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Em Portugal, o último dia da Economia de Francisco começou um pouco mais cedo, com um tempo de retiro online, orientado pelo Frei Hermínio Araújo, ofm. A partir de uma oração de S. Francisco, “Louvores ao Deus Altíssimo”,, o Frei Hermínio recordou-nos a radicalidade do santo de Assis. Totalmente centrado no Tu de Deus e no Evangelho, que só pede fé, esperança e caridade, S. Francisco fazia da sua vida um grande louvor a Deus, abrindo-se, assim, aos irmãos: “Do Tu de Deus, chegamos ao tu do irmão”. No fim do dia, encontramo-nos de novo, para partilhar impressões.
A tarde começou com a sessão “Vocation and Profit Tool Box”, conduzida pelos participantes deste grupo de trabalho, que apresentaram alguns dos projetos desenvolvidos ao longo dos últimos meses, com base nos pilares orientadores que definiram em conjunto: dignidade, solidariedade, serviço, sustentabilidade, subsidiariedade e co-criação. O projeto mais palpável talvez seja o Profit Podquest, um podcast que começará no 2.º trimestre de 2021, para explorar maneiras práticas de pôr a vocação de cada um ao serviço do bem comum. Mas esta apresentação teve interesse sobretudo por ter mostrado como se foi criando uma comunidade à distância, capaz de trabalhar em conjunto, o que é crucial para a Economia de Francisco.
Seguiu-se uma conversa com Kate Raworth e John Perkins chamada “We are all developing countries”, onde Raworth explicou o seu modelo da Economia Donut que permite avaliar os países segundo vários indicadores ambientais e sociais. O ideal seria que cada país estivesse no meio do donut, não no buraco (que representa problemas sociais) nem para além do donut (que reflete problemas ambientais). Assim, é possível classificar os países segundo quatro grupos: países que não ameaçam o planeta, mas não satisfazem as necessidades sociais; países que ameaçam o planeta e não satisfazem as necessidades sociais; países que ameaçam o planeta, mas satisfazem as necessidades sociais e países que não ameaçam o planeta e satisfazem as necessidades sociais. Infelizmente, este último grupo ainda está vazio.
Nesta conferência houve ainda tempo para a apresentação de propostas de todas as villages, com vista a equilibrar o donut mundial, mostrando o desejo que há na Economia de Francisco de trazer soluções concretas para os desafios que hoje enfrentamos.
Já perto do final, houve tempo para uma pausa em torno da vida de S. Francisco, tido como o “anti-Caim”, que respondeu à pergunta de Deus “onde está o teu irmão?” e se assumiu como seu guardião.
Foram ainda apresentados alguns projetos de adolescentes de vários locais do mundo, mostrando que também eles podem ser agentes de mudança, com contributos importantes a nível local, político e até de investigação.
Antes de ouvirmos o Papa Francisco, fomos brindados com breves discursos de encerramento. O P. Augusto Zampini, secretário adjunto do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral, a Ir. Alessandra Smerilli, Luca Crivelli e Luigino Bruni, membros da organização do evento, sublinharam que a Economia de Francisco já é uma comunidade mundial e local — com grupos a formarem-se em vários países (e em Portugal também!) —, entregue aos jovens, mesmo que sempre acompanhada pelos seniors. Luigino Bruni ressaltou que, embora seja uma rede plural, a Economia de Francisco precisa de ainda mais diversidade, para que a voz das várias regiões do mundo e também a dos pobres tenham mais espaço nesta nova economia que queremos construir.
Finalmente, na sua mensagem final, o Santo Padre destacou que estamos apenas a começar um processo que devemos levar juntos, como vocação, cultura e compromisso. Fazendo eco do apelo de Cristo a S. Francisco — “vai e repara a minha casa, que, como vês, está em ruínas” —, o Papa recordou novamente que a economia não está a funcionar para todos e que as feridas que causamos à Terra afetam primeiramente os mais pobres e deixou-nos um desafio: habitar os lugares onde se tomam decisões e se molda tanto o presente como o futuro.
Só com este olhar que nos enche de esperança é que poderemos enfrentar os problemas diante de nós com alegria, ânimo e perseverança. De outra forma, facilmente caímos no desespero e no fechamento que nos fazem desistir.
Precisamos de uma nova cultura, referiu Francisco, que unifique as análises e os diagnósticos fragmentados que hoje fazemos. Precisamos de novas lideranças, que não percam a esperança e não se prendam a certas ideologias que acabam a justificar injustiças. Precisamos de uma cultura de encontro, que contrarie a cultura de descarte. Precisamos de sentar os pobres à mesa e de permitir que eles sejam protagonistas das suas vidas, pensando e agindo com eles e não por eles e deixando de os ver como números que precisam apenas de uma solução técnica. Hoje, a exclusão não é apenas estar à margem da sociedade, é já nem sequer fazer parte dela, pelo que “a abordagem do desenvolvimento humano integral é uma boa notícia para ser proclamada e posta em prática”. Neste contexto, o Papa partilhou o choque que teve quando, a caminho do noviciado jesuíta, viu pela primeira vez um condomínio fechado, um bairro que vivia na indiferença. E perguntou: “o teu coração é como um condomínio fechado”?
O Papa Francisco ainda lembrou, enfaticamente, o que disse Bento XVI sobre a fome: “‘a fome não depende tanto de uma escassez material, como sobretudo da escassez de recursos sociais, o mais importante dos quais é de natureza institucional’. Se forem capazes de resolver este problema, vão abrir um caminho para o futuro”. Parecia mesmo um apelo para darmos especial atenção a este flagelo.
Ao terminar, o Papa desafiou-nos a não nos deixarmos enganar por atalhos, mesmo que sejam atrativos. Devemos, antes, ser fermento na massa: “tocar a alma das [nossas] cidades com o olhar de Jesus” e, sem temer, “entrar corajosamente nos conflitos e nas encruzilhadas da história para as ungir com o perfume das Bem-aventuranças”, inspirando, dessa forma, uma “visão do futuro cheia da alegria do Evangelho”.
A fechar este encontro de três dias, foi lançado um apelo de Assis para o mundo, de que destaco apenas os pontos principais:
- Partilha mundial de tecnologia e conhecimento,
- Cuidado pela casa comum,
- Fim das ideologias que desrespeitam os pobres
- Direito ao trabalho digno,
- Fim dos paraísos fiscais,
- Novas instituições financeiras mundiais e reforma de instituições como o Banco Mundial e o FMI, para que sejam mais democráticas,
- Criação de comités de ética nas empresas, sobretudo nas multinacionais, com participação nas suas decisões,
- Apoio ao empreendedorismo socialmente responsável,
- Educação de qualidade para todos,
- Igualdade de oportunidades para mulheres e homens,
- Fim da guerra em todo o mundo.
Acabado o evento, para além de muitas horas sentado à frente do computador, o que fica? Certamente uma comunidade nascente e que vai continuar a crescer, com muito entusiasmo e vontade de colaborar na criação de um mundo novo. Além disso, penso que fica também a urgência de replicar a atitude espiritual de S. Francisco, quando contemplamos a nossa Terra. De facto, o santo de Assis parte do louvor a Deus, da ação de graças, do bendizer. E ainda que vivamos um tempo cheio de desafios, será sempre possível reconhecer o bem e a beleza à nossa volta. Só com este olhar que nos enche de esperança é que poderemos enfrentar os problemas diante de nós com alegria, ânimo e perseverança. De outra forma, facilmente caímos no desespero e no fechamento que nos fazem desistir.
Este pode bem ser o mote espiritual para o Advento que está prestes a começar.
Foto de capa: Josh Applegate – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.