precious Lord. Inesquecível…


2. Um texto bíblico

Ao longo dos 7 domingos do tempo pascal, propomos um mergulho nos relatos da Páscoa e da Ressurreição. Hoje, propomo-vos a leitura em paralelo de dois textos do evangelho segundo São João. O primeiro é retirado do relato da Paixão e a ação desenrola-se no pátio da casa do Sumo Sacerdote, horas antes da crucificação de Jesus. O segundo conta um episódio que teve lugar alguns dias depois, junto ao mar da Galileia, já depois de Jesus ter ressuscitado dos mortos.   

Do capítulo 18

Entretanto, Simão Pedro e outro discípulo foram seguindo Jesus. Esse outro discípulo era conhecido do Sumo Sacerdote e pôde entrar no seu palácio ao mesmo tempo que Jesus. Mas Pedro ficou à porta, de fora. Saiu, então, o outro discípulo que era conhecido do Sumo Sacerdote, falou com a porteira e levou Pedro para dentro. Disse-lhe a porteira:

– Tu não és um dos discípulos desse homem?

Ele respondeu:

– Não sou.

Lá dentro estavam os servos e os guardas, de pé, aquecendo-se à volta de um braseiro que tinham acendido, porque fazia frio. Pedro ficou no meio deles, aquecendo-se também. (…) Disseram-lhe, então:

– Não és tu também um dos seus discípulos?

Ele negou, dizendo:

– Não sou.

Mas um dos servos do Sumo Sacerdote, parente daquele a quem Pedro cortara a orelha, disse-lhe:

– Não te vi eu no horto com Ele?

Pedro negou Jesus de novo; e nesse instante cantou um galo.

 

Do capítulo 21

Esta já foi a terceira vez que Jesus apareceu aos seus discípulos, depois de ter ressuscitado dos mortos. Depois de terem comido, Jesus perguntou a Simão Pedro:

– Simão, filho de João, tu amas-me mais do que estes?

Pedro respondeu:

– Sim, Senhor, Tu sabes que eu te amo.

Jesus disse-lhe:

– Apascenta os meus cordeiros.

Voltou a perguntar-lhe uma segunda vez:

– Simão, filho de João, tu amas-me?

Ele respondeu:

– Sim, Senhor, Tu sabes que eu te amo.

Jesus disse-lhe:

– Apascenta as minhas ovelhas.

E perguntou-lhe, pela terceira vez:

– Simão, filho de João, tu amas-me?

Pedro ficou triste por Jesus lhe ter perguntado uma terceira vez: ‘Tu amas-me?’ Mas, respondeu-lhe:

– Senhor, Tu sabes tudo; Tu bem sabes que eu te amo!»

Jesus disse-lhe:

– Apascenta as minhas ovelhas. Em verdade, em verdade te digo: quando eras mais novo, tu mesmo atavas o cinto e ias para onde querias; mas, quando fores velho, estenderás as mãos e outro te há-de atar o cinto e levar para onde não queres.

 

Evangelho segundo São João 18,15-18.25-27; 21,14-17

 

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Rembrandt Harmenszoon van Rijn, A negação de São Pedro, (1660), Rijksmuseum, Amsterdão, Holanda

3. O esclarecimento

O interesse de apresentar estes dois textos em paralelo é o de pôr em evidência o facto de eles estarem construídos de forma idêntica. Nos dois casos:

  • Pedro é o sujeito central do episódio;
  • Pedro é questionado por três vezes.

Porque é que o autor do evangelho escolheu criar uma tal simetria?

Sem dúvida alguma, para que o leitor ligue os dois episódios. O autor procede à maneira dos artistas plásticos que criam dípticos: eles apresentam duas cenas que se iluminam mutuamente.

Para ilustrar o princípio do díptico em pintura, nada melhor que apresentar-vos um. A palavra ‘díptico’ significa precisamente ‘duas partes’ e, em pintura, os dípticos são compostos por dois painéis. No exemplo, Van Eyck liga a cruz ao juízo final para indicar precisamente que eles se iluminam mutuamente.    

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Jan van Eyck, Díptico da Crucificação e do Juízo Final (1440-41), The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, EUA

Como toda a obra de arte literária, a Escritura deve ser lida com um olho para os ecos entre as distintas passagens ou episódios, a fim de captar a verdade que o autor nos quer comunicar:

  • se lêssemos apenas a negação de Pedro, poderíamos concluir apressadamente que ele é só e apenas mais um traidor, um amigo ingrato e fraco que abandona aquele que havia seguido durante três anos precisamente na pior das horas.
  • se lêssemos apenas o segundo episódio, no qual Jesus constitui Pedro como pastor do rebanho que é a Igreja, poderíamos ser levados a crer que basta amar Jesus para herdar o seu papel no seio dos discípulos.

Ao ligar os dois episódios, percebemos a figura de Pedro e o seu papel a uma luz nova: ele negou Jesus e, contudo, Jesus não hesita em voltar a colocar-lhe a questão: ‘Pedro, tu amas-me?’ A tripla pergunta de Jesus recorda ao leitor as três negações de Pedro e exprime o perdão que Jesus lhe concede. O papel de Pedro como pastor do rebanho não depende de uma qualquer perfeição pessoal, nem de uma particular capacidade de liderança: é a misericórdia de Jesus que o constitui como pastor.

Ler bem e em conjunto estas passagens do evangelho é essencial para perceber adequadamente o papel ao qual todos os líderes de comunidades cristãs estão chamados, à imagem de Pedro. A sua autoridade nasce não dos seus méritos, mais da consciência da imperfeição e do dom da misericórdia, que estão chamados a partilhar. Pedro falhou no seu amor pelo seu amigo, mas esta falha não o condenou para sempre. Ele pôde reerguer-se.

 

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Gerard Seghers, A negação de São Pedro (c. 1620-25), North Carolina Museum of Art, Raleigh, EUA

4. E ainda uma palavra final…

A experiência de Pedro é a de um homem incapaz de amar como prometeu, como tinha jurado amar. A experiência de Pedro é também a experiência daquele que se sabe perdoado, reerguido, renovado na sua capacidade de amar.

Bernanos exprime com uma singular beleza esta experiência, nas palavras que o jovem pároco dirige à condessa e que a despertam para a conversão:

«Julgamos o inferno a partir das máximas deste mundo, e o inferno não é deste mundo. Ele não pertence a este mundo, nem tampouco ao mundo cristão. Um castigo eterno, uma expiação eterna – o milagre está em termos essa ideia aqui na terra, ao passo que, a falta, assim que parte de nós, basta um olhar, um sinal, um apelo mudo, para que o perdão mergulhe sobre ela, do alto dos céus, como uma águia. (…) O inferno, senhora, é não se amar mais. (…) Não amar mais, não compreender mais, e ainda assim viver, que prodigioso milagre! O erro comum a todos está em atribuir ainda a essas criaturas abandonadas alguma coisa de nós, de nossa perpétua mobilidade, enquanto que elas estão fora do tempo, fora do movimento, fixadas para sempre. (…) A infelicidade, a infelicidade terrível daquelas pedras em brasa que foram homens, é que elas nada mais têm a compartilhar.»

Georges Bernanos, Diário de um Pároco de Aldeia, 1936.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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